domingo, 22 de maio de 2016
cantarei
assim como se a música não existisse e fosse preciso
inventá-la, abraçado às sombras e solar sobrevivendo uma vez mais nos guetos
numa pulsação ingovernável de deleites, tenho pensado que os caminhos levam
sempre a becos sem saída e que talvez a única saída seja não haver caminhos, cantarei a minha devoção gratuita e sem fim por
alegrias vulcânicas tingidas de neon nos bares ou submersas numa névoa de
histeria nos salões mais sérios ou serenas de velhice ou infantis correndo com
os pés descalços pelo asfalto sujo, não espalho as minhas frases com tanto
cuidado só pra parecer que elas choveram mas porque eu gosto mesmo é de colorir a razão ignorando os seus
contornos, adoro que o meu tempo seja uma sequência apaixonada de ilusões e
jaulas desmentidas por um corpo que é sua própria alma e emoção e pensamento em
trânsito e adoro quando me demoro indiferente e sonolento numa só verdade
confortável, tanto faz se estou sendo arrastado uma vez mais à margem do que é sóbrio
e sigo bem no centro do que não tem órbita, tanto faz se o que nos revela é o
que nos disfarça ou vice-versa, cantarei não
porque a vida é um erro ou porque deus queira ou não queira – eu sou também a
voz que silencia, e sou todas as vozes que jamais se calam – cantarei meus
hinos e meus gritos de revolta e minhas lágrimas e risos e meu nada e minha
ausência e meu vazio e meus lábios, cantarei porque já cantava muito antes que
surgissem as palavras, inteiro e a plenos pulmões embriagado
de uma lucidez que sobra e panfletário e me abstendo cantarei todas as
nuvens e castelos que me cabem, porque não sei por que, nem saberei quando terei
cantado.
sábado, 14 de maio de 2016
O
professor falava do Acaso como método de criação artística. Falava de conexões
intuitivas entre os atores-dançarinos; trocas que aconteciam naturalmente,
independentes da intenção de dar e receber algo. No exercício daquela noite,
nossos olhos eram vendados e devíamos deixar o corpo se mover por vontade
própria, o mais livre possível das decisões conscientes. Músicas variadas se
alternavam, e aos poucos o professor distribuía objetos entre nós, deixando-os
ao nosso alcance para que interagíssemos com eles da maneira que o corpo escolhesse.
Era assim como uma escrita automática em que as palavras eram os gestos.
Metade
da turma realizava o exercício de cada vez, enquanto a outra metade observava.
Poucos de nós deram importância ao fato de que Bernardo e Jéssica ficaram juntos
para o segundo grupo – eles costumavam ignorar um ao outro, simplesmente, mas tinham
brigado feio naquela tarde, por um motivo bobo de que já nem me lembro. De
olhos vendados, cada um em um canto da sala, pareciam confortáveis em seus
corpos-mundos isolados, movendo-se de maneiras tão diferentes quanto pareciam
ser as suas almas, ou caráteres, ou como queira se chamar essa porção abstrata
da identidade mais profunda de cada um.
Muitos
perceberam quando os dois abriram os braços ao mesmo tempo. Alguns de nós
sorriram com a coincidência, trocando olhares cúmplices: então lá estavam Jéssica
e Bernardo, inimigos declarados, parecendo pedir abraço, cada um desde sua ilha
– e isso já seria suficiente para ilustrar a ideia de Acaso-Criativo ou conexão
intuitiva. Mas era só o começo. Todos prendemos o fôlego quando eles começaram
a caminhar exatamente na direção um do outro, traçando uma linha reta ao longo
de toda a sala, devagar, tomando cuidado para não tropeçar em nada e à procura
do que fosse.
A menos de um passo
de se alcançarem, no meio da sala, pararam. E ficaram assim por pelo menos um
minuto, sentindo, certamente, o calor da proximidade, espelho um do outro, irradiação
de desejo e espera, oferta de abrigo, irmandade, reconciliação, até que finalmente
sábado, 7 de maio de 2016
Na
beira da estrada encontraram uma carcaça abandonada. Conchas na praia. Os
fundamentos do universo imóveis, sustentando vácuo e matéria, equilibrando sua
dança. Num bilhete, ele escreveu “Você está a salvo”, mas sua caligrafia era
horrível. De dentro do cadáver, fluíam borboletas sem parar: um rio de seda
amarela em ondas mecânicas simétricas.
Uma
vez aberto o livro, era impossível não ter aprendido. Não era uma promessa de
clareza, embora incêndios no céu da cidade. Aprisionaram o Mal dentro de um
pote de vidro e ninguém sabia muito bem o que fazer com o resto.
Na
garganta, o gosto era de choro e de esperança. Se por trás do véu, no toque,
essa ferida imensa alimentando os pesadelos não seria a sua própria solução
cifrada. O elo estava feito. No alto da montanha, era um sussurro tão sopro uma
lagoa aérea.
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