terça-feira, 30 de abril de 2019


Um vento frio demais pra Salvador, um céu muito cinza, seis formigas no lençol, manhã no meio, o vento procurando frestas na janela, um livro deixado de lado, o café deixado de lado, os afazeres do dia, um vento assoviando alguma coisa que eu não quero ouvir, que eu já escutei demais, que eu quero beber até o último som.

Sou ainda o mesmo espaço vazio por onde passo, tudo acontece a mim e nada é pessoal, parece que é só isso, depois não, dói, dá prazer, decorre e, às vezes, como agora, nada se move no mundo da pequena paisagem da janela do quarto, exceto as folhas das árvores, exceto a poeira das ruas, exceto o como um sopro faz pra se mostrar quando sopra.

Melancólico demais pra Salvador, o dia avança com pressa enquanto eu ainda me espanto, queria poder não pensar nem sentir tanto, queria experimentar de tudo, tenho trinta e quatro centavos e uma pia cheia de louças, a qualquer momento alguém me abraça, um dia a gente se encanta, a dança segue imóvel e em paz de mesmo assim poder ser dança, a vida nem sempre é triste, mas vive a cada instante, e é de verdade em cada parte, e arde, e anda.


segunda-feira, 22 de abril de 2019


Fazia uns dez minutos que o telefone estava tocando e eu andava em um corredor interminável, tentando achar a fonte do barulho incômodo, avançando cada vez mais rápido sem nunca conseguir chegar, até que uma engrenagem se encaixou na minha cabeça e eu finalmente me movi, não quero dizer com isso que eu tenha acordado, mas alguma coisa engatou e eu estendi o braço e tirei o fone do gancho e coloquei na orelha e resmunguei alô, então a voz do outro lado era forte e meio enrolada de bebida e queria saber como era o nome daquele texto de teatro, lembra, não-sei-o-que-lá das entranhas da noite, a voz falava sem parar enquanto a minha consciência voltava muito devagar e entendia o que estava acontecendo, tateando a escuridão à minha volta até descobrir no relógio que eram três e cinquenta e oito, que a voz era de Bernardo e que aquele era um caso de vida ou morte envolvendo uma garota, o que significava sexo ou não sexo, você ligou às quatro da manhã pra perguntar o título de um texto de teatro?! reclamei, mas ele estava decidido, lembra um texto meio triste, um texto que falava de como a cidade era perigosa à noite pra quem está bêbado lembra, as coisas que as pessoas podem fazer umas com as outras, acho que ele acordava em uma banheira cheia de gelo derretendo você precisa lembrar essa mulher é muito linda você não entende, meu quarto tinha cheiro de cigarro e a luz de um poste entrava pelos furos da cortina verde musgo, fala comigo doce como a chuva eu disse, mas Bernardo não ouviu, era um texto muito curto, falava da solidão de um casal e de como a comunicação não consegue comunicar de verdade ou algo assim, como é que isso pode servir pra conquistar uma garota pensei, meu deus as coisas que as pessoas podem fazer umas com as outras, porra Bernardo amanhã tem ensaio cedo eu disse, como era o nome do texto? ele repetiu, eu sei que você sabe R você nunca esquece o nome de um texto aposto que sabe até o nome do autor e eu disse é claro que eu sei o nome do autor é Tennessee Williams e o texto se chama fala comigo doce como a chuva, fala comigo doce como a chuva repeti, fala comigo doce como a chuva ele falou obrigado estou te devendo mais uma e desligou, o quarto a escuridão e o cheiro de cigarros de repente eram muito grandes como se eu estivesse vendo só agora e não gostasse nem um pouco, eu estava sozinho sem ter como nem pra quem comunicar o que quer que fosse, nas entranhas da noite, o sono desaparecido e um copo de água vazio na mesa de cabeceira, nada eu pensei nada ninguém nada, se é que nesta vida ainda pode um homem ter certezas, nada nem ninguém no mundo aprendeu ainda a falar tão doce quanto a chuva.


segunda-feira, 15 de abril de 2019


Aline foi conhecer Curitiba aos treze anos, numa viagem de férias com os pais e os dois irmãos pequenos, em mil novecentos e noventa e quatro ou noventa e cinco, levando uma daquelas máquinas fotográficas que você só ia ver as fotos depois de revelar o filme, às vezes semanas ou até meses depois. Muitos anos mais tarde, quase aos trinta, ela reviu as fotos dessa viagem numa visita aos pais no Sergipe, depois que ela mesma já tinha voltado a Curitiba pra morar e cursar uma faculdade de dança. Folheando um álbum, Aline reconheceu o Jardim Botânico numa das fotos, mais por já ter estado lá muitas vezes do que por se lembrar da viagem aos treze. Nessa fotografia, ela estava sorrindo, abraçada aos irmãos ao lado de uma fonte, perto da estufa. Ficou olhando um bom tempo até reparar no rapaz sentado em um banco ali perto, algo em que ela nunca tinha reparado antes. Nem saberia explicar por que reparou dessa vez, mas alguma coisa atraiu sua atenção naquele rosto e ela aproximou a foto pra olhar. O rapaz era muito parecido com um pintor de quem ela tinha ouvido falar algumas vezes em Curitiba, e que já tinha visto uma vez ou outra andando por lá com o pessoal de artes. O curioso foi que, assim que voltou do Sergipe, depois de fazer essa descoberta na foto, esse mesmo cara apareceu pra ela em uma rede social, adicionou como amiga e começou a conversar sobre as postagens dela por lá. A conversa se estendeu, se aprofundou e começou a virar outra coisa antes que Aline comentasse sobre a foto, mas chegou o dia em que finalmente falou. Começou perguntando quais eram as chances dele ter andado no Jardim Botânico em noventa e quatro ou noventa e cinco, e como ele falou que as chances eram muito altas, porque ele morava por perto e andava muito por lá, acabou contando tudo. Disse “eu acho que era você”, e ele concordou e disse que adoraria ver a foto pra confirmar. Ela disse que ia pedir à mãe que ela enviasse uma fotografia da fotografia, e ele aproveitou pra comentar que adoraria ver a foto original, ou que pelo menos eles poderiam examinar a foto da foto em um encontro cara a cara – e isso porque, àquela altura, já estava mais do que na hora dos dois se encontrarem, mesmo. No Café do Teatro, onde marcaram, descobriram que era ele, sim, sentado naquele banco – e isso incendiou ainda mais a relação dos dois. Casaram-se menos de um ano mais tarde. Num dia de muito frio, em julho, em que o Jardim Botânico amanheceu coberto de geada, todo de branco – fato que eles nos contam com um certo orgulho, como se fosse óbvio que o parque tinha tido a delicadeza de também se enfeitar pro casamento deles.

terça-feira, 9 de abril de 2019



chego a pensar em fazer as pazes com o mundo.
tenho a impressão de estar cometendo um erro
enorme ao romper com ele desse jeito mas talvez
tenha tido sempre essa impressão antes ou durante
todas as atitudes que tomei que me levaram aos
melhores momentos da minha vida.
e o mundo nem é alguém a quem eu poderia
estender a mão e dizer desculpa eu me enganei
a seu respeito. aliás não estou enganado mesmo
mas talvez
seja um erro estar rompendo assim de um jeito tão radical
só porque estou cansado de conhecer a verdade de tudo
e de repetir que estou cansado de conhecer a verdade de tudo
como se existisse uma.
sim é verdade que estou cansado de muitas coisas.
e é verdade também que tenho lá as minhas expectativas irreais e
ideais pra alcançar como se eles fossem alcançáveis
e que de certa forma estou correndo atrás de vento e que talvez
o que é pior estou até semeando vento porque todo mundo sabe
o que acontece com aqueles que semeiam vento mas
ei
tenho tido esse cuidado desde sempre
e sempre
não importa o que eu faça.
bem
agora não importa mais nada
e eu quero mais é que essa pressão toda se exploda
porque eu
ah sim
eu sobrevivo no final
e serei feliz pra sempre.
sim.
já li as últimas páginas
e estou falando porque sei.

segunda-feira, 1 de abril de 2019


Porém, contudo, era o meu coração que  estava sendo chutado naquela calçada. Depois de cuspidas minhas melhores palavras, pétalas, brasas. A honestidade era paga com desprezo, cada pequeno gesto analisado, medido e revirado até confirmar alguma teoria prévia de que eu era um monstro. Covardes que como tal eram heróis em bando, encontrando eco pras suas grandes arrogâncias de pequenos cérebros. Por que eu amava todos mesmo assim, humano fogo brando, enquanto eles matavam o que não entendiam. Eu ainda amava todos um por um.

No entanto, era o meu rosto sendo arrancado sempre, suspeitando-se de máscara. Mais tarde, eram vistos desfilando com orgulho os mesmos defeitos pelos quais me condenaram, chamando-os por outros nomes. Talvez eu morresse um pouco menos se participasse do seu tedioso culto à personalidade. De trás de um muro, diriam querer o meu bem, fariam declarações discretas. Fariam até parecer que eu era um deles.


Todavia, entretanto, a voz suave não fecha as feridas. Mentiras doces não causam belos finais de tarde.