sábado, 25 de junho de 2022
Esperei você ligar
Você precisou passar numa farmácia
Tinha reunião mais tarde
O ônibus quebrou no caminho
Esperei um dia, dois, três
Era muito serviço acumulado
E tinha que consertar a torneira da pia
Uma prima apareceu de visita
Esperei uma semana inteira
O serviço já estava quase em dia
Você aproveitou pra comprar umas roupas
O menino caiu da bicicleta
Esperei um mês, dois, três
Você me prometeu um bolo de frutas, mas
Não era época daquelas frutas,
Você achou um apartamento mais espaçoso
Esperei um ano
Você se filiou a um partido
Reformou a cozinha e os quartos
Foi visitar a mãe em Pernambuco
Esperei uma década, duas, três
O menino se formou, casou, teve filhos
Você mudou de emprego cinco vezes
Adoeceu doze
Esperei a vida inteira
Você me telefonou numa terça
Disse a vida é muito curta
Temos tanto pra aprender
Esperei um milênio, dois, três
Não sei ser mais nada além da espera
Talvez se você chegasse agora
Eu nem entenderia o que é isso
sábado, 18 de junho de 2022
Era uma tarde luminosa de outono, agradável, quente, e eu estava cego de dor.
Lembranças d'água em meio às lágrimas, de vez em quando a correnteza, de vez em quando um lago sob o céu estrelado.
Acho que eu mesmo não gostava muito do Bernardo quando nos conhecemos na faculdade de Artes, até que veio um trabalho de aula que nos colocou só os dois em uma cena muito delicada, em que os nossos personagens se beijavam.
Estávamos seguros o suficiente de nossa sexualidade para aceitar beijar outro homem em cena sem nos abalar, caso algum dia precisássemos fazer isso em nossas carreiras de atores profissionais. Mas aquele era apenas um trabalho de aula, e concordamos que seria até mais interessante, como estudo, se apenas encontrássemos uma forma abstrata de representar o beijo.
Em meio às sugestões mais criativas e improváveis, lembro-me do Bernardo perguntando repetidas vezes:
- Mas será que alguém vai entender?
Sorri com essa lembrança, a cara coberta de choro.
Bernardo morreu de Covid antes da nossa vez de sermos vacinados. Confesso que, na época, uma grande parte minha culpou seu pai, com toda a imensidão da raiva que eu sentia, e como se isso pudesse mudar os fatos. A morte sem despedida, e em minha imaginação o pai dele não chorava, por trás de uns óculos escuros muito caros e pronto para votar de novo em uma obscena política do descaso.
Quando encontramos uma forma de representar o beijo, fomos experimentá-la na prática, e lá estávamos nós meio enlaçados, os rostos muito próximos um do outro, no exato instante em que seu pai entrou na sala.
Foi um longo discurso enfurecido sobre ele não ter criado uma bichona, que já chegava a opção ridícula pelo teatro, que o Bernardo era um vagabundo egoísta e ingrato (e aí começaram longas narrativas de episódios do século passado que "provavam" que o filho era uma nulidade, ou, então, uma aberração monstruosa), e tome mais monólogo sobre o “trabalho de verdade”, Deus, respeito e uma matemática estranha em que um mais um não podem ser dois se um dos "um" é igual ao outro — uns trinta minutos, no mínimo, de fala sem escuta e nem um pingo de vestígio de que algum dia ele tenha enxergado seu filho.
Mas eu, lembrando disso, só o que podia fazer com minha raiva era chorar outro tanto, mais uma vez calado.
De vez em quando eram tempestades, de vez em quando, os mares.
E eu perguntava em voz alta a um Bernardo que nunca mais estaria ali, meu amigo, e se tivéssemos nos beijado, será que assim teriam entendido?
sábado, 11 de junho de 2022
Queridos heróis
À noite, quando vocês estiverem em suas camas
Caminhas quentinhas humildes confortáveis
Lembrem-se outra vez de mim, tenho certeza
Que ainda não foram mapeadas todas as minhas sombras
Nem fui humilhado o suficiente em praça pública
Queridos heróis
Planejem com o maior cuidado, assim, com ares de espetáculo
A minha próxima execução
Adoro
As suas máscaras de paz e amor
Os monstros que vocês carregam, tão
Estranhamente iguais aos que vocês perseguem
Desesperados e incapazes de lhes dar fim em si mesmos
Queridos heróis
Amados
À noite, antes de vocês se entregarem
Ao sono pesado de suas consciências quimicamente limpinhas
Lembrem-se outra vez de mim
Tenho certeza
Que só o que falta em seu sangue tingido de evolução da espécie
É essa porção de puro ódio
Gratuito
Cego
Incondicional
sábado, 4 de junho de 2022
Você acha que diz argumentos
Você só diz portas que fecham
Pedras arremessadas
Chuvas ácidas
Você se acha tão forte
Você sucumbe a palavras
Não suporta os fatos
Só aceita o mais fácil
Você acha que enxerga tudo
Você foi morar num espelho
Prefere o sol peneirado
Resume tudo ao retrato
Você se acha a resposta
Você nem soma direito
Um treinador de obstáculo
Apequenador
Você acha que dita algum rumo
Você é obrigado a escolher esse lado
Obrigado a ser isso
Você é obrigado gado gado
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