sexta-feira, 30 de outubro de 2020


 

Ainda rastejantes, agarrados aos livros de regras, desenhando seus rankings com o impulso infantil, mas vomitando teses, amontoados de palavras que se moldam às circunstâncias, convenientes, atribuídas aos deuses ou a qualquer grandeza arbitrária por trás da cegueira, desfilando a arrogância de se sacrificar por mentiras, a podridão de suas intenções mais puras, a lama escorrendo de suas consciências limpas, o demônio delicado e sorridente citando as escrituras.

A idolatria do confronto não bate palmas no portão, derruba a porta; não te pede um minuto pra falar sobre a intolerância, não tem livrinhos ilustrados com famílias felizes em seus mundinhos de gritos e agressões gratuitas, não pergunta se pode orar ou entoar louvores aos vencedores que nos desprezam, não convida a dar as mãos pra atirar outra pedra. Está em todas as mensagens, conforta com o seu humor destrutivo, embala o sono dos preguiçosos.

Seu pensamento de espuma, embriagado, não suporta por os pés no chão, vaga à deriva. Onde haveria encontro e realidade, onde pudesse haver uma prova concreta de estarmos juntos, um saber de estar sendo, há o borbulhar das bolhas virtuais e de avatares de desenho, as certezas encaminhadas de alguém qualquer de um qualquer grupo, a percepção amortecida por cliques. Agora algoritmos ditam os ritmos, a matemática de repetir o mesmo, no tom exato, o canto da sereia, as algemas, o vício de seguir alheio. E enquanto isso, a arte morreu no mercado, baleada perto do balcão das frutas, limões e pêssegos pisoteados, uvas, morangos, sangue de verdade.

Tenho ouvido as coisas mais lindas sobre o amor, mas por onde será que você anda a essa hora?

 


sábado, 24 de outubro de 2020


 

De onde eu estava, se olhasse em direção a Antero, podia ver tatuada em seu braço direito, em letra cursiva, a palavra “alhures”, embora eu não conseguisse ler àquela distância. Próximo a ele, um pouco à sua esquerda, estava a fonte do barulho constante que ouvíamos: as águas que despencavam em meio às pedras rumo ao Urubamba, lá embaixo, atravessando por entre as calçadas de Machu Picchu Pueblo. Eu estava confortável em um banco de madeira escura, e tinha a palma da mão direita virada pra cima a poucos centímetros da palma da mão esquerda de Ruth, que tinha a palma da mão direita virada pra cima a poucos centímetros da palma da minha mão esquerda, em um exercício que Antero insistiu pra que ela fizesse também comigo, depois de tê-lo impressionado tanto no dia anterior, e que ele agora retratava a lápis em seus próprios diários de Machu Picchu, perto do fim de uma tarde quente de segunda-feira.

Havia algo de muito familiar na voz de Ruth, assim como nas palavras, e uma profundidade tão grande em seu olhar que eu mal conseguia desviar os olhos. Uma transparência única, permitindo entrever o colorido assombroso de uma alma que se estendia pra muito além, misteriosa e ao mesmo tempo simples e direta, de longe uma das pessoas mais fascinantes que já tive a felicidade de conhecer. Seu exercício não era mais do que uma leitura de aura, mas feita por ela, realmente, impressionava até mesmo alguém mais acostumado a coisas do gênero, como era o meu caso. Apenas percebendo as minhas energias, Ruth foi capaz de contar detalhes sobre várias épocas da minha vida, desde a infância, segredos que talvez eu preferisse esconder até de mim mesmo, revoltas, mágoas, medos: ela não deixava passar nada, e aparentemente toda a minha história, pensamentos, sentimentos, até os menores detalhes, estavam impressos em meu corpo e minhas energias de forma que qualquer um pudesse ler.

Aquilo tudo mexeu comigo a tal ponto que eu mal consigo me lembrar do que aconteceu no restante da noite, só que, mais tarde, quando as coisas começaram a ficar silenciosas demais, não aguentei ficar fechado em meu quarto e saí pra caminhar um pouco, tentando arejar a cabeça. Eu me sentia pesado e tenso, discutindo em pensamentos com vozes do passado e de um presente indefinido, vendo sangrarem de novo feridas fechadas havia tanto tempo, e em poucos minutos de caminhada, atravessando o silêncio desabitado de um povoado mágico demais pra minha miséria humana, estava chorando e xingando baixo, como se pudesse me livrar de tudo apenas dando um fiozinho de voz à minha raiva e agitando os braços. E quando me sentei à murada de um canteiro alto, onde havia somente uma árvore não muito maior do que eu, o choro que eu chorava já era de outra espécie, mais um lamento sem força, um choro meio que de quem desiste.

Uma oração cansada. Um desabafo pra ninguém. Eu carregava o mundo nos ombros, remorsos, fracassos, derrotas consecutivas pra inércia ou dependentes do ódio, um padrão miserável e bestial de ser homem, por que, Deus, fizeste de mim poeta em um tempo assim? Então uma vida repetidas vezes desperdiçada, aquela solidão deserta de um vazio intergaláctico, se não fosse sempre só eu esquecido na noite, sem ter sido chamado, nem ouvido, nem muito vagamente alcançado.

Acho que já não chorava quando a silhueta de um casal apareceu sobre a ponte, mas o fato é que, mesmo de longe, estava fácil de ler o quanto eu estava abatido, ali cabisbaixo, talvez ainda resmungando alguma coisa. Os dois não hesitaram em vir me ajudar – não sei se já tinham me reconhecido, é bem provável que sim. Só fui reconhecê-los quando chegaram bem perto, mas nenhum de nós disse uma única palavra. Antero se sentou à minha direita, Ruth, à minha esquerda. Passaram os braços pelas minhas costas, encostaram suas cabeças em meus ombros. E ali ficaram, quietos. Por longos, longos minutos.

Então Antero disse Eu sou teu pai, e pouco depois Ruth falou também Eu sou tua mãe.

Aí logo em seguida ele falou Eu sou teu filho, e ela também Eu sou tua filha.

E por último disseram quase ao mesmo tempo Eu sou teu irmão, Eu sou tua irmã.


 


 

domingo, 18 de outubro de 2020


 


 

Não pense que agora é tarde
Podia parecer só um filme
Eu era aquele estranho caminhando na tua lua
Por que você não foge por uns dias vai morar lá em casa
Leva o violão
Tem dias da gente ser herói
E dias da gente precisar de um
Quero namorar com você desde menino
Não pense que agora é tarde
Eu lembro o que você sempre dizia
Quero ser esse caleidoscópio de te ouvir
A gente parte pro sequestro mútuo
A culpa não é de ninguém
Tem um céu que a gente ajeita como pode
E outro que a gente gosta assim mesmo bagunçado
Vem falar beijo de língua
Não pense que agora é tarde
Aperta o mudo a gente fala tudo sobre qualquer nada
Eu lembro que você gostava da palavra almíscar
O resto a gente aposta em sinais verdes no caminho
Todo o cardápio de delícias sensoriais e metafísicas
Tem dias que não tem herói
Mas a gente faz bolinho de chuva
Arrisco até um “sem fim”
Não pense que agora é tarde


 

quarta-feira, 7 de outubro de 2020


 

como eu tinha que falar muito rápido e não sabia se você estava reparando o quanto eu mal podia acreditar que você estava ouvindo um pensamento que era um fiozinho solto e quando eu fui puxar desfiou tanta coisa que eu queria que você soubesse e nem sabia como se transforma em palavra que se entenda esse amontoado de um emaranhado de um bolo de um rolo de um novelo de um monte de coisas interligadas que a gente é




As duas foram se sentar ali porque gostavam de como podiam ter a ilusão de estarem longe da cidade ou daqueles tempos loucos em que viviam especialmente se alguém passeasse de canoa no lago mas também porque aquela era a melhor chance que tinham pra se ver durante a semana e tinham pouco mais de uma hora ela acordando pra encarar um turno da noite na farmácia e ela de passagem entre um lado e outro da cidade entre um emprego e outro entre uma angústia e outra mas naquela tarde as duas mal olhavam a paisagem distraídas que estavam com seus celulares e o wi-fi da lanchonete até que uma delas pegou do bolso um pedaço de papel rabiscou alguma coisa e entregou à outra


VOCÊ SE LEMBRA DE COMO ERA CONHECER PESSOAS 
ANTES DOS CELULARES E DA INTERNET?


como eu não tinha ideia do quanto faltava pra quem via de fora até que estivesse completa a imagem o sentimento a ideia cuja realidade reunia aquelas frases todas que iam como locomotiva eu achava que você só conhecia uma parte e parecia que se eu parasse então a própria essência de quem eu era se dissolveria assim de repente como se a voz fosse a minha substância e aquele conjunto pobre de sons espalhados no tempo algo que realmente manifestasse a totalidade da minha existência