domingo, 14 de outubro de 2018

Fiquei olhando enquanto ela traçava a linha preta embaixo do olho, diante do espelho, concentrada, as luzes do camarim colorindo tudo de maneira tão intensa. Seus lábios se moviam com o que imaginei que fosse o texto da décima quinta cena, mas nenhum som saía de sua boca. Jéssica sempre confundia as falas dela na décima quinta cena, mesmo depois de milhões de ensaios. Nós que dividíamos o palco com ela nessa hora já sabíamos improvisar sobre dez ou doze possíveis erros seus, silêncios de esquecimento ou ataques súbitos de tosse. Enquanto Jéssica se maquiava, naquela noite, um pouco antes da nossa estreia, o nervosismo era uma correnteza densa no ar do camarim, zumbindo mais que as lâmpadas, insustentável leveza sobre os nossos ombros.

 Eu tenho essa lembrança da infância – ela falou, de repente. Era o começo de um diálogo nosso da oitava cena. – Sabe aquelas ameixinhas silvestres, amarelas, com uma casca meio aveludada?

 Sim. Conheço. Um colega meu tem um pé delas numa chácara. – Fiz um silêncio breve. Em cena, de frente pra mim, Jéssica ocupava essa pequena pausa me lançando um olhar curioso. Ali, no camarim, mal desviou os olhos de sua maquiagem. – Ele me trouxe algumas, uma vez – continuei. – Faz muito tempo. Também é uma fruta de que eu só me lembrava na infância.

Naquele instante, outro colega de cena apareceu pra dizer que o diretor estava chamando, no palco, que já estava na hora, que logo eles iam liberar a entrada e que tinha bastante público esperando. Desapareceu logo em seguida, quando Jéssica terminava de organizar os lápis e pancakes sobre o balcão e eu tirava do cabide o sobretudo pesado e quente que era obrigado a vestir na primeira cena. Começamos a nos dirigir pra fora, um pouco apressados e em silêncio, mas assim que atravessei a porta do camarim, Jéssica estancou, de cabeça baixa, um passo antes de sair. Virei-me pra ver o que tinha acontecido, mas ela só estava ali, parada, com os olhos meio tristes voltados pra baixo.

 E se ninguém gostar? – perguntou. Levantou pra mim uns olhos molhados de lágrimas, duas gotinhas trêmulas ameaçando a linha preta debaixo dos olhos, mas antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, ela riu, uma pequena risada ainda meio triste, agitando a cabeça como pra arrancar a ideia dali. – Deixa pra lá, vamos logo, de uma vez – disse, agora olhando decidida pra mim e estendendo a mão pra segurar a minha. – Essa pergunta nem vai estar aqui quando a gente voltar, mesmo.

2 comentários:

Anônimo disse...

Ah, Jessica! Se ninguém gostar ainda tem as frutinha amarelas de pele peludinha!...

Anônimo disse...

Amei!