sexta-feira, 26 de agosto de 2016


Escadas em caracol. Vitrais. Um outdoor com o sorriso malicioso de uma moça usando apenas calças jeans. Papel prateado sobre um coração de cartolina, camafeu, o que era um camafeu além de uma palavra feia? O que era um camafeu no meio dessa história toda? Estou enjoado, ainda faltam quatrocentos e setenta e dois quilômetros, curva, curva, uma freada brusca. Tentando esconder do sol o braço esquerdo porque ele já está suficientemente mais bronzeado que o direito. Não, meu bem, a sua vontade de ajudar ao próximo não pode derrotar meu egoísmo desmedido. Não, você não entendeu: minha vontade de ajudar ao próximo é um troféu na minha estante, só serve quando me permite te acusar de um egoísmo desmedido. Será que alguém consegue não estar em nenhum lado nesse espelho? Talvez ele confesse o inconfessável no chuveiro. Bola de neve, ímã de geladeira, um ego, um ventilador paraguaio: o que era qualquer coisa no meio de todas as coisas? Um dia você já sentiu o gosto da tinta da caneta, alguma vez uma caneta já estourou na sua boca? Lembra-se de uma caneta que fazia desaparecer o maiô de uma mulher conforme você a virava? Estou enjoado. Tudo isso é mal é o mar, é o ar condicionado e uma história de aborto – por que é que não fui eu que não nasci. O meu baú cuspia as coisas meio díspares, e dedos apertavam ao redor do teu pescoço. (Agora deixo os nós e os fios serem o mesmo pensamento: é só o que ainda não tentei pra mim deixar de ser burro.) Só sei que tinha sempre a luz de tinta verde do rádio relógio, três horas e trinta minutos, três horas e trinta e um, três horas e trinta e dois. A cento e quarenta quilômetros por hora, com a palavra “agora” escrita no retrovisor.

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Jericoacoara - CE
ou lágrima. uma gota grande. pensei que um tremor de choro na voz. não muito uma lamentação, mas só porque. não. esquece. valsa lenta jazz. nenhuma perda causa uma dor tão grande, nenhum abandono. a injustiça, a opressão, toda uma lista dos piores defeitos humanos que são sempre dos outros. os outros. a imaturidade dos outros, a arrogância dos outros dói, a nossa também dói, mas nada, nunca, tanto assim. é alto o preço que se paga quando se é pequeno, mas ainda não é isso o que dói mais. até pensei que. não. deixa. toda essa falta de jeito e de vontade pra ser simplesmente inteiro e real e quebradiço. bolero lancinante blues. silêncio absoluto soul.

sexta-feira, 12 de agosto de 2016


(Diários de Machu Picchu #10)


Você não pode ver porque eu pareço muito sério, mas na verdade estou bem de boa. Ontem entrou um morcego no meu quarto, aprendi a andar de moto, não tem nada de grandioso nem de mágico no mundo, Olívia me contou histórias engraçadas e eu também fiz ela rir: ganhei o dia. Passei a vida inteira dividido entre os que se odeiam, todos diziam que eu estava “em cima do muro” e que esse é um lugar de covardes, mas você vê: é mais fácil acertar uma pedrada em quem está em cima do muro do que em quem está do outro lado. “Saia de cima do muro”, eles gritavam, até que um dia eu disse o muro é meu e eu fico nele onde bem entender, mas foi aí que ninguém mais ficou do meu lado, mesmo. E ainda temos que falar de muitas outras coisas importantes, por exemplo: você já imaginou se os gafanhotos comerem toda a floresta amazônica e virarem gigantes e começarem a devorar cabeças de gente? Chega uma hora em que tudo começa a se repetir, você já sabe quem vai encontrar, o que vai ouvir e o que vai dizer e aí você percebe que a vida é só isso, não é uma questão de quantas cores você tem na tua caixinha de lápis. Você não pode ver porque eu pareço muito sério, mas na verdade estou me divertindo. Me convidaram pro futebol, fui avistado por um boto, vou ali tomar um chope – não, espera: não existe choperia aqui. Um dia alguém tentando ser cruel me perguntou “Onde estão teus amigos?”, porque eu estava tão sozinho que doía, mas coloquei a mão no peito e respondi: Comigo. Corre lá dizer pra eles. Não fique tão chateada quando eu falo sério.

quarta-feira, 3 de agosto de 2016


Naquela tarde à margem do rio, os pensamentos desapareceram. Só o que existia era a realidade concreta à minha volta: os barcos ancorados, as crianças nadando e os cachorros correndo pela praia. Sensação de pertencer: se as palavras voltassem, se eu voltasse a pensar, tenho certeza de que pensaria “estou em casa”. Mas somente o ponto em que dois braços do Rio Negro se encontravam, barcos que passavam carregados de famílias, peixes, pedras, árvores altas para além das outras margens. O tempo amarrado à correnteza do rio passava devagar, quase não passava, quase uma lagoa, só, de luz intensa e viva sobre pele escura, folhas verdes, uma areia muito branca. Um pássaro pescava; outros, menores, cantavam à minha volta, pássaros brancos e amarelos. Superfície refletindo as casas de madeira em uma ilha – mas eu não pensava “ilha”, nem conseguia ver a água cercando a terra por todos os lados, só aquele pedaço de rio negro quieto, muito quieto. O que uma vez eu chamava de Eternidade Imediata: o puro instante; o puro não-eu, inteiro a paisagem.

Em casa, sim, se “casa” fosse uma palavra em que coubesse tanto.