quinta-feira, 30 de maio de 2019


Onde você estava no dia primeiro de maio eu rabiscava uma flor num papel verde era uma vez um poeta trágico pensando bem: se eu fosse escrever uma carta de suicídio escreveria uma carta de amor tão doce mas fazer poesia no dia do trabalho é uma ironia triste e num canto da cozinha eu te beijei uma vez só um santo sem sal no canto de uma casa de cozinha fria que eu morei num azulejo amarelado eu desenhava uma espécie de flor tão triste e nem sabia que era uma flor quando comecei a voar pra longe atravessando avenidas vazias era uma vez uma flor preta eu precisava te contar alguma coisa urgente eu só sabia que enquanto estivesse escrevendo coisas tristes não teria problemas mas quando escrevesse uma carta de amor aí sim atravessando avenidas cinzas sem você onde você estava naquela tarde triste de primeiro de maio um beijo ecoava no vazio de uma cozinha de azulejos muito amarelados pro meu gosto azul pensando bem: que espécie de santo eu poderia ser se em vez de chorar sangue eu sangrasse lágrimas uma flor preta em papel verde e se escrevesse sobre amor e não morresse então que espécie de poeta trágico eu seria alguém falou que isso não é trabalho onde você estava era uma vez triste eu que te quero tanto e me confundo tanto eu que te quero sempre eu que te quero bem





terça-feira, 21 de maio de 2019


Mas o calor que faz no Norte... Uma praia em Salvaterra, uma cerveja, duas, três, tinha sobrado só Eva e eu, poucas palavras, pouca gente e muito suor, por que não fomos nos hospedar em Soure? Compartilhávamos o mesmo gosto pra poesia, muito embora... se falássemos sobre um poema do Drummond, por exemplo, eu citaria este ou aquele verso e ela, outros. Foi assim com quase todos os poemas sobre os quais falamos ao longo daqueles dias.

– Mas concordamos sobre Salvaterra – murmurei, como se ela estivesse acompanhando o raciocínio anterior.

Já tínhamos discutido isso, sobre “Salvaterra”. Nenhum de nós dois gostava da ideia de “salvar” – tínhamos uma desconfiança fundamental de quem quer que fosse que se atribuísse essa missão. E ainda assim, de alguma forma, talvez não soasse tão deslocada a palavra “salvos” pra explicar como estávamos nos sentindo naqueles dias, naquela terra. Era tudo muito luminoso e lento. Ao longe, na praia, um menino passava montado num búfalo.



– Às vezes eu me pergunto – ela disse – que utilidade a gente tem acumulando informações. Sabe? A gente fica acumulando e alinhando ideias num jogo mental sem quase nenhum desdobramento prático. Ou sou eu que não estou enxergando alguma coisa? Mas que diferença faz a gente saber o que falou Zaratustra?

Eva bebeu toda a sua cerveja de uma só vez e largou o copo sobre a mesa. Manteve os olhos baixos com um ar de tristeza, de fracasso.

Mas o calor que fazia, mas aquele mar que de vez em quando era rio que de vez em quando era mar de novo, como eu amava a cor da pele daquelas pessoas, como eu entendia agora o ar-condicionado, como eu queria ter uma moto pra rodar a ilha inteira.

– Anota aí – resmungou Eva: – Em terra de cretinos, quem tem um coração é janta!

Ah, ponto pra ela, tive que admitir. Meus olhos bêbados deviam estar brilhando de admiração. Eu já não tinha mais muita certeza do que ela estava falando, mas aquilo fez muito sentido, era a mais pura verdade. “A solidão não é um preço muito alto?”, pensei de repente, mas antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ela ergueu os olhos e perguntou:

– Vamos pedir mais uma?

– Vamos – falei.

Com esse calor que faz no Norte...


terça-feira, 14 de maio de 2019



Não me acorde agora:
sou toda uma poesia naufragada.

Transbordou sem uso a minha tinta verde
para algumas casas, para alguns telhados.

Já não são mãos nem lábios
nem olhos através dos vidros.
Já não há vento,
nem sal nem cores no poente.

Aqui do alto
de todos os desejos serenados
sou o que sempre nasce, e basta.

Espalho-me
como as nuvens sobre o mar que amo,
até outros mares e de volta.

Acendo
nas luzes da minha cidade
e sou a própria estrela
alheia à confusão da noite.

Jamais me traga de volta
à superfície do tempo:

deixe-me viver o sono,
deixe-me ser sem palavras.

quarta-feira, 8 de maio de 2019


Nem uma nuvem e precisamos desesperadamente de uma sombra
Antes de atravessar a rua ele apertou a carta que levava no bolso
Como pra tirar alguma força dela
Um circo no Taguaparque
Um circo em Moscou
Um circo cheio de estrelas e que só pega fogo no melhor sentido
Precisamos de água atravessamos a cidade embaixo de um sol muito quente
Ele pensava Eu sou amado
Não
Tentava ler com os dedos a frase exata
A carta dizia Você vive em meu amor
Dizia Enquanto você existir não viverá em nenhum outro lugar porque eu não posso
É óbvio
No retrato que fazem as casas do teu mapa astral
E em nossas casas astrais
No mais profundo e calmo bem estar
Lugares de esticar os lábios em sorrisos quietos
Alguém ao nosso lado disse de repente Deciframos a tarde
Quantas vezes aqueles que imploram por luz
São cego à luz que jorram
Mas queremos nos sentar um pouco à sombra e ficar olhando enquanto os carros passam
Queremos muitas coisas por exemplo atenção queremos atenção o tempo todo e queremos o que não temos nem nunca teremos ou não teremos tão cedo
O cheiro dos gerânios em janeiro
Constelações têm outros desenhos quando vistas de dentro
Queríamos deixar claro o que nos incomoda e gritar bem alto Nunca se perdoe
Muita gente precisava mesmo de não se perdoar no mundo hoje
Mas essa gente nem ouve
E agora só não vemos a hora de chegar em casa
Tirou a mão do bolso e calculou a distância dos carros e a largura da pista e sua pressa e
Correu alucinadamente pensando em afagos repetidos até o descanso
Queríamos dizer a quem quer que fosse que ainda estivesse ouvindo
Perdoe-se você pelo menos
E vamos adiante e vamos logo não chore
Nós também te perdoamos