quinta-feira, 30 de julho de 2020

vem essa tempestade e lava
ainda correm os rios espelhando cidades e matas e
raios noturnos
ainda bradam os mares contra as rochas
vem essa água
e leva

algas e peixes e sede
vem essa tempestade e lembra
lágrimas de amor e raiva
suor

lambe essa tempestade aqui fora
ainda tombam cascatas ainda repousam lagos
ainda verte da terra e do céu sem que se saiba por
onde
começa

água
sobre as feridas sobre as calçadas
águas
passadas sobre os gramados e sobre os
telhados e asas
a tempestade ainda se arma
ainda
desaba

sexta-feira, 24 de julho de 2020

prece

por só mais um encontro casual com a sua urgência

a sua
IRRESPONSABILIDADE
a sua
INCONSEQUÊNCIA

morarei na sua memória só mais um instante, serei
abrigo ainda que os mesmos vidros que você estilhaça
sonharei nos seus sentidos, beberei
do seu sorriso o líquido suave e quente da alegria e graça
ainda que o mesmo bobo de que você tanto ri

SEUS OLHOS VOLTADOS PRA MIM
PRA MAIS UMA FOTGRAFIA

só mais um dia do seu amanhã-nós-vemos
mergulharei
na eternidade do seu agora
entre os braços entre as pernas entre
em glória

quarta-feira, 15 de julho de 2020

No princípio era um som eu só gostei de como soavam as três palavras juntas
Fragilidade
Frustração
Fracasso
Mas imagine isso na parede em vez daqueles quadros com diplomas e fotografias familiares
Nas salas de visitas
Meu deus as crianças não podem ver essas coisas
Cadê a redenção da arte
Pensei em construir um quarto triste um labirinto de nanquim ou duas lágrimas de arame
Ciclones
Em céus de
Celofane
E o silêncio segue sendo as sombras sobre a folha em branco assim sem brincadeira

sexta-feira, 10 de julho de 2020

Viajei sozinho pelo Nordeste por mais de um mês depois de ter conhecido Eva em João Pessoa. Daquela vez, tínhamos conversado muito pouco; havia sempre algum outro homem por perto investindo em uma relação mais íntima com ela – e embora ela não desse mostras de ter se envolvido, de fato, com nenhum deles, também não fazia nada pra que eles se afastassem. Nem chegamos a trocar celulares ou contatos no Facebook, daquela vez; mal nos despedimos antes de seguirmos cada qual o seu roteiro, mochilando no litoral nordestino. Agora eu estava em Barreirinhas, no Maranhão; tinha acabado de me informar sobre como chegar aos Lençóis e fui tomar um suco em uma padaria. Poucos minutos depois de eu ter chegado, Eva entrou, sozinha, e imediatamente olhou em minha direção.

Rever um rosto conhecido quando se está fazendo uma viagem longa como as nossas é sempre emocionante. Por mais superficial que tivesse sido nosso contato um mês antes, caímos nos braços um do outro e desatamos a conversar como velhos amigos que se reencontram cheios de novidades. Eva pediu uma cerveja e eu passei a acompanhá-la assim que terminei meu suco, e já estávamos na metade da segunda garrafa quando ela se sentiu à vontade pra dizer:

– Tenho que confessar que fiquei aliviada por você não ter dito nada do tipo “Eu não acredito em coincidências” ou “Nada acontece por acaso” quando a gente se encontrou...

Sorri. Não era a primeira vez que o meu percurso coincidia em mais de um ponto com o de outro mochileiro e, a julgar pelo comentário, o mesmo já devia ter acontecido a ela. Mas não podia deixar passar um tema de conversa tão interessante sem ser absolutamente sincero:

– Quando eu tinha uns dezessete anos, – falei – entrei em um caminho pro qual eu não estava preparado. Aconteceram umas coincidências muito estranhas na época, envolvendo sonhos e cartas psicografadas, e logo em seguida eu li um livro chamado A Profecia Celestina, que fala das coincidências de uma perspectiva mística. Mas eu tive que parar com aquelas coisas, não estavam me fazendo bem... Só depois de muitos anos voltei a dar alguma atenção a esse assunto. A verdade é que quanto mais você presta atenção às coincidências, mais elas acontecem. Em níveis cada vez mais profundos, e incluindo eventos que poderiam ser chamados de telepatia, precognição, clarividência... Pra mim, são eventos perfeitamente normais, mas entendo o ceticismo em torno disso.

Ela me encarava em silêncio, com um traço indisfarçável de desagrado no olhar. Era justamente por causa daquilo que eu não costumava, mesmo, dizer coisas do tipo “Nada acontece por acaso”. Como eu tinha acabado de falar, entendia o ceticismo em torno do assunto, e nunca tive vocação pra ser um pregador. Daquela vez, no entanto, o acaso tinha sido realmente generoso, e tudo o que precisei fazer foi tirar da mochila o livro que eu estava lendo.

– Abre aí na página marcada – falei, entregando o livro a ela.

Ela abriu.




Bem rápido, jogou o livro na mesa de forma um pouco teatral, mas sua expressão agora misturava raiva com divertimento.

– Eu não acredito nisso – falou.

Divertido, também, dei de ombros.

sábado, 4 de julho de 2020

Luzalegre, 25 de julho de 2012

Ruth;

minha querida, para as nossas bodas, te preparei um poema, mas queria mais que ele soasse como a minha voz ao teu ouvido, numa tarde ensolarada de domingo, passeando à beira de um lago. Com alguma brisa. Ao longo de todos esses anos, dia após dia repetimos “eu te amo”, sempre tão seguros de que aquilo que sentimos seja amor, nunca nos fez falta explicar nada disso a nós mesmos, e apesar de que nos amamos já de tantas formas diferentes, mesmo agora não existe outra verdade ou por que falar de outro jeito se não “eu te amo”.

Eu. Menino da primeira vez que te encontrei, crescendo enquanto você caminhava em minha direção no altar, vivendo, te vendo, vivendo e envelhecendo e ainda assim menino toda vez que te encontro, sei, por ter estado ao teu lado em cada ciclo de lua que passou, encontro na tua voz, no olhar, no gesto, reconheço no ir e vir das tuas marés, máscaras e lentes e palavras demais para um dia a dia vazio ou para o que é indizível, percebo o teu amor, recebo o teu amor, sou teu, sou grato, é como se a única realidade comprovável fosse mágica.

Te amo nas manhãs mais cinzas, nas semanas agitadas de muito trabalho, no vermelho do outono, no verso e na melodia, naquele tempo que você botou na cabeça que ia ser artista plástica e nós vendemos a brasília e transformamos a garagem em ateliê, nos nossos filhos, às vezes quando te odeio e sempre que estamos muito quietos distraídos ou maravilhados olhando uma paisagem, sinto um vulcão de sentimentos e sentidos, desejo despertando o corpo todo ou pétala de algum perfume que embriague, então o coração também tem personagens, então também a alma dos santos é uma legião de luzes e de sombras, é sempre novo o sopro que me move, e de toda vez eu me devolvo inteiro para o teu abraço.

Outro dia me ocorreu, é possível que eu tenha mais lembranças de nós dois juntos que de mim sozinho. E isso me pareceu grandioso e admirável, algo que poderíamos gravar em uma placa de bronze. Se era esse o livro da minha vida, se é assim que acaba, então aceito, sim, e pode até deixar que eu mesmo conto. Nenhum outro final faria mais justiça a esse ser feliz para sempre, desde aqui, para qualquer dos lados que se vá no tempo.

(Diários de Machu Picchu #04)