segunda-feira, 25 de março de 2019


As margens ásperas ferem o rio.
O tempo se atrasa, ou já estaríamos salvos.
A expressão no seu rosto diz "você perdeu"
Porque não poderia dizer "você está errado".

Os trapos de que me visto, as antenas agitam
O ar espalhando só mais ódio.
Nossos heróis se alimentam.
Oh sim nos ensinem, aprendemos tudo errado como sempre.

Manchas de dor na calçada.
Meus dedos estão quebrados, a fé, remendada
Com goma colorida, um sopro poderá parti-la.
Por que nos desampararam?

Um céu
Rasgando as asas de crianças assustadas.
Mas são os homens, não Deus,
Que riem enquanto destroem.

Nossos sentidos jorram.
Almas, canções, delicadezas destroçadas
Pela lei mais preguiçosa do mais forte.
Alegrias reduzidas ao ridículo.

Nós no palco de um circo, todos os derrotados.
Depressa! Eles querem se lembrar de como era ser humano
Antes de toda essa farsa de modernidade e de mercado.
Depressa! Andem! Derramem ao menos uma lágrima.

(Mas não gostarão dela de verdade.)
Os séculos lamentam o rumo que tomaram.
E lamentamos nós, é claro que lamentaríamos.
Mas em voz muito baixa, agora, que é pra não acordar os corvos.


terça-feira, 19 de março de 2019


No fim, eu estava sentado em um ponto de ônibus às três e meia da madrugada. Inutilmente, como já sabia. Fazia frio, eu tinha os dedos dos pés gelados e nenhuma força pra me manter em movimento, nem nenhuma vontade. Enquanto a noite se arrastava por aquela rua vazia e sem vento manchada pelas luzes amarelas dos postes. Meu coração tinha acabado de sumir, e no lugar em que ele pulsava antes, agora só existia alguma coisa meio parecida com irradiação fóssil. Eu não queria chorar, eu não queria reagir, eu não queria mais nada. Nem os pensamentos conseguiam tomar forma, nem haveria um deles que pudesse desfazer a sensação absoluta de derrota, de uma luta vã que eu arrastei durante tanto tempo só pra chegar à solidão daquela noite no centro de uma cidade esquecida. Muito ao longe, talvez, ou muito perto e baixinho, ecoava uma canção meio vaga sobre o destino melancólico dos descendentes dos anjos sobre a Terra: algo que ouvi na infância, como se a memória de uma canção assim ingênua pudesse me ajudar contra a imobilidade sólida do presente. Já era tarde. Não passaria nenhum ônibus naquela rua. E não havia mais nenhum lugar no mundo em que eu ainda conseguisse me sentir em casa.


terça-feira, 12 de março de 2019


Você pensa que o mundo é movido a ambição.
Pensa que todos nós temos que ter uma ambição igual à sua se quisermos ir pra frente.
Você pensa que o que chamam de progresso pode atropelar à vontade o que estiver em seu caminho.
Eu tenho é muita desconfiança de tanta bobagem.
O que eu sei, o que é óbvio é que tem muitas coisas além da ambição movendo o mundo.
Coisas demais, a verdade é que o mundo se move muito fácil.
Um cientista disse uma vez que só precisava de uma alavanca e de um ponto de apoio e ele moveria o mundo.
E olha que ele estava falando em mover o mundo literalmente, não nesse movimentozinho abstrato da ambição de vocês.
Pra ser sincero eu não me importo muito com essas coisas porque até gostava de ter um mundo sempre parado igual a uma manhã de domingo.
Porque se você for pensar direito não faz o menor sentido ficar se movendo tanto se não tem nenhum outro lugar pra irmos.
Quer dizer, podem inventar uma porção de coisas, mas ninguém sabe dizer com certeza quando é pra frente mesmo que estamos indo.
E isso de atropelar o que estiver no caminho é de uma estupidez tão grande e até uma criança sabe que não vai sair de graça.
Muito mais difícil que mover é sustentar o mundo.
Manter alguma luminosidade na vida frágil.
Sem essa maquiagem toda, o filtro na foto, o orgulho mesquinho da marca da roupa, da máquina, de um prato de comida, dos olhos da cara.
Muito mais difícil que incendiar os desejos é fazer dormirem os desesperados.
Mergulhar o coração na terra até sua carne ser do mesmo barro.
Muito mais difícil, e até muito mais urgente do que possuir uma paisagem morta, escravizada, é saber fluir como seiva dentro de suas árvores.
Compreender a ondulação quieta do tempo, porque é essa a sua matéria.
O resto é um rasgo, não nos interessa em nada.
É uma poesia insossa, estéril, duvidosa.
Pode ficar com ela pra você, encher seus bolsos com ela, construir palácios, muros, programas de auditório.
Pode fazer o que quiser com ela.
Não iremos junto, não nos ofereçam, por favor, não somos tão iguais de cegos.
São coisas que desabam.


terça-feira, 5 de março de 2019

Nenhuma metáfora. Nem um desabafo rouco. Nada de amor. Não se apaixone. Nunca mais uma rosa. Jamais outra flor. Ninguém mais quer. Basta de fragilidades. Decapitem as delicadezas.

Mínimos ciclones, penas que faltam pro voo, o pensamento é um fio muito esticado e não alcança a ideia, a vida oferecendo labirintos, vulcões de vontades em erupção e átomos se chocando até se dissiparem as paixões que os movem, fel no vinho, um brilho de espelho quebrado, mas nossa fantasia apodreceu na jaula em que vivemos por escolha, apenas um poder rasteiro sibilando um eco um oco um pouco um algo assim sem muito fogo o mesmo velho foco fácil previsível, já chegamos nisso tudo há muito tempo, não há por que continuar fingindo que avançamos, somos iguais demais no que negamos, no caos subterrâneo, no sopro divino, no medo de relâmpagos.

(Diários de Machu Picchu #13)