(Diários de Machu Picchu #21)
sábado, 29 de outubro de 2016
Quanto
tempo espuma branca que se leva esse isopor pra borbulhar nas ondas –
hoje
dormi
umas horinhas à tarde e quando acordei não conseguia mais lembrar se era sábado
ou domingo.
Girassóis
no quintal, casas de barro e tua voz tem um traço de brisa, as gaivotas de Viña
del Mar, uma odisseia atrás de um abridor de latas – era sábado.
Era
um poema que você não ia gostar e que eu comprei de um estudante de Letras na
Praça da Liberdade, qualquer coisa muito cheia de xerez e entranhas, não dei
mais que duas moedas: mal pagavam o papel e a minha culpa.
Não
conseguia mais lembrar se estava em La Paz ou no mercado Ver-O-Peso, uma menina
muito negra com um vestido muito vermelho em frente a um muro muito azul,
chalanas do meu cântico escorrendo pela tarde e de repente a gente avista um
homem caminhando sozinho no deserto, a face de um deus na montanha, a mágica
Atacama, as silhuetas dos prédios contra a aurora dos milagres só nós dois
donos da noite e dos quintais e do asfalto e de repente ops derrubamos um anão
de jardim e sinto muito mas não vai ter cola mil que resolva. Então nós rimos,
rimos, rimos. Peço um café com chantilly e sorvete de baunilha, penso outra vez
na Jéssica, na morte da vontade dentro da casca de uma árvore e na droga de uma
música que fica repetindo eu sei que vou ver teu rosto outra vez e vejo a luz
do sol quase horizontal sobre os telhados de palha. Meus olhos de sertão não
choravam, minha garganta de sal mal soluçava até que finalmente me lembrei:
Era
a Bahia.
Brammm.
Bram
bramm.
Quanto
tempo espuma bramm brambranca.
Silêncio
uma canção de ondas quebrando brando bram.
Ei,
mundo,
não
quero mais brigar.
E não é só porque
hoje é sábado.
sexta-feira, 21 de outubro de 2016
tropeçou
em frases feitas sobre ser autêntico, desprezou, irresponsável, os donos da
igualdade e da liberdade, ficou só, partiu em autoexílio por haver
desrespeitado a lei do ser-alguém-na-vida elaborada pelos que não estão nem aí
pros padrões da sociedade, artigo novecentos e doze, parágrafo oitenta, que
diz: “nunca estarás de boas”.
ficou
só. aprendeu a ouvir como se nunca tivesse ouvido, atravessou abismos só pra
conseguir pensar como quem está do outro lado. despiu-se de si mesmo à procura
da nudez absoluta – e hoje desconfia de que só se pode ter uma vaga ideia de
como ela seja. “há muitos mundos no mundo”, diz. aprendeu a olhar como se nunca
tivesse visto. ficou só, uma solidão maior que os números.
naqueles
tempos de errar entre as cidades e as gentes, aprendeu a contar com os loucos
que lhe apareciam vez ou outra dizendo vem cá me dá um abraço, ou vem comigo
ali uma escada até saturno – mas ainda menos, muito menos do que isso: quando
esbarrava em alguém na rua, quando em elevadores e ônibus lotados, quando
alguém tocava em seus dedos na hora de entregar um troco ele engolia faminto o
que tomava por migalhas de afeto.
não
leva muito a sério nem as próprias máximas – mas aqui uma delas, que vem na
esteira do que foi narrado: é infinitamente mais fácil ficar muito tempo sem
sexo do que sem carinho.
e
outra, que reorganiza uns dizeres muito conhecidos de quem vê a si mesmo como
intelectual:
pessoas
inteligentes entendem ideias.
pessoas
espertas entendem das coisas.
pessoas sábias
entendem pessoas.
sábado, 15 de outubro de 2016
Sandoval atravessou a rua às cinco e quarenta e cinco levando uma sacola
de compras. Dolores se debruçou à janela e suspirou que bom que encontraram o
cachorrinho perdido, que bom, que bom. José se olhou no espelho e não gostou de
como estava o seu cabelo e nada resolvia, tem mesmo que cortar está ficando
feio. Extra, extra! – os seus melhores sites de não-notícias: domingo vai ter
jogo no campinho do bairro e festa americana na Georgete. Não tem jornalismo no
mundo que consiga registrar o mais do menos – uma flor se abrindo
silenciosamente em um terreno baldio, um coração sangrando silenciosamente de
saudades, uma laranja cortada silenciosamente ao meio. O entrevistador me perguntou
se acredito em fantasmas e eu disse que às vezes, que tudo no mundo é às vezes,
mas mesmo isso me pareceu uma resposta muito grande, muito definitiva. Olha, a
única coisa em que eu não acredito mesmo é no Governo, eu só acreditaria num
Governo que soubesse dançar. Isso da existência ser vazia e sem propósito é tão
hipotético quanto qualquer divindade. Vá, anote aí assim mesmo: às vezes. Às
vezes, o amor é uma estratégia de controle; às vezes, é preciso ter muita
coragem pra não lutar; às vezes, “ser o que somos” é inventar um personagem. Não
sabemos. Mas até que me sinto bem no nevoeiro. Estou apaixonado, e a cor
preferida dela é cinza.
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