Eu
vejo a sala de um apartamento milionário no alto de um prédio, aquelas janelas
do chão ao teto e de uma parede a outra, uma decoração limpa e sofisticada, um
grande vazio frio e silencioso, e eu vejo um homem parado ali, segurando um
copo de uísque e olhando a cidade triste, triste ele também, oco, inalcançável e
irredutível rei de porra nenhuma, bebe, esvazia o copo de um gole, as ruas lá
embaixo parecem agitadas, tão longe, todas tão minúsculas e miseráveis aos pés
daquele homem tão pequeno em sua sala sem fim, uma corrente elétrica
sobrecarregada de carne e de vontades incontroláveis perpassa as ruas da
cidade, hordas de pequenas bestas primitivas entrando em choque, o homem vai
até o balcão encher seu copo, enche até a borda, esvazia no que parece um só
gole, as ruas são tomadas por facas e metralhadoras cegas sendo disparadas,
gritos surdos e gemidos que não chegam até ali, tão alto, o homem deixa o copo
e começa a beber direto da garrafa, o sangue está cobrindo o asfalto, o homem
vai até a janela e vê, um rio de sangue literal e quente está correndo sobre o
asfalto, rápido e voraz, vai arrastando os carros e arrancando as árvores dos
canteiros das calçadas, correndo e crescendo e ficando cada vez mais alto, o
homem bebe, o sangue já cobriu as casas, está cobrindo agora os prédios baixos
e subindo, a eletricidade acaba, o homem esvazia a garrafa, o sangue chegou à
sua sala e continua subindo depressa, o homem quase não enxerga nada, mal
sente, amortecido pelo álcool, quando o sangue entra em suas narinas no lugar
do ar, quando ele inunda seus pulmões e quando a sua consciência apaga.
Não me pergunte como
eu sei que a consciência dele apaga, mas apaga. O sonho se repetiu já algumas
vezes, como pesadelo, e no começo eu costumava acordar nessa hora, com medo,
sem saber direito onde estava. Até que parei de acordar. O sonho ainda acabava
ali, mas ao mesmo tempo, não. Eu não
podia ver mais nada, nem sentir, mas comecei a perceber a existência de um som
longínquo e ininterrupto, uma sequencia de pancadas secas e abafadas, que das
primeiras vezes me pareceram um coração batendo, mas que logo identifiquei como
um tambor, depois tambores, depois tambores e chocalhos e apitos até se
tornarem a bateria de uma escola de samba, transbordante, incontrolável,
derramando a sua pura força e muito aos poucos se tornando imagem, pequenos
pontos de luz sem forma se juntando, aqui e ali, até se parecerem a uma
estrada.
Um comentário:
Arrepiei....... ainda bem que sempre existe um novo caminho...
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