segunda-feira, 28 de janeiro de 2019


aceito o vinho. e uma partida de palavras cruzadas. a gente decide, cara ou coroa, teu assunto ou o meu. posso passar horas te ouvindo falar, horas mesmo, dias inteiros, toda a quaresma. e posso te ensinar um truque pra sempre pegar o triplo valor da palavra. cara ou coroa, teu jogo ou o meu, às vezes tem paciência até pra um jogo de cartas, mais vinho, um dia a gente chega em becos sem saída cheias de verdades dolorosas demais pra saberem ser faladas em voz alta, um dia a gente engata numa discussão desnecessária sobre uma bobagem que não interessa a mais ninguém, um dia a gente chega no eu não quero nem olhar pra cara desse aí, mais vinho, me diz se você ainda pensa que mudar o mundo já perdeu a graça, me conta o que você pensou, mais vinho.

sabe, ninguém tá nem aí pros nossos cachorrinhos de apartamento, pra quanto custaram alguns troféus de guerra, pras figurinhas repetidas dum álbum que ninguém mais tem. mas eu pediria emprestadas umas revistas em quadrinhos, anotaria uns nomes pra pesquisar mais tarde, perguntaria como é que se fala é eu explodo ou eu expludo. ninguém tá nem aí pros porta-retratos da minha prateleira, pra quando eu atravessei desertos ensolarados, pra tanto mundo que eu vi, pra cicatrizes de bala.

mas acho que eu diria pra você tirar um tempo e assistir tal filme, ouvir aquela banda ou ler um livro ou outro que falasse sobre isso, talvez eu resumisse um livro, talvez eu lesse uns parágrafos.

mais vinho.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019



Joaquin dizia que o fato dele ser tão quieto e “antissocial” não era exatamente culpa dele. Como argumento, usava sempre uma história de quando vivia em Tucumán ou Salta, ou qualquer outra capital do Norte da Argentina. Numa das poucas vezes em que andou por lá de táxi, contava, o taxista ouvia atentamente um debate no rádio sobre a partida de pouco antes entre River Plate e sabe Deus qual outro time argentino, mas dava pra entender que tinha sido um jogo importante. Como Joaquin não ligava pra futebol, não tinha muito pra conversar, mas o motorista fez um esforço (“Sim”, dizia Joaquin, “Deus abençoe as pessoas esforçadas, gosto delas”). Ele perguntou:

– Você gosta de futebol?

Como Joaquin disse que não, ele ficou um tempo processando a informação e o pouco de sotaque que meu amigo tinha.

– Você é brasileiro? – perguntou. Joaquin explicou que tinha nascido no Uruguai e se mudado com a família pra Florianópolis quando ainda era bebê, então sim, considerava-se brasileiro. Aí o motorista ficou realmente confuso: – E você não gosta da verde-amarela nem da azul-celeste?

– Olha, – defendeu-se Joaquin – na Copa do Mundo, até assisto a alguns jogos. Mas fora isso, não me interesso por futebol.

A essa altura, dava pra ouvir o cérebro do motorista trabalhando. Ele estava lidando com algo muito além da sua capacidade de compreensão. Num último esforço, perguntou, quase em tom de súplica:

– Basquete?...

Joaquin fez que não com a cabeça e ele disparou, agora com uma pontada de irritação:

– De que esporte você gosta, então?

– Natação – disse Joaquin, com toda a sinceridade que Deus lhe deu.

Foi a gota d’água pro motorista, que fez a maior cara de que ele estava brincando com assuntos sagrados, aumentou o volume do rádio e não voltou a dizer uma palavra até o fim da corrida.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019



pensando que

talvez se eu arrancar meu coração rasgar em pedaços atirar ao fogo sapatear sobre as cinzas

dançamos abraçados músicas românticas em muitas festas de garagem

descemos a serra do mar andando pelos trilhos e depois voltamos clandestinamente embarcados entre dois vagões

numa noite fria de neblina em mil novecentos e noventa e oito vimos um amigo se jogar pra morte do alto de um prédio condenado

hoje passo muitas horas nesta mesma sala encarando reproduções baratas e pequenas demais de frida kahlo

se eu aprendesse a fazer poesia

já tem um tempo que eu sinto este nó na garganta e se ele desatar inunda

conheci uma menina que escondia a própria vida em uma espécie de coração subterrâneo

e um velhinho que não conhecia mais que as cinco ruas da pequena vila em que sempre havia morado

vi amigos se casarem e se separarem e ajudei a cuidar de seus filhos pra que eles crescessem sabendo que eram capazes e muito queridos

minhas forças terminaram

estou farto de ver nascerem sonhos belos só pra depois eles serem estraçalhados outra vez contra os rochedos

bons momentos engolidos pelo tempo intocáveis dentro da fumaça negra das saudades sem esperanças

eu não suporto mais carregar sozinho

estou morrendo de carregar sozinho

e fico aqui pensando que

talvez

se um meteoro quem sabe

terça-feira, 8 de janeiro de 2019


mas era urgente que você estivesse aqui, que agora fosse já o pra sempre e que estivéssemos felizes e que nada mais mudasse esse quadro de nós dois entrelaçados confundidos misturados era urgente que a tua língua tua saliva e que teus lábios nos meus lábios que as tuas pernas que você dormisse nos meus braços, era urgente que nenhum de nós tivesse que sonhar mas que a verdade fosse então o já sonhado tantas vezes, tão urgente que era como se o meu corpo me faltasse enquanto me faltasse o teu, mas era tão urgente que era como se o futuro se agitasse ou desse um grito ou se atirasse e perturbasse de tal forma a superfície do presente que ele transbordasse e não coubesse mais no gesto ou no passar das horas, era urgente a ponto de queimar, de arder, de sufocar e de rasgar a pele e de engolir e desfocar qualquer paisagem tudo que é lá fora, tão urgente que era como se anos-luz nos atrasassem, tão urgente como se qualquer momento fosse uma anti-véspera, tão urgente que era como se caísse de maduro e fosse apenas a semente.

terça-feira, 1 de janeiro de 2019


aqueles senhores são tão completamente estúpidos que
não haverá bomba moral suficiente
lógica limpa a ponto de ser óbvia
tanta afetação sequer suporta o óbvio
nenhuma clareza é capaz de amanhecê-los
aqueles senhores absolutamente tediosos
só a completa falta de limites pode ser tão tediosa
quanto a sua indisposição para o novo
ou para o óbvio
e a novidade do óbvio
seu velho eterno as-coisas-são-como-eu-vejo
censurando obras de arte e não armas de fogo
ameaçando os diferentes e então oh
sendo humildes autocríticos mansos sábios
quando lhes convém posar de bons exemplos
frutas podres
quem
quer
cair primeiro
aqueles senhores sem saias
que histericamente nos vigiam
todo santo ou dia
bólico
dia