quarta-feira, 27 de maio de 2020
Vem o rapaz que é de Poconé e me diz Primo
Chegue lá tomá um pretinho com nóis
Ou Primo, aqui teu prato de comida
E eu sempre tão quieto que
A primeira coisa que me perguntaram aqui foi se
eu falava português
E isso depois de um bom tempo que eu já estava
lá no meio da conversa
Valeu
Agradecido
Obrigado
Não tenho mais muitas palavras pra dizer o
mesmo
Vem a mulher do Josias logo cedo
Chegue lá que eu trouxe um pão
Vem o Josias pedindo aos da casa
Pra tratarem o Forasteiro como um rei
E eu que nunca gostei de reis
Nunca tinha visto um rei tão bem tratado
Ontem chegou pros da casa um carro carregado de
compras
Quando voltei da estrada estavam lá os homens enchendo
a despensa
Botei minhas coisas de lado
Bagagem
Cansaço
Reinado
Jogue aqui um desses fardos de milho no meu
ombro
Quem precisa de palavras
Se os braços também
são gratos
terça-feira, 19 de maio de 2020
Eu precisava me sacrificar e não havia mais nada vivo, eu mal conseguia
me lembrar de que ser sombra é necessariamente ser a sombra de outra coisa. Então estava ali, na
mesa de uma padaria às duas e quinze da manhã, e a padaria estava meio suja e
era dessas que não fecha nunca e sempre há muita gente circulando, uma padaria
de rodoviária, eu estava sozinho e sem fome entre um punhado de pessoas sonolentas
que chegavam e partiam e já não sabia mais se a moça atrás do balcão me olhava
com pena ou tédio ou se queria apenas ir embora, então pedi um pingado, então
pedi que ela mudasse a estação de rádio, então risquei a mesa de madeira com a minha
última chave, então me olhei de fora e também passei por mim como se não me
visse, então eu quis imaginar o que diria se estivesse em um teatro e realmente
precisasse estar falando alguma coisa, então falei Menina você passe na
farmácia e traz de lá tudo o que achar porque eu preciso me curar de todas as
doenças do Universo, porque o meu corpo está vazio da mágica do mundo, porque
eu só tenho imagens e lembranças e um carinho inconfessável por desconhecidos,
porque você precisa caminhar um pouco eu sei você precisa tropeçar na sua alma
gêmea a qualquer momento, porque de alguma forma eu já me sinto em algum lugar
onde você não está presente e porque nada em minha vida se resolveria
simplesmente por eu afrouxar o nó da minha gravata. Do lado de fora, até mesmo
os motores dos carros e dos ônibus pareciam irritantemente silenciosos. Eu
precisava de uma sinfonia que me ensurdecesse, eu precisava ser atropelado e
que a matéria do meu corpo fosse estraçalhada, eu precisava ser consumido pelo
fogo, eu precisava morrer em todos os sentidos, eu precisava pelo menos rir de
alguém que passasse e me jogasse uma moeda como se eu fosse um mendigo, mas não
tinha graça, eu odiava aqueles relógios iluminados só com riscos pretos no
lugar dos números, eu sentia uma falta sem fim de alguém que não viria só
porque sei lá porque seu ônibus levantou voo na estrada e estava agora a poucos
metros de alcançar a lua.
segunda-feira, 11 de maio de 2020
Esse teu espelho bobo que reflete a superfície, que
gosto que ele tem de sangue, já vai se partir sob o peso das sombras, nem os
assassinados em praça pública te importam mais que o teu direito (!!!!!) de
fazer piadas com pretos pobres bichas todos que se arrastam humilhados até o
último grão de amor-próprio, a pólvora que você adora está inquieta pelas suas
vidas, essa lente boba que só faz com que você enxergue os próprios olhos,
ninguém quer conhecer a verdade, em subterrâneos almas inteiras devoradas pelos
monstros que elas mesmas esconderam lá, já são bem mais de mil os motivos que
temos pra querer a morte (e só precisávamos de um único), isso não passa em seu
filme, você mudaria o canal se passasse, mas lancem à jaula os poetas,
silenciem os artistas delicados, condenem à fome, é preciso não saber, ignorar
qualquer vestígio, somente assim a crueldade acaba, qualquer outra maneira
custaria muito caro e você não paga, não, não você, você não paga e nunca
pagará.
quinta-feira, 7 de maio de 2020
mal conseguia dividir com vírgulas e eu
tentando lhe explicar que a luz distorce o espaço,
que a luz anda tão rápido que o tempo deixa de
fazer sentido,
nem gostava de poesia e eu tentando lhe
explicar que num poema “eu” e “você” são pura imagem e não pessoas reais,
não querendo caminhar na superfície, longe dos
bares e cafés onde as definições de tudo tinham que ser sempre as menos óbvias
como “solidão é não ter pra quem ligar numa segunda à tarde”,
mas ela gostava do lugar-comum e eu nunca acreditei
nos homens que não choram,
gostava mesmo era dela,
acho até que muito mais do que seria
aconselhável se gostar de alguém,
não éramos opostos, só atraídos, até o dia em
que ela me deu as costas como se eu morresse, ou ela, e todos os sonhos
despencaram do seu castelo nas nuvens sem deixar nem ao menos um cheiro de
chuva,
seria mais fácil se as histórias inventadas
tivessem menos consequências reais,
seria mais fácil entender que um mais um não
são dois do que seguir em frente só um,
segunda-feira eu não liguei, ainda febril e
delirante achando que
sua raiva atravessava a cidade e reverberava
nas paredes do quarto em que eu passava a noite escura da minha alma,
durou bem mais do que mil anos,
e quando amanhecia,
saí pelas ruas visitando universos em que ela,
em nossos tempos, nunca teve coragem de me acompanhar,
casas de umbanda, teatro interativo, livros de
foucault,
numa conversa alguém me disse
“amarelo-almodóvar”,
um balconista a quem pedi cigarros perguntou
“há quanto tempo a gente tenta te dizer que não?”,
uma garota punk ao pé da escada me abraçou ao
meio-dia
e eu já não era aquele ser barroco estilhaçado agonizante
estranho aos deuses e à vida prática,
no fundo de um mar de mágoas
tentando respirar
entre as algas.
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