Sentiu
a brisa tocar seu rosto, inspirou profundamente. Estava em um vasto planalto,
mal conseguia enxergar até onde ele ia, não importava para que lado olhasse. Um
chão de terra batida, bastante pedregoso e sem nenhuma vegetação, exceto, aqui
e ali, por alguns arbustos e pequenas árvores de galhos secos e retorcidos. Ou
talvez lá, muito ao longe, houvesse algum tom de verde... Era difícil dizer com
certeza, olhando dali.
– Você
não precisa se preocupar – disse, de repente, uma mulher que surgiu ao seu
lado, translúcida como um fantasma ou uma holografia, – já sabemos do que você
gosta. Com nosso serviço de streaming, você terá acesso ao que de melhor
está sendo produzido em arte no mundo atualmente. É muito mais conteúdo do que
você terá tempo para consumir. Mas você não pode ficar sem, uma vez que...
Parou
de prestar atenção, mas a mulher continuou lá, falando sem parar, obviamente
sem ter o menor conhecimento de sua presença ali. Tentou encontrar alguma coisa
– qualquer coisa – que pudesse usar como justificativa para escolher uma
direção a seguir, mas não havia absolutamente nada que se destacasse na
paisagem. A própria brisa parecia vir de várias direções diferentes e
aleatórias. O sol – se houvesse algum por trás daquele manto cinza que se
estendia em todo o céu – poderia estar em qualquer lugar. “Toda escolha que eu
fizer será arbitrária”, pensou, como se não fosse igualmente arbitrário
estabelecer qualquer referência para justificar uma direção a seguir.
–
Todas as pessoas inteligentes estão usando camisetas com as nossas frases
inteligentes – falou um rapaz translúcido que também apareceu subitamente ao
seu lado, enquanto a outra mulher ainda continuava lá, falando e falando. –
Qualquer pessoa que queira ser respeitada usará uma das nossas roupas feitas
com as mais exclusivas palavras que todo mundo espera ouvir. Amarre você também
em sua cabeça uma das nossas melhores ideias se quiser que alguém dê algum
valor para você.
Então
estava em um vasto salão dourado que – soube imediatamente – servia de
antessala ao lugar onde se encontravam os Senhores da Vida na Terra. Longe,
incrivelmente longe, havia uma única porta que levava para fora dali – e, sobre
ela, piscando em enormes letras de luz vermelha, os dizeres: ESTAMOS CRESCENDO
ECONOMICAMENTE. Não havia mais ninguém por perto. Só quando se moveu para andar
em direção à porta foi que se deu conta da grossa camada de sangue já quase
seco sob seus pés, o que deixava o chão ligeiramente escorregadio. Avançou com
cuidado, uma travessia que durou longas e silenciosas horas – e ainda não havia
ninguém por perto, nada, somente as letras vermelhas piscando sobre uma porta
desproporcionalmente pequena.
Só
quando se aproximou foi que pode constatar que na porta não havia trinco ou
fechadura. Tentou empurrá-la, movê-la em qualquer sentido, sempre inutilmente.
Então decidiu bater à porta e esperar. E esperou. E esperou, depois bateu outra
vez à porta e esperou mais um pouco e então começou a bater com mais força e
com mais insistência, até que por fim passou a esmurrar e chutar a porta com
todas as suas forças.
– Você
possui alguma herança, por acaso? – perguntou um homem parado a alguns metros
às suas costas. Mas antes que pudesse responder, o homem desapareceu e
reapareceu vários passos adiante com outras perguntas: – Tirou a sorte grande?
Alguém te chamou aqui? – Desapareceu de novo e ressurgiu quase ao seu lado,
apontou para o chão e perguntou: – Alguma vez você derramou uma só gota do
sangue de um trabalhador?
Ia
responder, mas só então se deu conta de que o sangue vinha escorrendo pelas
paredes a partir do letreiro luminoso sobre a porta, e no instante seguinte
estava outra vez no mesmo lugar de antes, no planalto, agora no meio de umas
dez ou doze pessoas translúcidas que falavam sem parar.
“É uma
explosão de sabores na sua boca”, dizia uma delas, “você precisa provar”. E
outra: “O melhor lugar da cidade para passear e comprar aquilo que está
procurando”. E outra, ainda: “Todos os nossos cursos são preparados por
renomados profissionais de cada área”, e várias vozes iam se confundindo ao
comentar sobre mensalidades acessíveis, anuidades quase gratuitas, quantidades
de parcelas, formas de pagamento – o número de pessoas translúcidas era cada
vez maior e o barulho estava se tornando insuportável.
Tirou
do bolso o pequeno aparelho de trocar mensagens que sempre carregava consigo,
mas que vinha usando cada vez menos nos últimos tempos. “Estou livre”,
escreveu, e em poucos segundos apareceu a resposta, a mesma resposta de sempre,
a que dizia apenas: “Nós te amamos”. “Alguém está vindo?”, perguntou, por fim,
e dessa vez não houve resposta por um longo tempo, até que apareceu, igual a
todas as outras: “Nós te amamos”.
À sua
volta, agora, havia centenas de pessoas translúcidas, talvez milhares. Estava
prestes a começar a andar quando todas elas disseram em sincronia: “É só baixar
o nosso aplicativo” – e, a partir daí, terminaram a frase cada uma à sua
maneira. Parou, por um instante, chegou a pensar que alguma coisa importante
viria a partir daí. Mas era só isso mesmo. Achou engraçado, respirou fundo e
começou sua caminhada em direção a qualquer lugar.
Para
sua tristeza, constatou que as pessoas translúcidas também se moviam para
acompanhar a sua caminhada. E, no entanto, não tinha dúvidas de que andar era a
sua melhor alternativa. Avançou a passos firmes, sem saber para onde nem
conseguir enxergar muito adiante. Avançou, apenas, e continuou avançando.
Algumas
horas depois, percebeu que parte de si se espalhava e se expandia, como uma
espécie de nuvem luminosa, para o alto e rente ao chão, em todas as direções, a
partir de algum ponto entre as suas omoplatas. Algo que talvez sempre tivesse
carregado em seu corpo – e que, de certa forma, parecia mesmo ser a sua
verdadeira natureza, o seu estado e a sua substância “originais”, sendo que o
corpo, sim, é que era apenas uma ilusão, ou projeção, ou só uma impressão
delirante. Era difícil entender como aquilo funcionava, onde acabava uma coisa
e começava a outra, e em quantos níveis as duas estavam entrelaçadas. “Talvez
seja tudo uma coisa só”, pensou, mas não tinha muita certeza de quem,
exatamente, estava pensando aquilo.
– Alma
– sussurrou, então, compreendendo, com um leve sorriso nos lábios.
E
naquele instante, uma pedra simplesmente atravessou a sua cabeça, arremessada não
se sabe de onde, às suas costas, seguindo no ar por mais alguns metros adiante
dos seus olhos.
“Em
algum lugar”, pensou, “aquela pedra acabou de me acertar em cheio”.
E isso
era um fato puro e simples.
Achou
melhor fazer silêncio durante todo o resto da caminhada.
2 comentários:
Crítica interessante, inteligente. Mesmo assim vou dizer sempre que te amo
....... digo que te amo, faço o que posso....
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