sábado, 16 de abril de 2022

Três da madrugada, algum detalhe na decoração da casa produzia reflexos estranhos nas paredes, e o sofá-cama não era lá muito confortável, e Marcos estava tão 
tão 
tão profundamente 
magoado.

Quase trinta anos, não era mais idade pra estar pensando em versos, meninas adolescentes, quem é que bota um sofá-cama numa biblioteca, de onde vinham aqueles reflexos, como é que ele tinha ido parar ali, por quê.

Por que pensava em versos, e a menina não saía da cabeça dele, magoada com o irmão dele, um cretino, um cretino que também já estava velho demais pra meninas da idade dela, três e meia da madrugada, será que ela estava bem, mais versos, e versos, versos.

Talvez 
porque 
com Vitória 
ele só quisesse desacelerar o tempo 
e falar sempre assim 
bem 
devagar.

Abriu um livro pra se distrair, livros antigos, de ar tão sério, pareciam tão desconfortáveis quanto o sofá-cama, este tinha até fotografias em preto e branco, melhor do que acordar alguém pra conversar, melhor do que falar sobre aquela angústia, mas então, no meio da página, de repente,




Mais de dois mil anos e onde será que ela estava agora, por quê, no fim da tarde ela parecia tão triste, e ele pensando que nunca mais iria vê-la, aquele cretino do irmão caçula, tão homem pra ferir uma menina, por quê, Marcos não conseguiria mais dormir sem ter notícias, nunca mais, e sobretudo não depois daquela foto, não entre aqueles reflexos, não com todo aquele silêncio.

Também seu peito dilacerado 
por nada, 
ideias fracassadas do que é ser um homem.

Fazia anos que ele não chorava, era como se a menina estivesse ali, diante dele, e ele não pudesse alcançá-la, um reflexo azul e dourado e branco, uma lágrima, aquele rosto de uma criatura mágica, e Marcos se ajoelhou no meio da biblioteca dizendo não chore, minha querida, não chore, não,

não chore. 
Pairam por aí esses parasitas de almas 
que são umas criaturas incapazes de luz própria. 
Nossa dor é uma piada pra eles 
e não poderá mais do que doer mais alto.

Quatro horas da madrugada. Ninguém escutava.

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