O que havia de mais estranho naquele buraco que lhe serviu de prisão por tanto tempo era que suas paredes não eram feitas de pedras, nem de terra, nem de nada sólido o suficiente para que se pudesse escalar: eram paredes feitas simplesmente de trevas. Algumas vezes tinha tentado avançar dentro delas, mas era como se se movesse em uma piscina cheia de um líquido muito denso, e invariavelmente acabava caindo de volta para dentro do buraco.
Outra característica que logo se tornou evidente era que toda vez que tentava invocar a Alma, ou se lhe ocorressem sentimentos positivos e muito intensos, especialmente de amor-próprio (ou mesmo uma simples alegria), pedras eram arremessadas das direções mais improváveis para lhe atingir, geralmente até a inconsciência.
E, por fim: havia pouco tempo, tinha começado a receber a visita dos Abutres.
Todos os dias, a uma certa hora da tarde, seus braços e pernas eram amarrados nas extremidades de uma espécie de mesa de pedra e os Abutres conversavam, animados, à sua volta, no que para eles era um delicioso e interminável banquete.
– Vocês acham que um serzinho tão insignificante – perguntavam uns aos outros – merece o mais vago lampejo, que seja, de uma sensação de liberdade?
Então gargalhavam e respondiam-se “não”, “nunca”, “jamais”, e depois lhe arrancavam alguma parte do corpo com seus grandes e afiados bicos.
A dor era insuportável e durava um longo tempo até que, de repente, a parte do corpo que tinha sido arrancada voltava a crescer - o que, por um lado, era bom e provocava um certo alívio, mas por outro, significava apenas mais comida para os Abutres.
“Não sei se algum dia isso vai parar”, escreveu, certa vez, no pequeno aparelho de trocar mensagens que carregava sempre em seu bolso. “Não sei se eu consigo aguentar: a dor e a solidão são insuportáveis. Não há nada de bom nessa existência estúpida, nada neste mundo foi feito para mim. Será que alguém se importa de verdade? Será que vocês estão aí, realmente, ouvindo?” E a resposta vinha, sempre e invariavelmente dizendo: “Nós te amamos.”
– Vocês acham – perguntavam-se os Abutres – que um pequeno verme como este, vitimista e nada autêntico, um animalzinho sujo e repugnante assim poderia algum dia conhecer verdadeiramente o amor?
E os outros riam e diziam “não”, “nunca”, “jamais”, e arrancavam-lhe outra parte do corpo.
Numa dessas ocasiões, no mesmo instante em que o bico de um Abutre perfurou sua carne, desapareceu dali e reapareceu em um cubículo tão apertado que mais parecia um caixão colocado na vertical – mas com uma tampa de vidro que lhe permitia ver, muito ao longe, um bebê deitado no chão, iluminado por um pequeno feixe de luz, agitando os braços e as pernas.
Não fosse isso prendendo a sua atenção, talvez entrasse em desespero. Mas logo o bebê se revirou e começou a engatinhar em sua direção, incrivelmente devagar, crescendo na exata velocidade em que se aproximava. E então reconheceu seus próprios traços no rosto do bebê, e foi assistindo ao que era claramente o seu próprio crescimento: primeiro, deixou de engatinhar para se equilibrar sobre as duas pernas; depois avançou sem nenhuma pressa por toda a infância até chegar à puberdade; então, passou a adolescência se distraindo e vagando em várias direções aleatórias; até que finalmente chegou à idade adulta e voltou a levar mais tempo andando em linha reta, rumo ao que pelo visto era o seu túmulo final, mas sem nunca deixar de experimentar outras direções até chegar à velhice. E mesmo quando passou a se apoiar em uma bengala, ou quando seus ombros e costas encurvaram e os passos foram ficando cada vez mais arrastados e curtos, ainda se desviava, às vezes, perseguindo qualquer outra coisa diferente de apenas seguir em frente.
– Vocês acham – ouviu um Abutre perguntar – que é correto uma pessoa dessa idade se comportar dessa maneira?
“Não”, “nunca”, “jamais”, responderam os outros, às gargalhadas, e lhe arrancaram outra parte do corpo.
– Vocês acham que um homem de verdade – começou a perguntar um deles, mas então todos se calaram de repente, subitamente incertos.
– Uma mulher, talvez...? – arriscou outro.
Começaram a discutir, expressando as mais variadas opiniões e sem conseguirem chegar a uma conclusão satisfatória, até que um deles perguntou bem alto e com raiva:
– Vocês acham que uma criatura tem o direito de não ser claramente macho ou fêmea?
“Não”, “nunca”, “jamais”, responderam os outros, cheios de nojo e indignação, e atacaram todos juntos até lhe despedaçarem completamente o corpo.
Reapareceu, então, diante de um grande prédio onde sabia, de alguma forma, que se encontravam os Senhores da Vida na Terra. Em frente ao prédio, soldados fortemente armados defendiam a entrada e, diante deles, havia essa figura que mais parecia uma pequena montanha de medalhinhas reluzentes e tiritantes.
– Estamos crescendo economicamente! – bradava. – Nada é mais importante do que isso, nada pode nos atrapalhar agora! Portanto, atenção, soldados! Esmaguem até os menores focos de rebeldia e insubordinação!
Ao que todos os outros respondiam em coro:
– Sim, senhor, General. Sim, senhor.
– Como é que a gente lida com os problemas? – gritou o General.
– Tiro, porrada e bomba! – cantaram os soldados, repetindo várias vezes o refrão e parecendo, por um instante, que estavam em uma grande festa.
Das janelas do prédio, cadáveres eram arremessados a todo momento, num espetáculo de horror tão doloroso quanto ter seu próprio corpo constantemente dilacerado. Sem a menor sombra de medo, aproximou-se do General para pedir que aquilo parasse, ou que ele ao menos lhe permitisse falar com os Senhores da Vida na Terra para apresentar seus argumentos. Quando se aproximava, ouviu o General se gabando de suas medalhas para um dos soldados, que ouvia fascinado, como se estivesse sendo agraciado pela presença de um deus:
– Esta aqui foi por não ter assediado uma jovem qualquer que eu encontrei na rua. Esta outra, por ter inventado a missão onde eu ganhei esta outra, e esta aqui foi quando eu aprendi a abrir uma lata de sardinha. Esta aqui...
Nunca soube como aquilo terminava, se terminava, porque no instante seguinte estava de volta à sua prisão no buraco. Os Abutres não estavam mais lá, mas não havia a menor garantia de que não retornariam em breve. Deitou-se, ajeitando-se como pode sobre as pedras, para quem sabe alguns minutos de um sono restaurador - se tivesse sorte. E isso se ter sorte demais não fosse lhe render também umas pedradas.
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