sexta-feira, 28 de agosto de 2020
Pra quem só a lógica é uma abstração e uma armadura
Mostra-se a epiderme da existência
Numa nudez tão pouca que
Quase não pulsa
Ar que lhe falta
Imensidão de abismos submersos
Labirintos que assaltem a solidão da linha reta
Essa alma seca
Soando como mera matemática
Convencida de ser pedra então rasteja sendo alada
E para além de todos os delírios permitidos aprovados
Pétalas de joias com seus raios de estelares auras
Espalham-se num mar tão claro que
Ninguém repara
quinta-feira, 20 de agosto de 2020
Era
uma noite de muito vento e na Casa Velha ficava impossível dormir quando
ventava daquele jeito à noite. Talvez por isso tantas pessoas tivessem
enlouquecido ali, ao longo da tortuosa e ridiculamente comprida história de
nossa família, e talvez por isso ela tenha ficado vazia por tantos anos antes
que eu voltasse a morar lá, na vida adulta, muito mais por força das
circunstâncias do que por vontade própria. Àquela altura, já estava em minhas
mãos decidir o que fazer com ela, e se soubesse o que me custariam os anos que
acabei ficando, com certeza teria me desfeito de tudo já naquela época – mas
decidi lhe dar uma chance, e agora enfrentava as consequências da minha escolha conveniente e preguiçosa. Aquela
noite de maio já seria triste o bastante sem o vendaval, porque a imagem de
todas as coisas e pessoas que eu amava estava se dissolvendo em chuvas frias
desde o início do outono, porque era um
período obscuro na história do meu povo e milhares de pessoas morriam lá fora,
porque naquela tarde eu tinha enterrado o último dos meus sonhos mais loucos e
lá se iam dezenove anos que eu vivia sem mais ninguém na Casa Velha, ou talvez
fossem trinta e cinco, ou cento e quarenta e quatro. Muitas vezes me perguntei
se não teria me tornado só mais um dos fantasmas das histórias de meus avós,
arrastando os pés pelos corredores intermináveis com as minhas mágoas e meus
candelabros; às vezes, se me demorava, por exemplo, em uma das cadeiras do
jardim de inverno, tinha a impressão de que já começava a fazer parte dela, de
que não havia mais nenhuma diferença entre mim e qualquer outro móvel da casa;
quase sempre me perdia na passagem do tempo, e me parecia que tinha acabado de
fazer coisas que havia feito semanas ou até meses antes, ou podia achar que
alguma coisa que eu tinha acabado de fazer, tinha feito anos atrás. Não sei o
que me desprendeu da Casa Velha, afinal, de maneira tão definitiva, como uma
força centrífuga, me arremessando para muito longe – alguma coisa que gritava,
alucinada, no vento daquela noite de maio?, alguma coisa sangrava e
rasgava em meu peito os últimos farrapos que de mim haviam restado, e aquilo
queimava e era alívio, ardia como lava ardendo sob o fogo de um milhão de sóis
e ao mesmo tempo era um bálsamo, uma surpresa tão única, tão grandiosa, como se
só então o ar tivesse começado a existir e aquela fosse apenas a primeira vez
que eu respirasse.
sexta-feira, 14 de agosto de 2020
Porque
esse farol constante entre os olhos, percepção de que eu sou eu e de que sou
assim, sempre um fluxo de palavras e de sensações, coisas sem nome.
Deus
me deu duas mãos para semear e construir moradas, pés de ir adiante,
Deus
me deu uma razão para compreender e calcular verdades, Deus me fez bicho
E
senhor do meu desejo, do meu gesto e minha direção.
Quando
também há um só fechar os olhos e deixar-se ir fundo na noite, o temperar
pulsante do sono e do sonho, Deus me deu o delírio, tanto um esvoaçar de nuvem
quanto o silêncio quente em corações de rochas, trevas da morte e uma porção de
pólen, barco intergaláctico.
E
apesar de mentiras em papéis timbrados, câmeras de segurança e muros erguidos
sobre linhas imaginárias, toda a Terra me foi dada para eu andar por onde bem
quiser, colher os frutos e beber das fontes, reconhecer pelo caminho os meus
irmãos e irmãs, assistir maravilhado ao poente.
Sim,
o céu também me pertence, e cada uma das estrelas sobre o mar, e mais
O
mar é meu, e anêmonas e peixes, cores de corais, e ainda as árvores são minhas,
Do
espinho à pétala, pois ter nascido é ter tomado posse, é ter colocado na cabeça
a coroa.
Procure
em vão no universo ou nos séculos o mais vago vestígio de uma prova em
contrário.
quinta-feira, 6 de agosto de 2020
De que forma é o não? Como foi
A sua experiência com o não?
Estive em lugares onde as pessoas andavam com os corpos
retorcidos, gestos interrompidos ou arrastados e as vozes trêmulas de tanto não
pesando sobre elas.
Onde cabe o não? Com o que,
Exatamente, se parece o não?
Às vezes, quando explodia alguma vida por perto, ou se uma
paixão vibrasse em todo o ar em volta delas, encolhiam-se, puxando sobre si as
montanhas de não que nunca existiram e ficavam assim, imóveis, como que soterradas
em nada.
Cadê, então, o não? Me mostra
Do que é feito esse não que você tanto fala?
E quando a agitação terminava, e a poeira ia caindo de novo
através daquelas tantas camadas de não que lá nunca estiveram, retornavam às
suas rotinas, obcecadas por controle e por um punhado de tradições já sem sentido,
reencenando o velho e sempre o mesmo vazio de verdades, apáticas e só meio
vivas, deformadas dentro de um abraço inventado.
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