Colón - Argentina
Rio Uruguai, fronteira com o Uruguai
"E se vierem cantores e bailarinos e tocadores de
flauta
– comprai também seus dons.
Pois eles também coletam frutas e olíbano, e o que trazem,
apesar de feitos de sonhos,
são vestimentas e alimentos para as vossas
almas."
(Khalil Gibran, O Profeta)
Dia 2.
O dia
inteiro subindo e descendo essa ladeira entre o camping e o centro da cidade
para resolver assuntos burocráticos de uma vida que já não é minha, faz a gente
pensar, será que a vida é mais minha agora? É, eu penso demais, fiquei pensando
por que será que na Argentina chamam as lan houses de cyber café mesmo
se na maioria dos casos não tem café nenhum sendo servido no local. Aliás,
também nunca entendi por que no Brasil chamamos as lan houses de lan houses,
mas é assim, a gente não pergunta o significado do rio. Ou então, antes de
tudo, eu perguntaria por que é que na Argentina, no Uruguai e talvez em países
de língua espanhola no geral, as pessoas dizem "de nada" como se o
seu "obrigado" tivesse sido uma ofensa grave, ou sei lá, é engraçado,
você diz gracias e a pessoa agita a mão no ar como se espantasse uma
mosca, impaciente, ¡ah! ¡por favor!.
# Mas
para que pensar nisso quando se tem pela frente toda a vastidão dourada da
Terra e acontecimentos imprevisíveis de todos os tipos estão à espera, de
tocaia, para te surpreender e te fazer ficar satisfeito simplesmente por estar
vivo para presenciá-los?
Quem
poderia imaginar, por exemplo, que eu viria acampar aqui nos mesmos dias que o
grupo de teatro mais improvável de que já tive notícia: um grupo mambembe de
jovens cristãos, não ligados a nenhuma igreja, com um repertório incluindo
várias adaptações de histórias bíblicas, discussões de atualidades e lições dos
evangelhos, além de uma prática interessante de improvisações em apresentações
de rua. Andaram excursionando pelo Uruguai, agora estão fazendo uma pausa em
Colón antes de iniciar um novo giro pela Argentina. Tudo ao contrário dos meus
caminhos de agora... Tudo? Não, nem tudo.
No fim
da tarde, terminei de ler O Profeta e fiz como decidi que ia fazer em
toda a viagem: larguei o livro exatamente no lugar em que acabei de ler. No
caso, era um pequeno muro de pedras perto do rio. Fotografei, antes, o desenho
que fiz no verso da capa, aquela rosa em chamas – a parte mais triste de me
desfazer do livro é ter que me desfazer também desse desenho. Mas aí aconteceu
isso, agora há pouco voltei a ver o livro nas mãos de uma moça lá na
arquibancada da quadra de esportes. Eu estava voltando dos vestiários, tinha
ido escovar os dentes, e de repente escutei alguém gritar "Cristina,
Cristina", aí fui olhar, ela estava lá, com apenas a capa do livro aberta.
Acho que na hora eu sorri. Não sorri? Devo ter sorrido.
* Tente
ter amor pelas próprias perguntas, como quartos fechados e como livros escritos
em uma língua estrangeira. Não investigue agora as respostas que não lhe podem
ser dadas, porque não poderia vivê-las. E é disto que se trata, de viver tudo. Viva
agora as perguntas.
Dia 5.
Ficamos
conversando na arquibancada da quadra de esportes, nem vimos quando anoiteceu.
Eu e o Juan começamos a provocar os outros dois para descer até a quadra e
declamar um poema cada um, já que eles insistiam em dizer que gostavam, sim, de
teatro, que conheciam poetas, que não eram pibes sem cultura. No fim fui
eu que acabei abrindo o meu caderno e lendo para eles alguns trechos do
(#) On the road, de Jack Kerouac; e do
(*)
Cartas a um jovem poeta, do Rainer Maria Rilke.
–
Vocês vão gostar disso aqui, olha só – falei, mostrando no caderno. – É uma
carta de um titereiro venezuelano que queria morar em Colón e escreve pedindo
ajuda para comprar uma casa. E termina dizendo: “Mas a casa tem que ter uma
árvore. Entendeu? Mesmo que a casa seja somente uma árvore. Eu sei que à sombra
de uma árvore em Colón podem viver maravilhosamente uma mulher, um homem, seis
crianças, uma cadela, dois gatos e alguns amigos que queiram conversar e tomar
vinho.”
Todos
concordaram, é claro, estava óbvio. Bom, pelo menos assim deixei passar mais
uma ótima oportunidade de declamar um dos sete mil, oitocentos e trinta e dois
sonetos que decorei entre a infância e a adolescência – lamento, Cruz e Souza,
eu nem saberia como fazer isso em espanhol. Aí o Juan se animou, desceu as
arquibancadas e parou perto do círculo central, virou-se para nós para o que
esperávamos que fosse a apresentação de algo bíblico ou cristão ou, sei lá,
qualquer das coisas que ele faça lá na trupe, mas ele começou a dizer o coração
da noite é escuro e eu não sei onde estou indo e não sei se vale o perigo de
ir, embora o perigo seja quase um destino em si mesmo, e dentro do casaco tem um
bilhete que eu não entreguei por covardia, um número de telefone que eu não
tenho, uma voz que eu não tenho, pernas, movimento, o vento seco vem dançar sem
graça na concha vazia de um ponto de ônibus, e ali
Nunca
soubemos como terminava aquilo porque nessa hora a quadra foi invadida por um
grupo pequeno mas terrivelmente barulhento de crianças com uma dessas bolas
gigantes e leves e muito alaranjadas e fluorescentes.
* Não
temos motivo algum para desconfiar de nosso mundo, pois ele não está contra
nós. Caso possua terrores, são nossos terrores, caso surjam abismos,
esses abismos pertencem a nós; caso existam perigos, então precisamos aprender
a amá-los.
Dia 7.
Éramos apenas eu, Juan e Cristina à beira do Uruguai. Eles contavam histórias da trupe, eu falava sobre as minhas próprias crenças cristãs e de como é raro encontrar pessoas que consigam diferenciar o cristianismo desse igrejismo todo de hoje. Quem dirá um grupo grande de pessoas que, além disso, viajam juntas por aí fazendo arte. Eu mal sabia expressar o quanto admirava os dois, e como sabia que aquele momento que estávamos já estava sendo gravado para sempre na minha memória. Os dois seguravam as mãos, às vezes, depois soltavam, livres e um do outro - e em paz. Sim, estávamos em paz, os três.
Então eu contei que não era batizado porque na igreja dos meus pais uma pessoa só se batiza quando ela quer, se quer. E o Juan disse que Jesus mandou batizar todo mundo, inclusive as crianças, e eu disse é mesmo, ele fez isso quando foi se batizar no deserto e falou pra multidão sair e batizar todo mundo, não que só os sacerdotes podiam batizar ou que elas só podiam ser batizadas depois de duzentos séculos de escola dominical. Aí a Cristina disse muito bem, mas se não precisa nem de um sacerdote para se batizar então você não tem nenhuma desculpa para não ser batizado ainda. E depois falou vamos te batizar agora se você quiser.
* As coisas em geral não são tão fáceis de apreender e dizer como normalmente nos querem levar a acreditar; a maioria dos acontecimentos é indizível, realiza-se em um espaço que nunca uma palavra penetrou.
Tantas coisas convergiam naquele instante, era um desses momentos tão raros em que nos sentimos fazendo algo que estávamos predestinados a fazer, ao mesmo tempo em que não abrimos mão do livre arbítrio. Sim, somente assim eu poderia ter sido batizado, só poderia ter sido aqui, só neste amanhecer.
# ... e enquanto o rio descia pelo centro da América, sob a luz das estrelas, compreendi loucamente que tudo que eu jamais conhecera e tudo o quanto haveria de conhecer era apenas Um.
Dia 10.
Um jogo de amarelinha na calçada e complexas relações de
ideias que eu levaria muito tempo tentando explicar me levaram de repente a
fantasiar que voltarei a encontrar Juan e Cristina em algum outro lugar da
Argentina em minha viagem, que os nossos caminhos vão se cruzar de novo sem que
seja preciso fazer nada para garantir isso, que é só continuar
indo em frente, cada um por seus caminhos, e vamos nos encontrar de novo como
se estivéssemos nos procurando.
# Que sensação é essa, quando você está se afastando das
pessoas e elas retrocedem na planície até você ver o espectro delas se
dissolvendo? - é o vasto mundo nos engolindo, e é o adeus. Mas nos jogamos em
frente, rumo à próxima aventura louca sob o céu.
Terminei de guardar as coisas na mochila e saí sem ter mais
de quem me despedir. O camping parecia mais triste sem o grupo deles por lá,
mas nem por isso achei fácil ir embora. Talvez ainda pensasse naquela história
da casa-com-uma-árvore-mesmo-que-a-casa-seja-só-a-árvore. Mas também ainda
pensava que eu podia ter ido embora com a trupe, ou que podia ir a Buenos Aires
antes de cruzar a fronteira com o Uruguai, ou que tantas coisas, tantas. A
bagunça ainda está grande, afinal, não caiu nenhum raio do céu, não adquiri
nenhum superpoder inesperado, o que doía continua doendo, às vezes muito, às
vezes igual.
* Não calcular nem contar; amadurecer como uma árvore que não
apressa a sua seiva e permanece confiante durante as tempestades da primavera,
sem temor de que o verão não possa vir depois. Ele vem apesar de tudo.
Comprei
passagem para o próximo horário, mas tinha ainda muito tempo e decidi começar a
ler meu próximo livro ali mesmo, enquanto esperava. Resisti à tentação do cyber
café, mas não à de um café de verdade, que no fim acabou combinando muito bem
com a leitura. Quando estava saindo, me despedi do garçom, e quando agradeci
pelo atendimento, ele revirou os olhos e respondeu aborrecido ¡no hay por que!.