sexta-feira, 24 de novembro de 2017
Teu silêncio era um grito de cansaço e de abandono. Numa folha de
caderno, teu adeus era espelho e espectro de antigos versos que fiz pra
ninguém. Segui teus passos pela vida, teu corpo escondendo e escorrendo luz,
dia após dia a tua fragilidade humana acumulando máscaras, dia após dia a tua
lágrima e você via, talvez, o mundo que eu te dei de almas e de olhares, você
levava as minhas palavras feito mapas, mas seguia adiante em teu definitivo
adeus. Um tempo material, rolando e lapidando as pedras e nascendo o limo, se
as tuas mãos segurassem as minhas outra vez, vou te conter, e te contar sobre
um amor enfurecido, ódio terno, um coração capaz de sentir tudo isso e nada,
mais uma noite que fosse e que você dormisse nos meus braços feito criança
crescida, grilos e sapos e ventos seriam bem mais que um castelo, mas não, há
muita selva lá fora. Teu grito agora é tua presença na estrada, espreitam e
você sobrevive, imensa fortaleza de tédio e indiferença e de querer que te adorem
e de velas sempre içadas pra próxima fuga. Te estendo as mãos, mas já nenhum
dos meus destinos te chama, no vazio dos dias, meses, séculos, estas mãos
estendidas te esperam e sabem o que não terão, e fazem seu trabalho ingênuo
transformando o mundo e segurando outras mãos e bebendo de outros copos, te esperam
e te esperam e você não virá, cada vez mais longe conquistando o céu em que eu
falto, constelações de nanquim, aplausos bêbados, todo um séquito de sombras,
ninguém paga o que me custa te querer tão bem, não te querem tão bem assim e te
querem e ardem, onde o teu grito não me alcança mais, onde a tua voz rouca me
escapa, eu que sempre quis me entregar a você mesmo sem conhecer o que
entregava – e isso, talvez, o que mais te afastasse – derramo estes versos
finais sobre a ferida da ausência: bebe, seja leal, imagem pura e memória,
nunca mais sangrará, seremos vivos enfim, não saberemos o resto.
sexta-feira, 17 de novembro de 2017
agora
ou antes – não me lembro –
Gabriel dizia alguma coisa sobre as galinhas d’angola
servem pra comer formigas cobras escorpiões marandovás
e eu dizia como um bicho pode ter coragem de comer marandovás, hem?
(e
a propósito
o que são marandovás?)
Gabriel me explica são umas lagartas grandes e peludas
vi uma dessas numa árvore outro dia
e Gabriel em quatro anos só viu uma cobra e nunca viu escorpiões mas disse é bom
saber que pode aparecer um bicho desses e a gente vai estar protegido
nunca se sabe né nunca se sabe
isso é pra lembrar que num lugar nunca vão existir só coisas boas
e eu falei eu sei eu sei mas me deixe dormir mais um pouquinho aqui na rede
acho que isso foi antes
ou depois
ou talvez esteja acontecendo agora, então
o dono da estalagem
me chamou pra falar com a Cristina ao telefone
mas tanta coisa aconteceu que eu quero bagunçar um pouco as coisas
e dizer antes de tudo as flores são lilases
e o sol está queimando as costas do meu pé
e ontem eu queria comprar uma biografia do Kurt Cobain
cujo título é mais pesado que o céu
e ainda ontem
eu disse à Cristina vamos nos encontrar na praça
mas ela não sabia qual praça
então
o dono da estalagem
na porta da recepção acena com o celular
estou descalço
mas não dá tempo de calçar meu bamba
(mentira
quem é que tem coragem de usar bamba?)
e vou descendo assim descalço pelas britas
e ele diz é bom andar descalço nessas britas o cara fica com o pé todo doído
aí eu dou uma risada envergonhada igual à da minha filha
porque me sinto com uns onze anos
embora a minha filha tenha treze
e eu quero explicar
eu tinha uns quatro anos quando vi um filme do Mogli e ele andava assim nas
pedras e eu jurei que ia ser igual a ele
mas
talvez
talvez fosse melhor eu simplesmente ter descido pela grama
hoje
tentando dormir na rede
ou antes ou durante, em mim
havia uma batalha feroz e cada vez mais sangrenta
entre o instante e a literatura
no café
tinha um casal de cariocas que me entediou com uma conversa boba
deslumbrada e decorada do roteiro de um guia turístico
sobre o mofo do queijo ou sobre o vinho ou o chocolate ou sobre
depois perguntaram ao dono da estalagem
apontando pela janela se aquele ou aquele pinheiro era macho ou fêmea
e tome mais conhecimento repetido do seu guia
mas o dono da estalagem disse me desculpem
só sei dizer qual deles dá pinhão
– e com isso conquistou o meu respeito eterno
agora
antes que seja tarde
eu tenho que tomar um banho depressa porque
vou me encontrar com a Cristina
no saguão do hotel em que ela está hospedada
pra que ninguém erre de praça
e
só pra constar
são dois tons de azul
na igreja cujo sino
eu ouço da minha cabana.
sábado, 11 de novembro de 2017
– Tava brava por quê?
– Esquece.
– Esquece.
– Não é melhor resolver?
– É melhor esquecer.
Ele observa em silêncio. Pensa. Procura a melhor forma de expressar seu receio.
– Não sei se você é assim, – começa, – mas eu, por exemplo, às vezes guardo umas coisas pra daqui a uns dez anos, mais ou menos, aí a gente vai estar numa briga nada a ver e eu vou dizer: “Porque daquela vez você fez isso, isso e aquilo”...
E ela, tranquila, decidida:
– Então deixa pra essa data.
sábado, 4 de novembro de 2017
Um menino sentado em um canto do quarto. Os braços ao redor das pernas, a testa encostada nos joelhos. O quarto é muito grande, não se pode ver o teto. Os móveis parecem desproporcionais, ou muito maiores ou muito menores do que deveriam ser. Não há janelas. Talvez haja uma porta, mas só se pode ver daqui as duas paredes em que o menino tem as costas apoiadas. Ele não chora. Ele não dorme. Ele só está ali, parado, como se se mover fosse inútil ou doloroso demais.
Agora há uma menina sentada à beira da cama, de frente pra ele. Os pés da menina não alcançam o chão. Ela usa uns sapatos brancos de boneca, meias três-quartos, uma saia azul de colegial. Parece preocupada. Mas não o vê. Talvez o quarto seja dela, talvez o menino tenha sido uma forma muito estranha de começar uma história que sequer é sobre ele. A menina tem vontade de adiantar o ponteiro das horas, mas então se dá conta de que no quarto não há relógios. Havia – até o instante em que ela quis adiantar os ponteiros. Depois era tarde.
Um bando de andorinhas atravessa uma das paredes e voa em linha reta até desaparecer do outro lado do quarto.
– Você viu aquilo? – pergunta a menina.
Por um segundo, o menino tem a impressão de que ela se dirige a ele. Mas então ela responde a si mesma com uma voz de boneca:
– Vi, sim. Eu disse pra você que isso não era uma parede azul. Eu sempre disse isso.
O menino tem vontade de quebrar o relógio. O menino tem vontade de fazer com que o relógio volte a existir pra que ele possa quebrá-lo. O menino tem vontades impossíveis. O menino desistiu de ter vontades.
– Mas por que – pergunta a menina – eu vou ficar aqui agarrada a você em um quarto que só finge ter paredes?
– Talvez a parede tenha ficado ligeiramente alaranjada – comenta a boneca, parecendo assustada.
A menina percebe que está presa em um cubo mágico. Percebe as mãos gigantescas que movimentam o cubo; percebe, de relance, por entre os dedos daquelas mãos, um par de olhos vermelhos e obstinados. O cubo é sacudido com raiva, e no instante seguinte está sendo arremessado pra longe.
Tudo some no momento em que o menino ergue a cabeça e olha em silêncio pra menina, com uns olhos tristes e profundamente azuis.
– O cubo ia afundar na areia movediça – conta.
De repente, o quarto parece sóbrio como um escritório. Tudo em perfeita ordem, iluminado apenas por uma luminária branca sobre a escrivaninha. A mulher procura desesperadamente por uma janela. O homem fecha os olhos, apoia outra vez a testa nos joelhos.
Longe, muito longe, ouve-se o ruído seco e melancólico de uma cidade desabando.
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