sexta-feira, 25 de agosto de 2017





desde o centro, à margem do rio, a cidade se alonja pro alto das montanhas / e do alto de todas elas pode-se ver a cidade esparramada como um polvo / como um pântano de concreto / agarrada à superfície de um mar de altas montanhas verdes / ondas recortadas de gramados árvores e plantações de milho / cidade que eu vi crescer / desenhar quadradinhos de asfalto em volta da terra nua / onde antes era apenas natureza entregue ao tempo e a si própria / (e não que agora já não fosse / natureza de cimento e aço e de pessoas que aqui moram ou que daqui vêm e se vão pela razão que lhes caiba / entre os postes elétricos e a mata) / antenas de rádio alfinetando o céu / sombra de nuvens na memória de tantos domingos à tarde / minha pequena / grande / eterna cidade / a que me viu crescer / morrer / crescer de novo / alma querida de minha história / cidade navio à margem / ensaiando-se pro alto / prédios / montanhas / asas

Parabéns pelo Centenário, Joaçaba.
;)

sexta-feira, 18 de agosto de 2017


Pra entender que já passou, mesmo que em algum lugar isso ainda custe tanto. E abraçar o vazio, dizer: você venceu. Pra entender que não importa de quem foi a culpa, ver a folha em branco do futuro e conseguir acreditar de novo. Não, as cicatrizes não têm peso. Vaias, gritos de escárnio e ofensas gratuitas não conseguem ecoar pra sempre. E não preenchem mais do que os aplausos, risos de contentamento ou elogios. A incompreensão é só uma regra: há outras, e há exceções. Pra entender de quantos corações você precisa pra pulsar de cada vez. Pra entender que tudo estar perdido é a única forma de possuir de verdade. Pra entender que a tua grandeza é um grão de poeira, não espere mais, não se pergunte, apenas vá. Ande. Todos os átomos recém nasceram. Não há nenhum lugar senão adiante. Você já sabe, essa é a única lei.


quinta-feira, 10 de agosto de 2017

– Tem dois jeitos de eu gostar desta rua – disse Jéssica. – No tempo das mangas e quando cai uma chuva rala nos fins de semana.

Ao longo de todo o canteiro central da avenida em que estávamos, havia mangueiras em que, segundo Jéssica, muita gente vinha colher mangas quando elas estavam maduras.

– Sabe aquelas chuvas que não chegam a molhar de verdade, mas são o suficiente pra derrubar a vontade das pessoas de saírem de casa? Fica tudo mais deserto... Aí eu gosto de andar por aqui.

Caminhávamos devagar sob o sol numa tarde quente de verão, e calculei que seria mesmo bem mais agradável andar por ali com um clima mais ameno e sem todo aquele barulho do tráfego.

Era a nossa última tarde juntos. Tinha ido visitá-la depois de quase cinco anos sem nos vermos, apenas trocando mensagens pela internet – e justamente porque o tom de suas mensagens andava me preocupando. Ela havia terminado um relacionamento longo no início daquele ano e, depois de um tempo decidida a curtir a vida sem se preocupar com as consequências de nada, mergulhou em um tipo de depressão que eu, de brincadeira, chamava em nossas conversas virtuais de “doçura evasiva”. “Pessoas que se acham inteligentes são dependentes demais do fogo”, protestava ela. “Também existe presença de espírito na fragilidade”.

E no entanto...


– Não se preocupe com os meus silêncios – ela me pediu naquela tarde. – A solidão não existe.

Aí eu me lembrei de um sonho que tinha tido havia muito tempo em que uma mulher parecida com ela me dizia: É muito cedo pra morrermos jovens.

Olhei pras mangueiras no centro da avenida, mas não enxergava mais o mundo à minha volta. Dentro de poucas horas estaria embarcando pra talvez mais cinco anos de saudades, e queria gravar a fundo a presença dela ao meu lado, aquela certeza de que ela estava ali, doce e evasiva ou presente e frágil ou o que fosse, desde que Jéssica.


sexta-feira, 4 de agosto de 2017


(Diários de Machu Picchu #18)

você não vai pagar mais caro pra escutar o óbvio
as coisas não estão melhores
eles só falam nisso
mas tem essa garota linda que trabalha no posto de gasolina
e uma cantina italiana com as melhores massas da cidade
e lírios e tulipas em canteiros que dividem avenidas
e música suave nos elevadores

você paga o que não deve quando chora de cansaço
as coisas não vão melhorar
você não precisa ficar ouvindo
poetas trágicos vomitando as sombras dos desesperados
casas que desabam, assassinatos em becos escuros, ratos
mas tem a luz do sol atravessando os cristais e se partindo em sete
tem as propagandas engraçadas
tem vinho, vai ter bolo

você não saberia se acalmar se as coisas melhorassem
você não sabe o que dizer
você lamenta o quanto custa
porque dói como se arrancassem os seus dedos um a um
depois as mãos, depois os braços, porque as opções que restam
são almas e atos que independem totalmente da sua vontade
você não pode mais pagar
mas tem fotografias, tem ar fresco entrando nas janelas
e como sempre tem um algo-mais
que ninguém nunca soube muito bem o que seja