quarta-feira, 30 de outubro de 2019
A liberdade, muito mais – ou muito menos –
que um tratado
ou uma ordem das coisas no mundo,
é um homem sob a chuva numa praça da
cidade
na manhã mais calma,
andando a passos lentos,
contemplando o alto dos prédios,
perdido sabe-se lá em quais diálogos
submarinos,
numa expressão de nada,
ou qualquer coisa entre a preguiça e a
graça,
ou qualquer coisa como um puro homem
que é de músculo e de ideia – a liberdade,
tão diferente de um acordo entre os que
compartilham a jangada,
é a alma sempre pronta pra assentir com a
cabeça,
nadar sozinha, tomar os remos ou amar a
correnteza,
numa atenção contínua
que é às vezes agonia e glória
e é às vezes êxtase e castigo –
a personagem liberdade
na última página de uma novela
e a liberdade suja sobre o pó das ruas
e a liberdade música e poesia e tinta
e a liberdade regra em um artigo do
estatuto
e a liberdade sonho e a liberdade guerra e
a liberdade paga
e a liberdade voo e a liberdade corpo e a
liberdade raiva
e a liberdade tudo e a liberdade cada
ponto de uma estrada
caem por terra como folhas secas de
palavras
quando a paixão se
gosta, quando o querer dança e quando o ser se basta.
quarta-feira, 23 de outubro de 2019
[Aqui tem a fotografia de um velho negro com longas
barbas brancas, sentado em um banco, de pernas cruzadas, fumando um cachimbo.
Olha distraidamente para a câmera, com a cabeça erguida, através de uma pequena
porção de fumaça. Usa uma calça
azul-marinho, camisa branca de mangas dobradas na altura do cotovelo e uns
sapatos pretos muito bem lustrados. À direita dele, quase fora de quadro, um
espelho reflete parte do banco em que ele está sentado e uma pequena faixa
lateral de seu corpo. Acima, na parede, um pedaço de um relógio antigo de
madeira, de que não chegamos a ver os ponteiros.]
Pratos e balanças e
cegueiras e
No dia em que
reparassem em quanto tempo e energia gastam tentando superar obstáculos que
nunca estiveram lá
O ar sem vida olhos
vermelhos de raiva
Poemas publicitários e
caríssimos coquetéis de arte alternativa e discursos decompostos e paixões
desesperadas e puxando as cordas dessas marionetes um monstro de milhões de faces
gargalhando e repetindo calma calma tem mercado pra todo mundo
A lista de exigências
dicionários
Uma cidade suja
endurecida de vícios uma rua preguiçosa de ir uma soberba de querer crescer
somente igual e mais pra dentro
Se ao menos uma prévia
da utopia
[Fotografia de uma janela aberta emoldurando montanhas
longínquas, com cortinas de renda branca penduradas dos dois lados. O céu está
coberto por uma única e imensa nuvem cor de chumbo, mas as árvores das
montanhas estão banhadas pela luz do sol. No parapeito de madeira, há um pombo
cinza, desses urbanos, pousado de frente para a câmera; enquanto outro, de um
cinza mais escuro, bate as asas um pouco acima e à esquerda dele, prestes a
pousar, também. As asas do segundo pombo, em movimento, são apenas um pequeno
borrão nesta fotografia.]
quarta-feira, 16 de outubro de 2019
nada no mundo
é tão logo e tão longe
quanto esse amor que
me leva
janela e paisagem
terra prometida
encontrada
nada no mundo
é tão quando e tão
onde
quanto esse amor que
me espera
labirinto de tempo
pressa contida e
chegada
nada no mundo
é tão fogo e tão água
quanto esse amor que
me envolve
essa matéria de sonhos
desejo impossível
palpável
nada é mais simples
nem mais sobre-humano
nem nada
nada no mundo
é tão meu e tão plágio
quanto eu te amo
quarta-feira, 9 de outubro de 2019
Quando Fê chegou em casa naquela tarde, encontrou Dani
dormindo sem nenhuma roupa no chão da sala, as pernas e os braços abertos como
o Homem Vitruviano do da Vinci, as luzes apagadas e o celular tocando
música clássica. Fê suspeitava de que fosse Brahms: não entendia muito de
música clássica, mas tinha aprendido alguma coisa depois de nove meses
namorando com Dani – e agora dividindo apartamento. Sentiu o cheiro de incenso de
alecrim. Teve vontade de ir deitar-se também no chão da sala, mas em vez disso foi
largando as suas coisas no caminho até o sofá e desabou de bruços sobre ele.
– Campos de centeio – disse uma voz rouca e lenta vinda do
chão.
– Não sei do que você está falando – resmungou Fê – mas acho
que eu diria “limoeiros amarelos”.
Demorou vários segundos até que Dani voltasse a falar, ainda
com a voz grave e arrastada:
– Sim, tem razão. Também os limoeiros amarelos. Claro.
Uma brisa imperceptível agitava as cortinas. Tinha feito
muito calor durante o dia, mas agora a temperatura estava começando a cair. A
música terminou, ficou tudo muito quieto, depois começou a tocar outra música de
Brahms, se é que era mesmo Brahms. Dani rolou o corpo de lado para ficar de
frente para Fê.
– Sonhei que estava indo a uma reunião de negócios em um tipo
de restaurante subterrâneo – contou. – Alguém queria me vender uma arma proibida,
a situação toda era bastante perigosa. Era só eu e um cara muito grande numa
mesa, e ele estava falando que algumas das maiores atrocidades já cometidas pela humanidade tinham sido cometidas em nome do amor. Falava que o amor não existe,
que só o que existe é o egoísmo, que foi por egoísmo que a gente inventou
o amor, blá, blá, blá, blá, blá... É engraçado como essa ideia é usada para
justificar comportamentos muito piores do que aqueles movidos pelo “egoísmo” de
se amar alguém. Mas enfim, a situação no restaurante era cada vez mais tensa, e
eu comecei a ver que ao redor da nossa mesa tinha muitos homens armados,
olhando sérios para mim. Tive uma sensação horrível, um aperto no peito, aquilo
estava começando a virar um pesadelo... Mas aí você chegou. Eu acordei, dormi
outra vez, acordei de novo, dormi...
Fê se ajeitou um pouco no sofá, também para poder olhar para
Dani. Ficaram assim, imóveis, olhando-se nos olhos por um longo tempo.
– Se uma pessoa diz uma palavra – disse Fê – por exemplo: “pêssego”...
Você tem uma imagem mental para essa palavra, você imagina um pêssego, vê
ele na sua cabeça. Mas esse pêssego que você vê aí é sempre diferente do
pêssego que eu estava pensando quando falei a palavra. Sempre. É menor, sei lá,
mais amargo, mais maduro. Mais suculento. Ou talvez você nem goste de pêssego.
Talvez ele te faça lembrar de alguma história triste da infância, ou de alguém
que você já amou e que a vida te levou embora. É um pêssego muito cheio de
informações, e todas essas informações são muito diferentes das que
estavam ligadas ao pêssego que eu pensei. Porque a minha vó tinha pessegueiros no
quintal. Porque pêssego em calda é minha sobremesa preferida. Ou sei lá por que.
A música parou de repente – o celular ficou sem bateria –
mas ninguém ali se importava com o silêncio. Começavam a piscar os olhos
demoradamente, os pensamentos vagavam cada vez menos lógicos . Foi Dani quem
insistiu em manter uma conversa:
– Eu estava pensando... Tem uns livros de autoajuda, uns discursos motivacionais... Tem umas coisas
que deviam vir com um selo dizendo: “isto aqui pode ter o mesmo efeito de jogar
água em quem está se afogando” ou sei lá... “Dar um martelo a quem só tem
parafuso”... Ou...
Fê estava de olhos fechados, e Dani já não conseguia mais
manter a linha de raciocínio. Ficou pensando por alguns segundos, e tudo que
conseguiu acrescentar à lista foi:
– “Pérolas aos porcos”...
Desistiu de tentar manter os olhos abertos assim como
desistiu de pensar. Já estava quase
cochilando de novo quando ouviu Fê dizer:
– E eu vou ter que insistir nos limoeiros amarelos.
– E eu vou ter que insistir nos limoeiros amarelos.
“💜”,
pensou Dani. Mas já não conseguia dizer mais nada.
terça-feira, 1 de outubro de 2019
o horizonte e o ar das
montanhas altas. quando o vento varre o ardor do sol. flor entre as pedras,
pequenas frutas nos arbustos, caminhos de terra, a paisagem e algo como a sua
voz. suaves riachos. asas. patas. o amor dos grilos por constelações.
sussurros, sopros,
sensações. o corpo de batalha, de ausência ou de prazer. o corpo de todos, o
corpo que é só de si. sentindo. sendo o sentido de ser.
se a minha gratidão
não transbordasse.
abraços, risadas, a
eletricidade que perpassa. mãos que se dão, palavras que se despejam,
pálpebras, misérias e mistérios misturados. essa lembrança é de quem. de onde
nasceu tanto brilho.
se eu não acreditasse,
então.
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