quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Era uma noite de muito vento e na Casa Velha ficava impossível dormir quando ventava daquele jeito à noite. Talvez por isso tantas pessoas tivessem enlouquecido ali, ao longo da tortuosa e ridiculamente comprida história de nossa família, e talvez por isso ela tenha ficado vazia por tantos anos antes que eu voltasse a morar lá, na vida adulta, muito mais por força das circunstâncias do que por vontade própria. Àquela altura, já estava em minhas mãos decidir o que fazer com ela, e se soubesse o que me custariam os anos que acabei ficando, com certeza teria me desfeito de tudo já naquela época – mas decidi lhe dar uma chance, e agora enfrentava as consequências da minha escolha conveniente e preguiçosa. Aquela noite de maio já seria triste o bastante sem o vendaval, porque a imagem de todas as coisas e pessoas que eu amava estava se dissolvendo em chuvas frias desde o início do outono, porque era um período obscuro na história do meu povo e milhares de pessoas morriam lá fora, porque naquela tarde eu tinha enterrado o último dos meus sonhos mais loucos e lá se iam dezenove anos que eu vivia sem mais ninguém na Casa Velha, ou talvez fossem trinta e cinco, ou cento e quarenta e quatro. Muitas vezes me perguntei se não teria me tornado só mais um dos fantasmas das histórias de meus avós, arrastando os pés pelos corredores intermináveis com as minhas mágoas e meus candelabros; às vezes, se me demorava, por exemplo, em uma das cadeiras do jardim de inverno, tinha a impressão de que já começava a fazer parte dela, de que não havia mais nenhuma diferença entre mim e qualquer outro móvel da casa; quase sempre me perdia na passagem do tempo, e me parecia que tinha acabado de fazer coisas que havia feito semanas ou até meses antes, ou podia achar que alguma coisa que eu tinha acabado de fazer, tinha feito anos atrás. Não sei o que me desprendeu da Casa Velha, afinal, de maneira tão definitiva, como uma força centrífuga, me arremessando para muito longe – alguma coisa que gritava, alucinada, no vento daquela noite de maio?, alguma coisa sangrava e rasgava em meu peito os últimos farrapos que de mim haviam restado, e aquilo queimava e era alívio, ardia como lava ardendo sob o fogo de um milhão de sóis e ao mesmo tempo era um bálsamo, uma surpresa tão única, tão grandiosa, como se só então o ar tivesse começado a existir e aquela fosse apenas a primeira vez que eu respirasse.