segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Eu vejo a sala de um apartamento milionário no alto de um prédio, aquelas janelas do chão ao teto e de uma parede a outra, uma decoração limpa e sofisticada, um grande vazio frio e silencioso, e eu vejo um homem parado ali, segurando um copo de uísque e olhando a cidade triste, triste ele também, oco, inalcançável e irredutível rei de porra nenhuma, bebe, esvazia o copo de um gole, as ruas lá embaixo parecem agitadas, tão longe, todas tão minúsculas e miseráveis aos pés daquele homem tão pequeno em sua sala sem fim, uma corrente elétrica sobrecarregada de carne e de vontades incontroláveis perpassa as ruas da cidade, hordas de pequenas bestas primitivas entrando em choque, o homem vai até o balcão encher seu copo, enche até a borda, esvazia no que parece um só gole, as ruas são tomadas por facas e metralhadoras cegas sendo disparadas, gritos surdos e gemidos que não chegam até ali, tão alto, o homem deixa o copo e começa a beber direto da garrafa, o sangue está cobrindo o asfalto, o homem vai até a janela e vê, um rio de sangue literal e quente está correndo sobre o asfalto, rápido e voraz, vai arrastando os carros e arrancando as árvores dos canteiros das calçadas, correndo e crescendo e ficando cada vez mais alto, o homem bebe, o sangue já cobriu as casas, está cobrindo agora os prédios baixos e subindo, a eletricidade acaba, o homem esvazia a garrafa, o sangue chegou à sua sala e continua subindo depressa, o homem quase não enxerga nada, mal sente, amortecido pelo álcool, quando o sangue entra em suas narinas no lugar do ar, quando ele inunda seus pulmões e quando a sua consciência apaga.

Não me pergunte como eu sei que a consciência dele apaga, mas apaga. O sonho se repetiu já algumas vezes, como pesadelo, e no começo eu costumava acordar nessa hora, com medo, sem saber direito onde estava. Até que parei de acordar. O sonho ainda acabava ali, mas ao mesmo tempo, não.  Eu não podia ver mais nada, nem sentir, mas comecei a perceber a existência de um som longínquo e ininterrupto, uma sequencia de pancadas secas e abafadas, que das primeiras vezes me pareceram um coração batendo, mas que logo identifiquei como um tambor, depois tambores, depois tambores e chocalhos e apitos até se tornarem a bateria de uma escola de samba, transbordante, incontrolável, derramando a sua pura força e muito aos poucos se tornando imagem, pequenos pontos de luz sem forma se juntando, aqui e ali, até se parecerem a uma estrada.

Um comentário:

Anônimo disse...

Arrepiei....... ainda bem que sempre existe um novo caminho...