sexta-feira, 27 de novembro de 2020


 


 

Tem horas que poder ir pra qualquer lugar se transforma em sensação de não ter pra onde ir.

Tem horas que você espera um ônibus igual a todos os outros numa rodoviária igual a todas as outras pra conhecer um lugar diferente igual a todos os outros.

Talvez você não tenha mais a menor ideia de qual dia da semana é hoje, mas mesmo assim tudo caiu numa rotina sem propósito.

Avançamos? Sim, mas muito, muito, muito lentamente.

Com uma bagagem que já não parece tão pesada – talvez porque a gente acostuma, talvez porque você esqueceu alguma coisa na última hospedagem.

Tanto faz, porque você já nem se lembra mais de tudo que trazia na bagagem.

Você precisa, já passou da hora, mais do que qualquer outra coisa você precisa encontrar logo o que está procurando.

Nem que seja a serenidade de aceitar que o que você está procurando não existe.

Ou foi o que você esqueceu na última hospedagem.


 

sábado, 21 de novembro de 2020


 

“É logo ali”, alguém falou, horas depois eu estava no alto de alguma montanha sem conseguir enxergar onde a estrada acabava, sem nenhum sinal de habitação humana por perto, apenas uns poucos carros e caminhões que passavam a longos intervalos. Algumas vezes levantei o braço com o polegar estendido, outras, não me dei ao trabalho, distraído que estava com a paisagem, às vezes por estar me lembrando de alguém ter dito “É logo ali”. O sol ardia sem piedade, o mochilão começava a ficar desconfortável de carregar, mas a brisa no rosto, mas ser um homem sozinho naquele silêncio do meio do nada, com aquela paisagem, mesmo que agora a estrada parecesse ser maior do que eu podia alcançar, eu preferia ir a pé. E eu ia.

“Aqui por essas terras”, disse um homem sábio em uma das muitas caronas que peguei, “não dá pra levar ao pé da letra quando alguém diz ‘É logo ali’”. E isso depois de me informar que só poderia me levar até uma parte do caminho, e antes de uma longa viagem que incluiu quatro ou cinco paradas pra colher frutas, ver algum rio ou dar um oi pra um conhecido no caminho. Desembarquei outras tantas horas mais tarde, em lugar nenhum, “Eu vou por esse caminho ali, você desce essa estradinha e [aqui começa uma série interminável de instruções com pontos de referência dos mais absurdos, voltas e voltas por encruzilhadas e porteiras e pequenas pontes feitas com troncos de árvores, sobe ladeira e desce ladeira, depois é logo ali], não tem como errar”.

No início da noite, eu me aproximava do meu destino acomodado nos fundos de um caminhão, um pouco da poeira da estrada ainda chegando até onde eu estava, mas uma visão perfeitamente limpa de um céu carregado de estrelas até quase as finas camadas de amarelo e vermelho sobre a linha do horizonte – e parecia que o sol tinha ido embora havia tanto tempo. Estava logo ali. Eu me sentia alguns amigos mais velho, alguns anos mais perto dos desconhecidos que me esperavam, mantinha os olhos bem abertos, registrando cada detalhe. Nenhum sinal de luz elétrica, nenhuma casa, nada. Respirei profundamente. Tudo, até o cheiro era azul escuro.







 

sábado, 14 de novembro de 2020


 



(ATÉ AQUI)
bravos irmãos
gentil senhora
menina gentil – brava menina e menino gentil
meninos irmãos
bravas mulheres e homens com seus gestos transparentes de acolhimento
copos de água pra quem tem sede
vento gentil à sombra a quem tem caminhado uma longa estrada
a palavra de entrega e presença
a voz clara
calmos guerreiros atentos e de atitude amiga
é uma existência já exausta
a que trago atrás dos olhos às portas de suas casas
eu o forasteiro
sem irmãos sem leis já quase sem vontade
bravas guerreiras
doces irmãos doces e bravos
queridas irmãs de meu coração sem amparo

todo este continente atravessei maravilhado e triste
constantes eternidades sendo gravadas a fogo no mais fundo da memória
tenho amado homens e mulheres de tantas músicas na fala
de tantas línguas nativas e estrangeiras por aqui espalhadas
mas não posso pertencer nem amo nada que acredite possuir o que seja
não reconheço autoridades nem haverá jamais governo que me represente
por todas essas terras amei e me despedacei partindo sempre
ouço ainda os lamentos
vejo ainda os povos tentando levantar exércitos
vejo ainda os povos que acreditam só estarem de pé graças aos seus exércitos
vejo os povos que tombam
tenho chorado mais que as águas deste rio que me trouxe
tenho chorado os rios que a ele se juntam até transbordarem o mar salgado
meus olhos mal conseguem enxergar de tantas águas
minhas mãos trêmulas já não suportam o peso da bagagem
meus pés se recusam ao próximo passo
estou sozinho demais em uma época hostil
e não tenho outra época

ouçam
não tenho mais amores pra cantar nem versos que me confortem
não há nada de mim sob meu nome e renuncio a tudo que ainda seja máscara
transformações bem mais profundas têm se desdobrado ocultas em minha alma
e eu tenho sede delas
me alegra que eu tenha chegado a este porto e que fossem vocês que estivessem perto
me saciam seus pães
seus amores suas vozes fortes quando me desejam boa tarde
vejam
meu corpo precisa de repouso
meus sonhos velhos querem se deitar às margens de suas matas
beber seus pássaros azuis
as flores vermelhas da praça

irmãos
rainhas descalças
elementais das ruas e do concreto
me abracem
me deixem ficar mais um pouco
é hora
de compreender com meu corpo
o que é jamais ir embora


 

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

na verdade, eu esqueço de escrever legenda com aquele é o centro-oeste da Argentina, este aqui é o do Brasil, isto aqui é no interior do Piauí, na verdade, eu queria publicar o desenho de um cartaz que diz "m de marte h de vênus", ou um muro escrito "Basta de transfobia", na verdade, eu me perguntava quem vê tanta fotografia, lê tantas palavras, pensa no assunto, eu mesmo não entendo a guerra dos sexos assim como nenhuma outra, classe, cor, gerações, deus, diretor de cinema preferido, agora me pergunto quanto tempo faz que estou olhando pra essa folha em branco, tem personagens que não quero mais interpretar, raciocínios que não quero ficar repetindo, não me ocorre nenhuma boa história pra contar nem nenhuma grande ideia que valesse um manifesto ou sei lá, que se pudesse explicar em um texto pra teatro, Personagem entra pela direita, olha para o público e diz: Agora está tudo explicado, e olha que eu queria dizer logo toda a verdade, mandar a real, o papo reto, ou sei lá como se diz hoje em dia, como é que vocês falam por aqui, mas a verdade é que eu também queria uma metáfora, uma alegoria, uma porção de imagens abstratas pra esse reino abstrato que é também verdade e paira e não termina, este aqui é o interior da sua alma, nem tanto pela pretensão de um bom retrato, quem não abraça a falta de sentido acaba prisioneiro dela, o céu nunca foi limite, queria mesmo era publicar o mundo, às vezes até sem nenhum remendo, na verdade, tudo já foi dito e a folha continua em branco, como um abismo entulhado de tudo e nada, como uma colcha de silêncios em retalhos