Fiquei
olhando enquanto ela traçava a linha preta embaixo do olho, diante do espelho,
concentrada, as luzes do camarim colorindo tudo de maneira tão intensa. Seus
lábios se moviam com o que imaginei que fosse o texto da décima quinta cena,
mas nenhum som saía de sua boca. Jéssica sempre confundia as falas dela na
décima quinta cena, mesmo depois de milhões de ensaios. Nós que dividíamos o
palco com ela nessa hora já sabíamos improvisar sobre dez ou doze possíveis
erros seus, silêncios de esquecimento ou ataques súbitos de tosse. Enquanto
Jéssica se maquiava, naquela noite, um pouco antes da nossa estreia, o
nervosismo era uma correnteza densa no ar do camarim, zumbindo mais que as
lâmpadas, insustentável leveza sobre os nossos ombros.
– Eu tenho essa lembrança da infância – ela falou, de repente. Era o começo de um
diálogo nosso da oitava cena. – Sabe aquelas ameixinhas silvestres, amarelas, com
uma casca meio aveludada?
– Sim. Conheço. Um colega meu tem um pé delas numa chácara. – Fiz um silêncio
breve. Em cena, de frente pra mim, Jéssica ocupava essa pequena pausa me
lançando um olhar curioso. Ali, no camarim, mal desviou os olhos de sua
maquiagem. – Ele me trouxe algumas, uma vez – continuei. – Faz muito tempo. Também
é uma fruta de que eu só me lembrava na infância.
Naquele
instante, outro colega de cena apareceu pra dizer que o diretor estava chamando,
no palco, que já estava na hora, que logo eles iam liberar a entrada e que
tinha bastante público esperando. Desapareceu logo em seguida, quando Jéssica
terminava de organizar os lápis e pancakes
sobre o balcão e eu tirava do cabide o sobretudo pesado e quente que era obrigado a
vestir na primeira cena. Começamos a nos dirigir pra fora, um pouco apressados
e em silêncio, mas assim que atravessei a porta do camarim, Jéssica estancou,
de cabeça baixa, um passo antes de sair. Virei-me pra ver o que tinha
acontecido, mas ela só estava ali, parada, com os olhos meio tristes voltados
pra baixo.
– E
se ninguém gostar? – perguntou. Levantou pra mim uns olhos molhados de
lágrimas, duas gotinhas trêmulas ameaçando a linha preta
debaixo dos olhos, mas antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, ela riu, uma
pequena risada ainda meio triste, agitando a cabeça como pra arrancar a ideia
dali. – Deixa pra lá, vamos logo, de uma vez – disse, agora olhando decidida
pra mim e estendendo a mão pra segurar a minha. – Essa pergunta nem vai estar
aqui quando a gente voltar, mesmo.
2 comentários:
Ah, Jessica! Se ninguém gostar ainda tem as frutinha amarelas de pele peludinha!...
Amei!
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