sábado, 11 de fevereiro de 2023

Ainda inquieto naquela manhã, seguindo os trilhos do trem desde Machu Picchu Pueblo só para ver onde eles iam dar, mas arrastando uma revolta que se debatia no meu peito, sem nada ao redor que a justificasse, a não ser lembranças, ideias, desejos.

Tentava tirá-la do caminho, porque ela estava poluindo a paisagem e dando à aventura toda um peso desnecessário, mas era quase como se eu tentasse me desfazer de mim mesmo, então, em boa parte do trajeto, ia deixando fluírem à vontade os pensamentos de raiva e amargura, apenas como se eles fossem parte da paisagem, e só. E quando, aqui e ali, encontrava uma clareira de silêncio nos pensamentos, procurava me concentrar em qualquer parte da natureza esmagadora à minha volta que fosse capaz de me despertar alguma ternura ou encanto, uma flor, um inseto, o som das águas ou de animais silvestres, às vezes simplesmente uma folha, ou simplesmente uma pedra.

Não muito longe do povoado, encontrei uma casa onde um rapaz me recebeu ao lado de um grande cachorro preto. Acariciei a cabeça do animal e conversei um pouco com o rapaz, depois fui passear pelos jardins onde corria um rio vindo do alto da montanha e que, nessa jornada, formava diversas cascatas. A essa altura, parecia que já estava esquecido da raiva, e em parte, atribuí à energia do lugar o fato dela ter se dissolvido. Uma placa à beira de uma cachoeira dizia “Energético e Espiritual”, e ali fiquei meditando durante um longo tempo. Já me sentia totalmente renovado ao fim dessa atividade, sem o menor vestígio da pessoa que iniciou o passeio de manhã, então, comecei a trilhar o caminho de volta.


Em dado momento, lembrei-me de um fato marcante que ocorreu quando comecei a viagem pelo deserto da Bolívia. Tínhamos ido de ônibus até a entrada do deserto e, lá, fomos transferidos para os jipes que fariam a travessia. Nisso, descemos toda a nossa bagagem do ônibus para nos dividirmos entre os carros, e então, estávamos reunidos — éramos umas 8 ou 9 pessoas — com toda a bagagem no meio de um círculo, incluindo uma sacola com vários lanches e comidas. Nesse momento, apareceu uma raposa, e todos ficamos olhando para ela, bem mais fascinados do que preocupados, e aí, ela foi se aproximando cada vez mais. Até que entrou em nosso círculo, e quando nos demos conta do que ela tinha ido fazer ali, era tarde demais. Em um instante, estava correndo para o deserto com a sacola de comida entre os dentes, enquanto o dono da comida tentava em vão persegui-la.

O episódio me fez pensar em como as pessoas pacíficas acabamos pagando um preço por nossa recusa à violência. Éramos quase 10 pessoas contra uma raposa pequena, e talvez nem fosse necessária uma agressão real, mas um gesto agressivo teria bastado para evitar o saque. Só que ninguém fez nada: ficamos ali, apenas assistindo enquanto a natureza livre e plena fluía a sua violência contra os pacíficos civilizados que nós éramos.

A lembrança me acompanhou durante boa parte do caminho, e ainda pensava nisso quando avistei de novo a casa onde havia encontrado o rapaz e seu cachorro preto. Quando avancei um pouco portão adentro, tive uma visão mais clara da varanda e de quem estava nela, e então, deparei-me com uma cena muito curiosa. Um homem estava em pé em um dos cantos da varanda, enquanto, diante da porta, o cachorro enorme e preto rosnava, mostrando os dentes para ele. O homem não deixava por menos: rosnava e mostrava os dentes também — e os dois permaneciam imóveis nesse quadro por um longo instante. Logo, o rapaz que era dono do cachorro apareceu, e o animal se foi para um dos cantos da casa, como se nada tivesse acontecido.

O rapaz perguntou como o homem estava, e ele disse que tinha sido atacado, mas que havia se defendido. Em ato reflexo, tinha reagido ao ataque com um chute, mas não a tempo de evitar os dentes do animal. Levantou a perna direita da calça e ali, um pouco abaixo do joelho, brilhavam duas gotas pequenas de sangue. O rapaz correu para dentro para buscar álcool e panos limpos, e nisso, tive tempo de conversar um pouco com o homem. Não me lembro durante quanto tempo conversamos em espanhol, talvez até depois do rapaz voltar e começar a limpar a ferida dele, mas a certa altura, acabamos descobrindo que vínhamos do mesmo país.

Não só do mesmo país, mas de regiões bem próximas. Além disso, ele estava em uma viagem muito parecida com a minha, e tinha vindo a Machu Picchu sem nenhum prazo para ir embora. Seu nome era Antero e tínhamos quase a mesma idade. Era inevitável uma identificação imediata e recíproca.

Mais tarde, quando voltávamos juntos a Machu Picchu Pueblo, descobrimos ainda muitas outras coisas em comum, contando sobre nossas vidas e visões de mundo. O acontecido na varanda já estava esquecido, para mim, mas a certa altura, em um contexto da conversa em que o assunto cabia, e em tom de brincadeira, Antero jurou que não tinha feito nada de mal ao cachorro e — até onde sabia —nem aos deuses do lugar que justificasse o ataque. A conversa acabou engatando pelo tema das moralidades, e Antero dizia que tudo no mundo tinha se tornado tão relativo que as pessoas que ainda se preocupavam em ser “boas” estavam condenadas. Simplesmente, não havia esperança para elas.

A observação tocou em vários pontos sobre os quais eu tinha refletido antes, então, comecei a falar em um fluxo natural e incontrolável:

— Certo, não existe “defeito” que você não esteja disposto a ignorar quando quem apresenta é seu amiguinho ou pode trazer algum benefício para você. Eu realmente acho difícil falar em “defeitos” como se fossem coisas reais e não detalhes em que a gente se agarra quando quer atacar outra pessoa ou acabar com a imagem dela. Aí, lá estão os caras que são violentos com a mulher e os filhos dizendo que você não presta porque dormiu até mais tarde na segunda-feira. Você chutou um cachorro que estava te atacando e logo vai aparecer gente para te comparar a um ditador assassino e sanguinário, talvez você mesmo faça isso. E você é justamente a pessoa que está se esforçando para acabar com a violência! Às vezes, se esforçando até demais. Se eu disser para você que a violência existe, faz parte de você e de tudo, e que não necessariamente tem algo de errado nela, você vai se preocupar que as coisas comecem a ficar perigosas demais no mundo se levar a ideia a sério, como se elas já não estivessem. Como se a maioria das pessoas que decidem como as coisas são não fosse ouvir pensando: “Meu Deus, que coisa óbvia! Foda-se a violência, todo mundo é violento, quem não é violento é otário!”.

Imediatamente, como se apenas seguisse aquele mesmo fluxo de pensamento, Antero completou:

— E aqui estamos nós. Os otários.

Eu ri.

— Sim. Os otários. Mas pelo menos, você não vai perder a perna hoje.

Foi a vez dele rir.

— Não. Não vou.

Depois, por um longo tempo, apenas caminhamos em silêncio.

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