quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020




De repente, do nada, por nenhuma razão,
Surge essa voz interior lembrando que você fez bem, um dia,
Por ter ajudado aquela senhora a carregar as compras,
Por ter devolvido um troco que lhe deram errado,
Por ter poupado um desafeto de uma ofensa gratuita.

Às vezes, quando você está distraído com qualquer outra coisa,
Surge essa voz dizendo que você agiu mal, muito mal, mal mesmo,
Quando ignorou um pedinte que obviamente passava fome,
Quando não segurou a porta de um elevador para um atrasado,
Quando riu dos defeitos de alguém, ou não retribuiu gentilezas.

Quase sempre, ao fazer coisas por aí, surge essa voz dizendo
Que você fez bem, ou que você fez mal, no instante em que você as faz,
De modo que algumas vezes dá tempo até de desfazer um mal feito, ou
Só pedir desculpas, ou, se ninguém reparar numa atitude louvável,
Você pode dizer a si mesmo Parabéns, quem sabe até dar-se um prêmio.

Mas sempre, o tempo todo, não importa o que você faça,
Surgem essas duas vozes simultâneas repetindo, contínuas,
Você fez bem e Você fez mal, sem que se possa nunca ter certeza de
Qual delas diz a verdade, qual delas está mentindo – e é este não saber, afinal,
A maldição de todos os seres, além de ser a sua liberdade.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020


Mas o teu ódio é santo. Sim, porque teu deus ficou chateado, eu acho, de ter sacrificado o próprio filho por um bando de idiotas, agora ele quer sacrificar os filhos dos outros. Quase dois mil anos estudando evangelhos pra acabar chamando de messias alguém que quer distribuir fuzis em nome de Jesus. Você acha engraçado, pra mim é muito triste que um deus de amor possa derramar tanto sangue com essa indiferença sempre que você ache conveniente. Com a facilidade de fechar os olhos. O mundo, você pensa, talvez seja só a maior das fake news que rolam na internet. Você ouve os seus iguais, chama de engajamento religioso o que é fanatismo político, a adoração pela força bruta, pela trindade do obrigar-proibir-castigar, deixa os adultos cuidando das Coisas Sérias e vai ver um filme de homens com força impossível explodindo tudo no cinema. É só tuitar reclamando de quem reclama, não como se silenciar a dor pudesse fechar uma ferida, mas porque as feridas não existem, é tudo entretenimento. Você pode se arrastar como só mais um, quem sabe um dia os patrões generosos se lembrem de você, desde que você se mate o bastante pra fortalecê-los. Fantoche à margem, é melhor mesmo não ouvir nada além da voz mansa e confiante que te vende mentira em cima de mentira, ou você pode se dar conta de que se enganou e isso seria o fim do mundo. Repete, como se fizesse parte de um clube pro qual nunca foi nem será convidado, que é tudo sobre dinheiro e poder, mocinhos e vilões, todas essas coisas que se tornaram a mesma e que já não dão espaço a nenhuma outra, embora ainda sejam só um grande e redundante vazio. Aplaude o teu governo missionário como quem canta um hino de louvor diante do espelho, tanto faz que o mundo seja devastado, toda a sua riqueza ambiental e cultural destruída pra caber no teu ego. De onde nada retorna, nem acrescenta, nem agradece. Pela glória do que te ensinaram, pra engrandecer o que te esmaga, nada, absolutamente nada é mais seguro que estar morto. Ser invenção dos outros. Pagar teu dízimo de se omitir e, como isso é coisa que sobra, continuar pagando.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020


Ou o que eu não devo
A idade da História
A lista de títulos
Ou o que eu não leio
Dentro da madrugada
Rios de rancor e sangue
Ou o que não veio


Ou o que nunca foi segredo
Cartazes de medo e desprezo
Aqui vocês só vendem as trevas
Ou o silêncio batido


Ou um delírio
Diamantes e araçás coloridos
Às vezes você só quer um abraço
Ou o que eu não tenho
Obrigação de ferir
Faróis infalíveis
Ou o que eu não creio
Ou o que eu não vejo
Ou o que ninguém quer saber
Ou o ou

domingo, 9 de fevereiro de 2020



É de manhã. Quem dera prolongar essa promessa espreguiçosa no ar puro. Você não gosta de linhas retas, da luz matemática, das horas sem rastros de sonhos. Tem cheiro de orvalho e de pão, uma eletricidade que se espalha sobre o sono e colore as paredes de espera. É tão cedo. Só sei que te adoro, algum muito, uma delicarícia nas mãos, um beijo deitado na pálpebra. Você pulveriza o céu, despedaça, você está diluindo o céu no peso do teu corpo. Borbulha em bule de café, mas bem antes da pressa. Enfim. É o princípio. Vestir o ir em frente com o teu mistério, eu quero tatuar a tua pele em mim, a tua profundidade inspiralada. Você mora em tantos labirintos. E vai chegar logo mais, recarregada de noites.