sábado, 26 de fevereiro de 2022


(Diários de Machu Picchu #06)
Corre. Finge que é poesia. Mares e vales, neve e sussurros em francês. Hoje estamos todos presos no albergue, porque lá fora chove. Deve existir um amor assim, puro silêncio, pura preguiça de falar mais alto ou de molhar os dedos na água fria pra lavar a louça. Se alguém espiar sobre o meu ombro enquanto escrevo, fará a gentileza de não entender uma só palavra. Ou tudo se pode deduzir? Sim?, não?, sim, não, sim, músicas legais. O livro me faz meditar. Me faz viajar. Um bosque, a eterna bem-amada, as folhas secas, tudo é muito outono. Talvez eu fosse mais feliz em outros termos, só que agora me lancei e vou adiante. Finge que é memória. Lobos marinhos pintados na porta, e a esta hora você está no trabalho. Por que você não toca música brasileira? Olha só, você vai gostar, sorrisos nas fotografias. Estou virando um rio, estou saciando a minha própria sede, estou limpo e revolto e nunca mais vou voltar, nunca mais, nunca mais, nunca, nunca, mais, mais. Não é permitido amar dessa maneira. É imoral, é criminoso amar dessa maneira – arrasto a lama e lixo e pedras, às vezes, sou assim. Só corre, finge que é metáfora. Só aprende. Só me encontra no meio do caminho. Hoje é segunda-feira e pelas minhas previsões eu deveria ser outro, mas talvez eu tenha me enganado. Talvez. Talvez. E quem vai escrever meu nome em outra língua? Mencionar nos seus relatos meus cabelos soltos sobre as páginas? Quem me ouviu, quem me acordou hoje cedo, me diz como é o seu nome, ou então dorme. Finge que sou eu que estou sonhando. Não é necessário que você saiba. Não é necessário que ninguém entenda. Nunca foi preciso que eu falasse. Nunca foi. Nunca. Nunca. Foi.


 

sábado, 19 de fevereiro de 2022


 

sim more em mim 
até que eu já não seja corpo nem casa 
enquanto eu puder ser nada 
durma em mim e 
dance e 
veja-se e invente-se em mim 
e seja-se em mim 
aí 
desde a tua própria luz 
e cante-se-me 
cante-me-se 
cante 
até que eu já não seja a voz 
e não pertença à linguagem


 


 

sábado, 12 de fevereiro de 2022


 


 

Ou das palavras só o fel 
Ou dos que nunca se ferem 
Ou dos mergulhos sem fim 
Ou dessas superfícies breves 

Ou dessas sobras sem vida 
Ou dos vazios envernizados 
Ou dos enganos nas nuvens 
Ou do que é certo no inferno 

Ou das erupções sem terra 
Ou dos silêncios sem escuta 
Ou de agressões confortáveis 
Ou desses afetos que evadem 

Ou desses voos sem vertigem 
Ou dos delírios sem verdade 
Ou das vertigens sem voo 
Ou do que sempre ainda falte 

Só não se faça


 

sábado, 5 de fevereiro de 2022


 

Teve a impressão de já ter vivido aquilo, em outros tempos, ou algo muito parecido, e sentia que o seu coração secava com uma dor cortante como a aurora sobre o deserto. Como se em todos os lugares habitasse a mágoa de ser só, mesmo que ecoassem multidões em festa, ele sentia os olhos úmidos, e então tentava não pensar. Cartazes contra o amor sem fim, daqueles que transbordam, códigos de como confessar qualquer mentira que o fizesse parecer humano, as farsas que iam acumulando no espaço pequeno demais antes do abismo que o separava do mundo, e lá longe um vulcão cheio de neve no topo. Teve a sensação de já ter tentado antes, inutilmente, mas ainda assim se debatia contra o peso inquieto de existir, apenas insustentável. 

Mal reparou quando ela veio sentar-se ao seu lado, silenciosa, com a cabeça erguida em outra direção. Talvez nem tenha reparado de imediato no perfume, certamente não ouvia, ainda, a respiração que em breve estaria sincronizada com a dele. Por sorte, conteve um soluço, embora suspirando um pouco alto demais. Nada que a tenha assustado, ela apenas permanecia ali, e de repente lhe pareceu que ela estava incrivelmente perto. Quem sabe pela imensidão da paisagem, quem sabe porque era verdade. Mas não olhou para ela, apenas recebeu sua presença como a de uma velha conhecida, uma velha e muito querida amiga, ou uma amante, ou uma irmã que sempre havia estado por perto. 

E assim ficaram pelo que pareceram várias horas - e ainda que em seu coração ardesse uma pequena chama, era qualquer coisa que o aquecia e guardava muito mais do que o movia, como se de repente ele estivesse outra vez em casa. Lúcido, percebendo-se parte daquele cenário monótono de pedras multiplicadas ao infinito, ao mesmo tempo em que sentia como se flutuasse, e seu corpo era uma nuvem de carícias imaginárias, colo, um afago. Algo que o renovava ou revelava-lhe o que foi sempre, ou porque essas duas coisas eram simplesmente a mesma. Algo que permaneceria ainda por muito tempo depois que ela fosse embora, sem que os dois tivessem jamais trocado um único olhar, uma única palavra. Ou será que aquele havia sido o único verdadeiro diálogo?, o irrepetível, o inimitável, um fragmento louco da eternidade encravado no amanhecer não contido.