quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Escuridão completa. Ar que faltava. Era quase impossível se mover ali: estava embaixo da terra. Debateu-se o quanto pode, tentou abrir caminho através da terra que pesava sobre seu corpo – em vão. Estava em desespero e não podia mais respirar, tentou gritar, mas isso serviu apenas para que entrasse ainda mais terra em sua boca. Era o fim, o oxigênio tinha acabado. Seu coração em breve pararia de bater.

Demorou um pouco para entender quando simplesmente desapareceu dali e ressurgiu em um espaço aberto. Seus olhos, ainda recuperando a visão, custaram a entender o chão de pedras soltas e as altas paredes escuras de um buraco muito fundo. Uma espécie de poço que havia secado, mas bem mais largo que o comum. As pedras do tamanho de punhos sobre as quais estava tinham, quase todas, alguma mancha de sangue. E em sua boca, também: sentia gosto de sangue.

Não conseguia se lembrar direito de nada que vivera antes, mas quando apalpou o próprio corpo e encontrou um pequeno aparelho em um dos bolsos do casaco, soube imediatamente que era um aparelho de trocar mensagens e que sempre o havia carregado consigo. Num impulso, começou a escrever com urgência: “Não entendo o que houve. Estou com medo.” A mensagem permaneceu ali pelo que pareceram várias horas antes que a resposta viesse, simples, mas profundamente reconfortante: “Nós te amamos”.

Inspirou profundamente, sentindo seu corpo e seu espírito se encherem outra vez de confiança – e, neste exato momento, vinda não se sabe de onde, uma pedra acertou em cheio a sua nuca, ofuscando outra vez a sua visão e roubando-lhe o equilíbrio por alguns instantes.

Quando se recobrou, percebeu que havia se teletransportado uma vez mais. Estava agora em um antigo parque de diversões abandonado, com barracas e brinquedos enferrujados e retorcidos sendo já engolidos por uma vegetação muito alta. No entanto, estava escuro demais, mal se conseguia distinguir todas essas coisas. E logo se deu conta, com uma pontada de apreensão, que a vegetação farfalhava, a cada pouco, como se um bicho grande se movesse por ali.

– Isso sim é que é saúde! – disse uma voz forte, acompanhada por uma animada música de fundo, em uma televisão que simplesmente se ligou sozinha a uns poucos metros dali. Era um programa de ginástica, aparentemente, com homens e mulheres de corpos esculturais, sorrisos de plástico e belezas previsíveis. – Observem essas formas perfeitas – dizia o apresentador. – Vejam que curvas mais maravilhosas! Que deliciosos esses peitos, você não tem vontade de comer aquelas coxas?

Conforme o apresentador falava, os homens e mulheres que até então repetiam os gestos de algum exercício aeróbico iam pouco a pouco se despindo e se aproximando uns dos outros, em uma dança sensual que lentamente foi se transformando em uma grande orgia, sempre sob a narração animada do homem que ressaltava a perfeição e atração irresistíveis daqueles corpos e movimentos.

Então a TV foi desligada, sobrando apenas um sussurro de centenas de bocas espalhadas pelo parque dizendo coisas incompreensíveis. Demorou para que seus olhos voltassem a se adaptar ao escuro e começassem a perceber os vultos, os pares de olhos vermelhos e brilhantes voltados em sua direção. “Não sobrará nada”, era o que diziam – e iam falando cada vez mais alto, até que, de repente, algo muito grande se destacou em meio à vegetação e começou a avançar rápido em sua direção.

No instante seguinte, estava em uma sala dourada e muito movimentada que era a recepção de algum grande edifício, diante de um balcão sobre o qual um pequeno cachorro latia à sua chegada, enquanto uma mulher de roupas e maquiagem a um mesmo tempo formais e vulgares, de trás do balcão, tentava acalmar o cãozinho com carinhos e sussurros e biscoitos. Na parede às costas dela, em letras douradas e muito grandes, lia-se: ESTAMOS CRESCENDO ECONOMICAMENTE. À esquerda do balcão, uma grande porta fechada por onde ninguém entrava nem saía; e à direita, uma pequena porta por onde entravam e saíam pessoas o tempo todo, identificada pela legenda: “Entrada dos trabalhadores”. Ao lado da porta, em letras minúsculas, havia um cartaz dizendo: “Se você entrar descalço, estará colocando em risco a própria vida e a de outras pessoas”.

Reparou, então, nos pés das pessoas que circulavam por ali e constatou, para sua surpresa, que a maioria delas entrava e saía descalça por aquela porta.

– Por que vocês estão fazendo isso? – perguntou bem alto aos que passavam. E, apontando para o cartaz: – Vocês não estão vendo o que está escrito ali?

Quase ninguém pareceu escutar; somente duas ou três pessoas pararam e um único homem ficou parado por tempo o suficiente para responder:

– Bem, nós precisamos trabalhar para comprar sapatos.

E tudo continuou exatamente como antes.

Aproximou-se, então, do balcão e perguntou à recepcionista se não era possível fazer nada para reduzir aquele risco, ou se, no mínimo, não era possível oferecer sapatos aos trabalhadores.

– Ah, aquilo ali... – desdenhou a recepcionista. – É invenção da mídia alarmista, não tem nada acontecendo de verdade.

Mas naquele instante, quatro pessoas descalças saíram cambaleando pela porta pequena e tombaram, visivelmente mortas, ali mesmo no saguão de entrada.

Sem se conformar, exigiu, então, uma audiência com os responsáveis por aquilo – o que só fez deixar o cachorrinho sobre o balcão cada vez mais agitado. E foi essa, aliás, a única inquietação que mereceu alguma atenção por parte da recepcionista.

– Calma, Governo, não precisa ficar bravo – repetia, acariciando-lhe a cabeça. E depois, toda sorridente, explicou: – É o cachorrinho deles, sabe? Não é uma gracinha? Mas ciumento demais, coitadinho, não deixa ninguém chegar perto dos papaizinhos dele, né, meu amorzinho? Os Senhores da Vida na Terra não podem receber ninguém, neste momento, é óbvio. Você não sabe ler? – disse, apontando para a frase em letras imensas na parede às suas costas.

Viu-se então em uma espécie de açougue ou abatedouro, com corpos humanos esquartejados ou ensanguentados pendurados por todos os cantos, enquanto uma voz macabra, grave e muito baixa, repetia lentamente: “Observem essas formas perfeitas... Vejam que curvas mais maravilhosas...”

E, finalmente, vindo de lugar nenhum, um ser encapuzado e imenso saltou, de repente, à sua frente, pousando garras afiadas bem no centro do seu peito.

– Não sobrará nada de você! – urrou.

Tombou para trás com o susto e com o impacto de algo que aparentemente acabara de se desprender do seu corpo, exatamente a partir daquele ponto que havia sido tocado. Sentiu as pedras ao cair, percebeu a escuridão à sua volta e soube que estava de volta ao mesmo buraco de antes. Tentou se concentrar em entender o que havia se desprendido, o que era aquilo que continuava sentindo para além de si, mas era uma sensação confusa, totalmente inexplicável. Não sabia dizer onde acabava o seu corpo e começava aquela enorme figura luminosa que se espalhava, leve e fluida, à sua frente. “Alma”, pensou, e lhe pareceu então que tudo no mundo se encheu de serenidade e de sentido, que tudo era uma coisa só e que só o que existia de verdade era o Amor.

Quando a figura desapareceu, restava apenas o céu estrelado, lá no alto, recortado pelas bordas sombrias daquele buraco. Mas tudo era paz, tudo era de uma beleza interminável. “A vida é boa”, sussurrou, talvez até com um sorriso nos lábios.

Não demorou para as pedras começarem a chover. De qualquer forma, não teve tempo de entender que era uma chuva: logo as pedradas apagaram o que ainda lhe restava de consciência.

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