quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Sentiu a brisa tocar seu rosto, inspirou profundamente. Estava em um vasto planalto, mal conseguia enxergar até onde ele ia, não importava para que lado olhasse. Um chão de terra batida, bastante pedregoso e sem nenhuma vegetação, exceto, aqui e ali, por alguns arbustos e pequenas árvores de galhos secos e retorcidos. Ou talvez lá, muito ao longe, houvesse algum tom de verde... Era difícil dizer com certeza, olhando dali.

– Você não precisa se preocupar – disse, de repente, uma mulher que surgiu ao seu lado, translúcida como um fantasma ou uma holografia, – já sabemos do que você gosta. Com nosso serviço de streaming, você terá acesso ao que de melhor está sendo produzido em arte no mundo atualmente. É muito mais conteúdo do que você terá tempo para consumir. Mas você não pode ficar sem, uma vez que...

Parou de prestar atenção, mas a mulher continuou lá, falando sem parar, obviamente sem ter o menor conhecimento de sua presença ali. Tentou encontrar alguma coisa – qualquer coisa – que pudesse usar como justificativa para escolher uma direção a seguir, mas não havia absolutamente nada que se destacasse na paisagem. A própria brisa parecia vir de várias direções diferentes e aleatórias. O sol – se houvesse algum por trás daquele manto cinza que se estendia em todo o céu – poderia estar em qualquer lugar. “Toda escolha que eu fizer será arbitrária”, pensou, como se não fosse igualmente arbitrário estabelecer qualquer referência para justificar uma direção a seguir.

– Todas as pessoas inteligentes estão usando camisetas com as nossas frases inteligentes – falou um rapaz translúcido que também apareceu subitamente ao seu lado, enquanto a outra mulher ainda continuava lá, falando e falando. – Qualquer pessoa que queira ser respeitada usará uma das nossas roupas feitas com as mais exclusivas palavras que todo mundo espera ouvir. Amarre você também em sua cabeça uma das nossas melhores ideias se quiser que alguém dê algum valor para você.

Então estava em um vasto salão dourado que – soube imediatamente – servia de antessala ao lugar onde se encontravam os Senhores da Vida na Terra. Longe, incrivelmente longe, havia uma única porta que levava para fora dali – e, sobre ela, piscando em enormes letras de luz vermelha, os dizeres: ESTAMOS CRESCENDO ECONOMICAMENTE. Não havia mais ninguém por perto. Só quando se moveu para andar em direção à porta foi que se deu conta da grossa camada de sangue já quase seco sob seus pés, o que deixava o chão ligeiramente escorregadio. Avançou com cuidado, uma travessia que durou longas e silenciosas horas – e ainda não havia ninguém por perto, nada, somente as letras vermelhas piscando sobre uma porta desproporcionalmente pequena.

Só quando se aproximou foi que pode constatar que na porta não havia trinco ou fechadura. Tentou empurrá-la, movê-la em qualquer sentido, sempre inutilmente. Então decidiu bater à porta e esperar. E esperou. E esperou, depois bateu outra vez à porta e esperou mais um pouco e então começou a bater com mais força e com mais insistência, até que por fim passou a esmurrar e chutar a porta com todas as suas forças.

– Você possui alguma herança, por acaso? – perguntou um homem parado a alguns metros às suas costas. Mas antes que pudesse responder, o homem desapareceu e reapareceu vários passos adiante com outras perguntas: – Tirou a sorte grande? Alguém te chamou aqui? – Desapareceu de novo e ressurgiu quase ao seu lado, apontou para o chão e perguntou: – Alguma vez você derramou uma só gota do sangue de um trabalhador?

Ia responder, mas só então se deu conta de que o sangue vinha escorrendo pelas paredes a partir do letreiro luminoso sobre a porta, e no instante seguinte estava outra vez no mesmo lugar de antes, no planalto, agora no meio de umas dez ou doze pessoas translúcidas que falavam sem parar.

“É uma explosão de sabores na sua boca”, dizia uma delas, “você precisa provar”. E outra: “O melhor lugar da cidade para passear e comprar aquilo que está procurando”. E outra, ainda: “Todos os nossos cursos são preparados por renomados profissionais de cada área”, e várias vozes iam se confundindo ao comentar sobre mensalidades acessíveis, anuidades quase gratuitas, quantidades de parcelas, formas de pagamento – o número de pessoas translúcidas era cada vez maior e o barulho estava se tornando insuportável.

Tirou do bolso o pequeno aparelho de trocar mensagens que sempre carregava consigo, mas que vinha usando cada vez menos nos últimos tempos. “Estou livre”, escreveu, e em poucos segundos apareceu a resposta, a mesma resposta de sempre, a que dizia apenas: “Nós te amamos”. “Alguém está vindo?”, perguntou, por fim, e dessa vez não houve resposta por um longo tempo, até que apareceu, igual a todas as outras: “Nós te amamos”.

À sua volta, agora, havia centenas de pessoas translúcidas, talvez milhares. Estava prestes a começar a andar quando todas elas disseram em sincronia: “É só baixar o nosso aplicativo” – e, a partir daí, terminaram a frase cada uma à sua maneira. Parou, por um instante, chegou a pensar que alguma coisa importante viria a partir daí. Mas era só isso mesmo. Achou engraçado, respirou fundo e começou sua caminhada em direção a qualquer lugar.

Para sua tristeza, constatou que as pessoas translúcidas também se moviam para acompanhar a sua caminhada. E, no entanto, não tinha dúvidas de que andar era a sua melhor alternativa. Avançou a passos firmes, sem saber para onde nem conseguir enxergar muito adiante. Avançou, apenas, e continuou avançando.

Algumas horas depois, percebeu que parte de si se espalhava e se expandia, como uma espécie de nuvem luminosa, para o alto e rente ao chão, em todas as direções, a partir de algum ponto entre as suas omoplatas. Algo que talvez sempre tivesse carregado em seu corpo – e que, de certa forma, parecia mesmo ser a sua verdadeira natureza, o seu estado e a sua substância “originais”, sendo que o corpo, sim, é que era apenas uma ilusão, ou projeção, ou só uma impressão delirante. Era difícil entender como aquilo funcionava, onde acabava uma coisa e começava a outra, e em quantos níveis as duas estavam entrelaçadas. “Talvez seja tudo uma coisa só”, pensou, mas não tinha muita certeza de quem, exatamente, estava pensando aquilo.

– Alma – sussurrou, então, compreendendo, com um leve sorriso nos lábios.

E naquele instante, uma pedra simplesmente atravessou a sua cabeça, arremessada não se sabe de onde, às suas costas, seguindo no ar por mais alguns metros adiante dos seus olhos.

“Em algum lugar”, pensou, “aquela pedra acabou de me acertar em cheio”.

E isso era um fato puro e simples.

Achou melhor fazer silêncio durante todo o resto da caminhada.

2 comentários:

Beti disse...

Crítica interessante, inteligente. Mesmo assim vou dizer sempre que te amo

Beti disse...

....... digo que te amo, faço o que posso....