sábado, 28 de janeiro de 2017
Vou te dar meu coração, mas você não repare
Tive que colar aqui este canto, quase não se
nota
Ali rasgou, tive que costurar, mas veja só
que pontos mais bem dados
Com linha da mesma cor e tudo, uma obra-prima
Esse pedaço aqui eu perdi, não lembro o que era,
mas se foi pra sempre
O vazio deixa o conjunto bem mais triste e ao
mesmo tempo bem mais leve
E melhorou consideravelmente a aerodinâmica
Essa marca aqui foi de uma punhalada, aquela
ali, de um tombo
E estes símbolos são de um discurso cético
que eu decorei faz tempo
Bobagens anti-amor-romântico, só pra defesa
pessoal, irremovíveis
Mas que não importam, minha querida, e nada
disso importa de verdade
Está meio estropiado, mas é forte, um coração
saudável, vacinado
Que ainda ilumina à noite, esquenta no inverno
e mata a fome
Enfim, faz tudo que os corações inteiros
fazem
E mais umas acrobacias
que só ele sabe
sábado, 21 de janeiro de 2017
Nada entre nós, uma vertigem de chuva, a grama encontrando brechas na
calçada. Cedo demais pra ser engano, aura azul, noturnos de Chopin, batom,
bebês, nada entre nós. Ouvi a tua respiração e não dormi, sonhando. Branco véu,
palavra doce em tantas línguas estrangeiras, pinceladas de Van Gogh, oásis,
água branca, agora é tarde pra dizer que agora é tarde. Nada entre nós. A pele.
A espera, a infestação de pétalas.
sexta-feira, 13 de janeiro de 2017
O
moleque não entendia nada de bola e por isso nunca tinha saído do banco de
reservas. Naquela tarde, sob a chuva, assistia calado enquanto seu time levava
uma goleada dos meninos do outro bairro e com isso era eliminado do campeonato.
Na hora do intervalo, o treinador escolhia as palavras pra tentar acertar o
time e ainda infundir-lhes algum ânimo, o que não era uma tarefa nada fácil.
–
O meio de campo tá meio enrolado – arriscou ele, devagar. Aí o moleque desatou
a rir. Todos olharam ofendidos, sem conseguir decidir se lhe davam uma surra ou
simplesmente o ignoravam.
–
Não é que o meio de campo tá meio enrolado – explicou o moleque assim que
recuperou o fôlego. – É que o meio de campo tá enrolado, os laterais tão se
batendo, a zaga tá mais perdida que cego em tiroteio e o ataque ainda não viu a
cor da bola. Mas a bola tá rolando ainda! Dá-lhe!
Seguiu-se
um breve silêncio em que todos concluíram que, afinal, aquilo não era uma
ofensa, mas um incentivo. O treinador aproveitou que tudo já tinha sido dito e
se limitou a puxar aplausos repetindo “Dá-lhe!”, e verificou que alguns meninos
estavam de fato recuperando o ânimo. Dispensou a equipe sem mais outras
palavras: não havia chances de reverter o placar, mas ao menos ainda era
possível perder com a cabeça erguida.
As
coisas melhoraram um pouco no segundo tempo, e o time chegou mesmo a marcar um
gol, além de evitar outros tantos da equipe adversária. Todo o time percebia a
melhora, e com isso a confiança deles ia aumentando, também. Faltando alguns minutos
pra acabar o jogo, tendo a derrota como certa, mas vendo seu time se esforçar
como poucas vezes tinha visto, o treinador chamou o moleque pra ocupar o lugar
do seu melhor atacante.
–
Vai lá e acaba com eles, campeão!
E
ele foi. Demorou muito tempo até que chegasse a encostar na bola. Já deviam
estar nos últimos lances quando ela sobrou pra ele na intermediária. Curioso, o
treinador prendeu a respiração e acompanhou:
O moleque não
entendia nada de bola e mesmo assim queria sair dando drible. Os zagueiros
pararam pra olhar: ele era tão sem jeito que se perguntavam se estaria mesmo falando
sério. E o pior é que estava. Aproveitando a confusão da zaga, acabou passando
pelo primeiro, pelo segundo, pelo terceiro – e marcou um gol já meio que perdendo
o equilíbrio, caindo de lado sem que ninguém tivesse encostado nele. Um gol
feio, mas gol é gol – como todo mundo sabe. O moleque rolou na
lama e nem se levantou pra comemorar. Ficou lá deitado, os braços abertos e os
olhos fechados, uma expressão da mais pura satisfação, sentindo a chuva cair no
rosto.
sábado, 7 de janeiro de 2017
Hoje o tempo não passa, não tenho onde chegar nem vontade de ir. Estou
bem várias vezes por dia, mal várias vezes por dia, indiferente aqui e ali,
quase sempre me distraio, penso no que passou e no que virá, lamento, ou não,
sempre vai ser assim. A culpa é minha de quê? De não mudar o mundo pra melhor,
de não querer o que você acha que é bom, alguém chorou por minha causa, os pães
ficaram no forno por tempo demais e acabaram queimando? Tem sempre uma alma
boa, uma ameaça, alguém jogando lixo no chão. Não dá pra cuidar de tudo, não dá
pra cuidar de tudo em si mesmo, nem ser sozinho nem não ser, nem como conviver
com o fato de que o passado não se move. Ah, mas também tem os que sabem do que
você está falando mesmo quando você não diz nada com nada. Tem um abismo no
fundo do abismo que dá pra dentro de dentro. Não tem nada no escuro que não
exista na luz.
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