sexta-feira, 30 de setembro de 2016



Passam dois meninos de uns dez anos conversando:
– Mas você não me convidou...
– Convidei, sim! Eu mandei correio pra todo mundo. Só se ele não foi lá na tua casa...
– Não foi...
– Ah, vá tomar no cu desse correio! Eu vou matar ele!
– Você vai matar ele?
– Tô brincando.
– Ah, bom!

sexta-feira, 23 de setembro de 2016


– Luazinha, você não se cansa de estar sempre tendo que voltar a ser voltar a ser voltar?

Em pé diante da pia da cozinha às três da madrugada, imaginando uma conversa com a Cristina, comendo atum ralado Hemmer direto da lata eu sinto de repente que tudo está bem, que a vida é boa e que tudo faz sentido.

Mesmo que tocasse um rock ruidoso, que a letra fosse um grito de revolta ou o lamento angustiado de um suicida; mesmo que estivesse muito quente ou que eu não quisesse dormir porque amanhã o dia vai ser um saco e eu queria poder fazer outras coisas; mesmo que me incomodasse um pouco o fato de que a lâmpada da sala está queimada há quase um ano ou de que minhas roupas estão sujas na mala ainda não desfeita da viagem; mesmo que às vezes eu me arrependa de ter dado a minha gata ou que me sinta um astronauta esquecido e sozinho em algum ponto distante do Universo; mesmo que eu não saiba muito bem como e por que: tudo está bem, a vida é boa e de repente faz sentido.

Cara, a verdade é que eu ganharia uma fortuna revivendo este momento em um comercial da Hemmer. Claro, talvez preferisse outro figurino – apesar de gostar desta camiseta verde com a estampa de uma mulher encapuzada e uma tatuagem no braço dizendo Venus in Furs, que eu acho que teria, digamos, um apelo dramático maior do que a samba-canção branca com a inscrição Amor eterno em várias línguas, embora os publicitários talvez discordem – mas enfim, a cena toda já está pronta: o cara insone que de repente abandona os seus infernos interiores e se reconcilia com a vida e com o mundo através de uma lata de atum ralado Hemmer. Originalíssimo, perfeito.

Ah, droga, já me aborreci de novo.

sábado, 17 de setembro de 2016


The Lord took her away from me.
Era o teu nome, e o de mais ninguém. Riscado com giz na calçada, com um graveto na areia da praia ou com o dedo no vidro embaçado. E em cada uma das oitocentas páginas do meu caderno. O que era inútil, porque você não respondia. A solidão descrevia um arco, arremessada desde o centro do teu silêncio imóvel, e me atingia bem no peito, em cheio. Não havia mais nada nem ninguém a quem eu quisesse pertencer. Sob o sol, a boca seca, levantei os olhos e encarei o grande deserto que se estendia além, pra qualquer lugar. Fomos felizes uma vez, depois fui triste, e agora há qualquer coisa de esperança em não querer olhar pra trás. Ainda é teu nome, eu sei. Mas nem me lembro muito bem de como ele se escreve, não depois que eu comecei a caminhar. Agora é só poeira, pedras, pés cansados e a testa coberta de suor. Pura terra. Puro ir. Dura indiferença à imensa falta que você virou.


(E ainda diremos algo inédito sobre o amor.)

sexta-feira, 9 de setembro de 2016



Depois de vinte mil atualizações de status, continuava incompleta. Nunca se convenceu, nem poderia, mas não percebia como aquilo tudo não servia de nada. Além disso, eu estava de mau humor porque era terça-feira e fazia um calor insuportável. Escrevi: “Papai e mamãe estão contando com você: não tem mais nada na vidinha deles que possa ser motivo de orgulho”. Mas aí logo em seguida apareceu esse menino defendendo o Mandamento de honrar pai e mãe e ele era uma das pessoas mais bonitas que eu já conheci. Não me envaideço de ser humilde, não acho que a minha humildade seja menos sincera e natural que a minha vaidade. Já imaginou que louco transformar defeitos em virtudes com a mesma agilidade e empenho com que fazemos o contrário? Sinto falta de pessoas sem as quais estou muito melhor e às vezes me desligo de quem me faz bem: sempre foi assim. O fato é que não temos nada a ver com aquele personagem do nosso perfil – ele é no máximo alguém que gostaríamos de ser, quando muito. Bora lá escolher qual lavagem cerebral você quer sofrer, em qual transe hipnótico você quer entrar. Não tem outra opção. Assim continuamos, e continuamos, e continuamos. Parece que seria a morte se faltasse um link.

sexta-feira, 2 de setembro de 2016


Na segunda-feira, as ruas do Bairro Histórico estavam praticamente vazias. Caminhei meio sem rumo das onze horas até o meio-dia, enquanto garçons cheios de preguiça iam abrindo as portas dos restaurantes e uns poucos turistas comparavam preços e sugestões dos chefs escritos com giz em quadros negros. Escolhi meu restaurante pela música. Sentei-me à sombra de uma árvore em um pequeno deck com vista para o Río de la Plata. Rock’n’roll e Iate Club. Um garçom gordo e simpático chegou com o cardápio, mas eu não tirei os óculos escuros. Queria um macarrão à bolonhesa. Queria aquele filhote de gato cinza ao pé da mesa em frente. Eu era o único cliente no restaurante.

– Los lunes son mortales – comentou o garçom quando me trouxe queijo e azeitonas. – No hay casi nadie em las calles y estamos pelados... Los lunes son mortales, mortales.

Fiquei pensando se ele envenenaria o meu molho à bolonhesa; ele saiu exibindo um pedaço da bunda por cima da calça jeans. Outros filhotes de gato se juntaram ao filhote cinza, deitaram-se sob o sol. Fiquei me lembrando da temporada que passei em Santorini em mil novecentos e noventa e nove... Mentira, nunca estive em Santorini. Mas me lembrei de Santorini pelo puro prazer de dizer que me lembrei de Santorini, e porque tenho a impressão de que lá passei os meus melhores dias ao lado de Marília. Também nunca tive uma namorada chamada Marília, mas acho que lá, em Santorini, cheguei a pensar por alguns instantes que ficaríamos juntos pelo resto da vida.

O Río de la Plata refletia uma luz prateada que era a luz do sol filtrada por um fino véu de nuvens.

Queria escrever um conto sem metáforas nem simbologias, fingindo que os humores não interferem nos recortes da objetividade. E só porque nada consegue dar conta, mesmo, de traduzir a totalidade de uma experiência.

O garçom voltou com um pote de queijo ralado em uma mão e um cigarro aceso na outra. Inclinou-se sobre a mesa para deixar o queijo e derrubou uma porção de cinzas sobre a toalha azul não muito limpa. Bateu as cinzas com os dedos, sem dizer nada, e desapareceu outra vez com suas calças soltas.

Deixei as azeitonas de lado e acendi um cigarro. Era o meu jeito de dizer ao garçom que eu também não me importava nem um pouco com nada daquilo.

E que ele tinha razão, afinal. Segundas-feiras são mortais.