sábado, 24 de julho de 2021


 


 

Naquela noite, começamos a criar as cenas no improviso e a escrever as primeiras linhas do texto. Escolhemos nossos próprios nomes pros personagens, apesar de que, como era tudo inspirado em contos de autores nacionais, ficava claro o tempo todo que eram só personagens. Começamos a discutir o título enquanto esperávamos a pizza e alguns de nós terminavam de se arrumar pra voltar pra casa. Frases dos contos, títulos dos contos, a Gabriella sugeriu que a peça se chamasse "Gabriella", o Mateus olhava em silêncio pela janela: a noite iluminada e barulhenta no centro de Curitiba.

Entre clichês e absurdos, a Larissa telefonou pra casa e o Mateus foi se sentar do lado da Gabriella, assim como quem não quer nada. Eu e a Jéssica imediatamente nos olhamos - tínhamos falado sobre os dois naquela mesma tarde...

- "Três lírios no peito" - falou a Larissa, voltando pra perto de nós.

Todo mundo ficou pensando naquilo por um tempo, parecia que tínhamos chegado a algum lugar. Mas era sempre uma história de que isso favorece só um conto, só um personagem, ou então é bobo, brega, alguém fazia uma piada e tudo se perdia.

Em pouco tempo, a Jéssica se cansou e decidiu colocar uma música, mas no fim, o interfone tocou antes do refrão, começou um movimento todo de juntar o dinheiro, ir pegar os copos, o Mateus e a Gabriella entraram em uma conversa só deles e eu fui até a janela olhar um pouco pra cidade do décimo andar.

Todo mundo sabe que, no exato instante em que se abre a primeira caixa, não tem nenhuma importância se é o maior clichê um ensaio terminar em pizza. Os ruídos de conversa desapareceram nos primeiros minutos, depois o silêncio terminou em comentários como "essa de frango com catupiry está uma delícia''. Mais alguns minutos de silêncio e de repente o Mateus falou:

- "Já pretendia amar".

E todo mundo gostou, mas ficou se perguntando se ele ainda estava falando de um título pra peça.

 



 

sábado, 17 de julho de 2021


 

Era o sorriso mais claro, uma ternura assim de sono ou qualquer coisa tão macia, sem contar a pele, as ondas da voz dela dizendo eu te levo lá não se preocupe, o nome dela combinava com tudo, era leve, usava a sua roupa mais alegre,

por muito menos eu esqueceria quem eu era ou onde estava indo, e ela me deixando olhar aquelas pernas, um balanço quase distraído caminhando à minha frente, perto o bastante pro perfume dos cabelos, os pelos meio arrepiados do seu braço,

quando um caminho na floresta as árvores mais altas das mais densas matas só nós dois libertos, lábios úmidos trocando uma conversa boba e então a blusa meio levantada, a risada de deleite e nervosismo, um gesto aproximando os corpos como num repuxo,

o quente se juntou ao quente, um grande afeto transbordado pra mais dentro, os dedos, o delírio até sons graves cantam pássaros terrestres, mergulho mais maravilhado, fluidez de busca encontro busca e êxtase encontrado, o paraíso então é carne,

espalha num repouso largo a sede satisfeita e pétalas e pólen, silêncio em todo o vasto território da união das nossas palmas, eu ficaria ali pra sempre entrelaçado a ela no oceano verde, o instante quieto de depois de ter nascido um universo,

mas me lembro com o corpo inteiro de ter visto a claridade do sorriso dela, murmurar seu nome o cheiro a pele que eu pensava que sonhava, doçura adormecida de nudez da selva, céu achegado, calma, a sensação de que no mundo tudo nos adora.


 


 

sábado, 10 de julho de 2021


 


 

Dormir na rede nunca foi um problema, e apesar de estar fazendo um frio meio fora do normal, naquela noite, também não era por isso que eu não estava conseguindo dormir direito. Eram por volta de três ou quatro horas quando resolvi me levantar um pouco e caminhar até a beira do rio, arejar a cabeça, não sei, quem sabe encontrava o sono em algum canto. Ninguém se moveu nas outras redes enquanto eu me afastava, nem havia nenhum sinal de gente acordada, ou que acordasse enquanto eu cruzava a comunidade em direção ao rio com a minha lanterna.

O rio estava cheio, e caía uma garoa fria e fina que eu jamais pensei que fosse ver cair no meio da Amazônia. Sentei-me à beira da água embrulhado em meu casaco, o gorro protegendo a cabeça, e por um instante a familiaridade do clima me distraiu, não estranhei quando reparei na canoa que vinha subindo o rio, lentamente, com um único homem que usava um remo muito grande. Ele se aproximou devagar e eu apenas esperei, como se estivesse prestes a receber um velho amigo.

- Boa noite - ele falou ao chegar mais perto.

- Boa - respondi, e eu mesmo reparei na animação da minha voz, quase destoando do clima e do horário.

Ele encostou o barco e desceu, deixando para trás o grande remo que, notei então, tinha algum tipo de escultura na alça. O homem era pequeno e meio claro para os padrões dali, com uma barba cujo avermelhado se destacava até na luz fraca e meio indireta da minha lanterna.

Ele se sentou ao meu lado e começou a enrolar fumo sem conversar muito, disse que se chamava Aru e que estava indo até a cabeceira do rio, mas estava com uma preguiça gigante - ou pelo menos foi isso que eu achei que ele tivesse dito, não entendi direito. Era calmo, falava pouco e devagar, parecia perfeitamente confortável com a garoa fria e fina e fumou tranquilamente embaixo dela até não restar mais quase nada em seu palheiro. Quando foi embora, remando muito devagar rio acima, eu tinha tanto sono que podia dormir ali mesmo. Para ser sincero, nem me lembro direito de como voltei para a rede, tenho só lembranças meio borradas como as de um sonho, ou como se elas fossem inventadas.

Só muito tempo depois me falaram sobre este ser mítico que sempre aparece no Médio e Alto Rio Negro em época de cheia. Ele provoca o frio e a chuva fina com seu remo de alça entalhada - um remo que pode dar poderes especiais a quem se apossar dele. Em sua viagem, Aru acaba provocando um dia ou dois de frio e garoa, às vezes uma névoa tão densa que mal se pode enxergar a outra margem de um rio, mesmo durante o dia.

Mas naquele tempo, eu ainda não sabia de nada disso. Quando acordei, pela manhã, só achei que a névoa caía bem na paisagem, por mais que ainda a estranhasse ali. Todos na comunidade pareciam mais quietos e lentos, o café demorou um pouco mais a sair. Seu Filisbino, nosso anfitrião, apareceu quando já começávamos a encher os primeiros copos.

- Chegou Aru - disse ele, animado.

- É, ele parou um pouco à noite - falei - mas continuou subindo o rio.

Aí Seu Filisbino passou o resto do dia olhando para mim com cara de desconfiado.


 

sábado, 3 de julho de 2021


 


 

Por que esses jovens em aquários em armários enlatados
Em telas alienados em ideologias nas igrejas nas escolas
Apartados
Doutrinados de algoritmos mercados e descaso
Porque esses jovens bravos bárbaros fantásticos
Arremessados sempre em frente reinventando o agora
Inteiros suas respostas
Ardem e ignoram o quanto ardem e ignoram tanto
Até quando
A juventude não existe a juventude nunca deixou de existir
Promessa contínua agitação de espera
Não importa o que ela faça ainda não é sua vez
A juventude já caducou faz séculos
Parece que ela acaba de voltar à moda