Sonhou
que estava caminhando havia muitos anos sem encontrar ninguém quando se deparou
com um grande buraco no chão no qual uma pessoa suja e ferida jazia de bruços.
Calculou a profundidade do buraco e se deu conta, primeiro, de que a pessoa não
conseguia subir sozinha e, segundo, olhando bem à sua volta, de que não havia
nada por perto que pudesse servir para ajudar a tirá-la de lá. Sentou-se,
portanto, à borda do buraco e começou a gritar para acordá-la – e foi então que
acordou com os seus próprios gritos.
Estava
de bruços sobre um chão de pedras soltas e sentia o corpo todo dolorido.
Percebeu que as pedras tinham o tamanho de punhos e que em quase todas havia
alguma mancha de sangue. Virou-se, a muito custo, e logo compreendeu que era
justamente a pessoa que tinha acabado de ver em seu sonho, dormindo no fundo de
um buraco. Olhou para o alto, para a borda em que havia se sentado e, quase sem
surpresa, descobriu que ainda estava lá, exatamente na mesma posição de minutos
antes.
– Só você
pode se ajudar – disse a versão de si que estava lá em cima.
Piscou.
Sua cabeça latejava. A frase parecia não se acomodar direito dentro de nenhuma
lógica.
Quando
abriu os olhos outra vez, estava em uma cela escura de pedras, com não mais de um metro
quadrado e sendo uma das paredes de vidro, com muito espaço dali para fora.
E exatamente ali, do outro lado do vidro, acenando em sua direção, estavam três
pessoas, duas delas crianças, parecendo uma família incompleta. A sua família,
talvez. Mas não pareciam tristes, preocupadas, nem mesmo muito amorosas em seus
gestos. Pelo contrário: pareciam até estar se divertindo.
Não
durou muito tempo. No instante seguinte, aquelas pessoas foram embora e deram
lugar a outras, completos desconhecidos que passavam, acenavam em sua direção,
divertiam-se por alguns minutos e depois iam embora outra vez, até que
chegassem os próximos. Tentou gritar, bater com força no vidro para ver se
conseguia quebrá-lo, mas ele sequer se moveu, nem houve ninguém do outro lado
que parecesse se importar com os seus gritos. Teve até a impressão de que as
pessoas se divertiam ainda mais diante do seu desespero.
Viu-se
outra vez no mesmo buraco em que estava antes, com a diferença agora de que o
seu “outro eu” já não estava mais no alto, mas ali mesmo, ao seu lado – e já
não era um só, senão dois “outros eus”. Um deles permanecia imóvel e em
silêncio, observando atentamente todos os seus gestos, enquanto o outro acabava
de abrir um livro mais alto que uma pessoa, começando a ler logo em seguida:
– “Não
aceitar favores de estranhos” – disse, apontando para o alto da primeira
página. E depois, correndo o indicador ao longo da folha, conforme ia lendo: –
“Dizer ‘por favor’ e ‘obrigado’”. “Ser gentil”. “Não tentar dar um passo maior
do que a perna”.
Não
interrompeu a leitura nem por um segundo, o que durou várias horas naquele
mesmo tom de voz monótono e sem expressão, até que chegou à última linha.
Então, virou a página, pousou o indicador no alto da folha e recomeçou:
– “Não
falar mal pelas costas”. “Não trair”. “Não abandonar”. “Lavar a louça logo
depois de sujá-la”. “Praticar esportes”. “Escovar os dentes pelo menos três
vezes ao dia”.
Ficar
ouvindo aquilo era terrivelmente entediante – exceto quando se tratava de
alguma regra desobedecida desde há tempos ou sempre, aí então sua impressão
variava entre combinações de irritação e culpa. Por sorte, lembrou-se de que
guardava no bolso um pequeno aparelho de trocar mensagens e decidiu tirá-lo de
lá para se distrair um pouco. “Estou me sentindo uma pessoa horrível”,
escreveu, e a resposta veio rápida, simples e certeira: “Nós te amamos”.
Saboreou as palavras por instantes, enquanto a ladainha das regras continuava e
um olhar silencioso ainda pesava sobre todas as suas reações. Ergueu o aparelho
e escreveu de novo: “Mesmo que eu seja incapaz de seguir todas as regras?” A
resposta, desta vez, demorou um pouco mais, mas quando veio, trouxe-lhe até
mais coforto do que da primeira vez: “Nós te amamos”.
Quando
olhou ao redor, estava em um grande pátio entre milhares de pessoas que
pareciam revoltadas ao mesmo tempo em que esperavam por algo, conversando entre
si com a voz grave, baixa e entre dentes. Um pouco depois, um homem muito bem
vestido começou a se destacar logo adiante, subindo em alguma espécie de
púlpito que não se podia ver desde ali, e na mesma hora o burburinho à sua
volta começou a diminuir, e foi diminuindo até desaparecer por completo. Quando
o silêncio se fez, o homem falou em alto e bom som:
–
Estou aqui representando os Senhores da Vida na Terra e trago uma ótima
notícia: Estamos crescendo economicamente!
A
audiência toda explodiu em resmungos e gemidos de reprovação, até que alguém
gritou bem alto:
– Quem
está crescendo?! Somos nós que estamos trabalhando por isso todos os dias, e é
como se essas palavras não tivessem nada a ver com ninguém aqui.
– Não
sejam ingratos – vociferou o homem no palanque, com um tom de absoluto desprezo
em sua voz. – Trabalhem. Não é hora de duvidar. Estamos quase chegando lá!
–
ONDE? – gritaram várias pessoas, mas o homem já tinha desaparecido outra vez.
“Agradeça
por ter um trabalho”, foi a primeira regra que ouviu quando se deu conta de que
estava de volta ao mesmo buraco de sempre. Mas não ficou ali por muito mais
tempo, dessa vez: num piscar de olhos, regressou à pequena cela de onde via
desconhecidos passarem e acenarem em sua direção.
Já
estava entrando em desespero quando se deu conta de algo tão óbvio que até se
envergonhou por não ter percebido antes: ninguém nunca havia lhe acenado ali,
nem uma única vez. Todos acenavam a si mesmos, refletidos no vidro – e apenas
dali, de dentro da cela escura, o vidro ficava completamente transparente.
“Não
se envaideça”, foi a próxima regra que ouviu, voltando ao buraco, “ninguém está
prestando atenção em você”. À sua volta, não havia mais somente dois daqueles
“outros eus”, mas quatro. Os dois primeiros continuavam exatamente como antes –
lendo e observando em silêncio – e os recém-chegados estavam olhando curiosos
em direções opostas: um, para cima, outro, para baixo.
– A única
maneira de alguém gostar de você – disse aquele que até então apenas observava
em silêncio – é simplesmente não sendo você.
– Eu
morri! – gritou, de repente, a versão recém-chegada que ficava olhando para
baixo. – Meu corpo está enterrado embaixo dessas pedras. Preciso tirá-las
daqui! Preciso recuperar o meu corpo!
– Sim,
faça isso! – disse a versão que olhava para o alto. – Vá jogando umas pedras
para cá, vou empilhá-las até chegar lá em cima.
Então,
pela primeira vez em muito mais tempo do que era capaz de se lembrar, sentiu
uma pontada de esperança – o suficiente para relaxar a expressão do seu rosto e
acender um brilho nos olhos. E imediatamente começou a receber as pedradas.
Várias, por todo o corpo, pedras do tamanho de um punho arremessadas com força,
não se sabia de onde, por quem, até quando.
“Não se envaideça”,
leu a versão de si no grande livro, “todos estão reparando em você, o tempo
inteiro, atentamente”.
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