sábado, 29 de abril de 2017
– A vida é cheia de som, fúria, alarmes e surpresas –
ela disse.
no alto de um
prédio cavalgar violoncelos desafia a
morte ela será tua
roupa é hora de acordar e ainda
ter vencido de
uma forma inexplicável mas na
boca um gosto de
querida eu acho que nós não
devíamos ter
fumado aquele pássaro
– Sei lá – ele respondeu. –
Jesus não me quer pra rockstar.
eu fico mudo de espanto. esse milagre de ser, multiplicado e diverso, o balé do acaso em multidões pelas ruas e crianças em parques ou pátios de escola, eu mal consigo acreditar, meus olhos se prendem e eu me esqueço de tudo. ou por exemplo quando você fala. quando um sorriso se abre e quando os teus olhos brilham ou também se prendem nos meus como se me investigassem ou estivessem à espera. eu não me canso de olhar. olhar de curioso, de ignorar por completo as combinações e graus de pensamentos emoções e instintos que agitam os gestos. fala, por favor, não pare nunca de falar. que força escolhe o tom da voz, que força vibra o ar e o que pretende que se agarre – eu posso olhar eternamente, embriagado, agradecido e triste de saber que nada pode aprisionar e preservar indefinidamente no meu corpo as vidas que observo. no meu corpo, sim, este que é o único palco de eu também ainda estar vivo. nem mesmo a memória vai poder reproduzir cada pequeno instante, cada desconhecido íntimo ou anônimo que observei alguma vez por horas e observaria ainda por outras, mudo de espanto. não, não tenho como acreditar. porque existir não é possível, só não é. e ainda assim se existe.
sábado, 22 de abril de 2017
um sono intranquilo, levantar à uma e meia, ler mais um ou dois capítulos
de um livro, olhar a noite, excessivo silêncio, fantasmas, o mundo recomeçou a
andar e as possibilidades são infinitas e belas e assustadoras, sonhos
confusos, mais uma ou duas horas de sono, levantar e preparar um sanduíche,
excessivo silêncio, uma vontade de chorar por nada, a escuridão completa
caberia bem melhor numa hora dessas, mas um medo de verdade, ou quase, lábios
que se movem sutilmente acompanhando uma canção imaginada, excessivo silêncio,
dormir outro sono intranquilo, levantar às cinco ou cinco e meia ou quase, o
que terá restado da realidade apenas uma ideia vaga, delírios diurnos, essa
coragem injustificável.
sábado, 15 de abril de 2017
Por trás da nuvem de fumaça, o rosto, o olho, a alma – a noite que
atravessa a vidraça e encontra o cigarro aceso – multidões querendo sangue,
hordas de guerreiros nas calçadas, lobos salivando à porta – Por trás da nuvem
branca há um gemido de angústia engolido sem pressa, uma esperança de flor numa
terra pisada – vermes, fantasmas, anjos pintados com giz e uma lembrança sem
maquiagem – livros saturados de palavras – inúteis considerações binárias – Por
trás desta nuvem de fumo ainda resiste um nome, uma pele, a passagem – a poeira
do asfalto e dos pneus de borracha – no prédio em frente, três tevês ligadas em
um mesmo filme – Por trás da nuvem de fumaça (não se vê) há qualquer coisa que
só quer ser nada
sábado, 8 de abril de 2017
Fez quarenta graus à tarde.
Trocamos a cerveja por água de coco.
Fui visitar Eva em Santos me perguntando se aquele seria o nosso último encontro. Muitas vezes, em nossas viagens, andando ao seu lado pelas ruas de uma cidade qualquer ouvi ela dizer que nada ia durar até depois de virarmos a próxima esquina. Eu costumava brincar dizendo que sim, claro, a qualquer momento uma erupção solar pode transformar o planeta em um caldo fumegante de civilização avançada – mas daquela vez eu não estava achando graça. Nem apoiava a sua decisão de não ter um perfil no Facebook e outras restrições à tecnologia que dificultavam bastante uma comunicação à distância. Sobre o Fecebook, ela explicava:
– Eu ficaria muito tentada a falar com todo mundo ao mesmo tempo... E ficaria louca vendo cada um falar de uma coisa diferente ou alimentar o ódio dos dois lados de uma coisa só.
Caminhávamos sem pressa do Canal 2 ao 4, parando aqui e ali pra que eu fotografasse alguma coisa, e falávamos sobre ilusões de avanço, de como pensávamos que a esta altura de nossas vidas já teríamos conquistado o mundo, do que é envelhecer, da diferença óbvia pra nós dois entre maturidade e cinismo.
– Nada pode ser mais triste – considerei – do que a impressão de que a gente já esgotou todos os discursos capazes de despertar bons sentimentos. De que toda e qualquer palavra que a gente disser pode e vai ser explicada à luz de uma teoria qualquer que reduza o ser humano a puro egoísmo.
– É claustrofóbico – definiu ela.
Pensávamos que a esta altura de nossas vidas já nos sentiríamos livres.
– “Liberdade” não é uma palavra muito adolescente? – provoquei.
– Só sei que quando eu tinha dezesseis – ela falou – achava que a função dos adultos era eles se acharem melhores e mais importantes que os adolescentes. – Fez uma pausa, como se refletisse. – Agora que eu sou adulta, tenho certeza!
Rimos.
– Quando eu tinha dezesseis, – eu disse – às vezes parecia que tinha oito. Ou oitenta.
– Mesmo agora, que estou com cinquenta e cinco, às vezes ainda parece que eu tenho oito ou oitenta – emendou ela, que ainda estava longe de ter cinquenta e cinco.
Rimos outra vez, depois seu olhar se perdeu em direção ao mar.
– Tem dias que eu nem nasci – filosofou. Aí olhou pra mim com um sorriso meio triste e meio malicioso, arqueando as sobrancelhas: – E tem dias que eu não morro nunca.
sábado, 1 de abril de 2017
Este
aquele espírito de
vento e pólen, reflexo autônomo no espelho, um transparente fio de arremessar
galáxias, mãos de involuntária magia branca, este aquele imperturbável
persistente aqueles olhos inundados de ter visto e de inventar e de ter fé
porque sim de relâmpago e LEIA-ME DEVAGAR amanhã nada disso terá insubstância,
castelo d’água transformado em vinho, aquele um abraço incandescente de alívio,
isso mesmo a vitrine de uma satisfação gratuita, pomares amadurecendo ávida
vida e vertigem de resoluções em sementes, aquele inquebrável delírio
escorrendo paz, escrever no diário o dia hoje foi perfeito, impermeável
sussurro, só isso, só isso.
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