segunda-feira, 23 de setembro de 2019
Tudo
estará bem enquanto você adorar os semideuses certos. Eles terão rios de
dinheiro, milhares de seguidores, livros sérios publicados, armas de fogo,
fogo, vocação para o escárnio. Desde toda a eternidade, afeto é uma fraqueza e só
com violência se responde ao fato de que somos todos igualmente vulneráveis. Vão
brigar pelo direito à exclusão com muito mais empenho do que para erguer moradas.
Uma vez que te aprisionem sob um rótulo, não demorarão a te esquecer enquanto
abraçam monstros bem maiores, enquanto aplaudem atitudes bem mais baixas. E,
sobretudo, estarão prontos para te ferir a cada vez que lhes pareça de passagem
que você está errado, mesmo se você não estiver errado.
Agarram-se
a preconceitos
Agarram-se
à intolerância
Agarram-se
desesperadamente
Ao
desejo de agredir
Adoram-se
em negação ao outro
Idólatras
de espelhos
Indigentes
indiversos
Fantoches
do medo
Podem
dar a explicação que quiserem para não abrir as portas quando alguém bate, mas
suas explicações ainda serão portas fechadas. Podem destruir sem piedade os
sonhos mais iluminados de um mundo bom, mas não podem culpar por isso nada além
do fato de já não sonharem. Podem lutar, tanto quanto lutam como bestas
digitalizadas, cumprindo alguma fantasia egoica de missão divina, purificadora,
revolucionária. Mas sempre que derramarem sangue em nome de valores elevados, ficarão
mais próximos de se tornarem seus inimigos que de tê-los derrotado.
terça-feira, 17 de setembro de 2019
Antero
ficou morando em Machu Picchu Pueblo por mais dois anos depois que nos conhecemos
lá. Ele e Ruth acabaram se casando, então ela engravidou e os dois foram morar
no leste da África, onde uma prima dela arrumou um bom emprego pra ele. E é onde
estão até hoje, com duas filhas lindas que a cada dia que passa se parecem mais
com a mãe. Trocamos notícias de vez em quando, e ainda espero que algum dia
possamos todos nos reencontrar.
Na
tarde em que os dois se conheceram, eu estava sozinho à margem do Urubamba, meditando,
como costumava fazer algumas vezes no tempo que passei por lá. Quando voltei ao
pueblo, no fim daquele dia, fiquei sabendo por um menino de uns oito
anos – que veio perguntar o que eu estava escrevendo em meu caderno – que
ficaríamos sem energia elétrica até a manhã seguinte. Voltei pra hospedagem
antes que escurecesse totalmente, e aí fiquei um bom tempo à janela do quarto, enquanto
anoitecia, vendo as ruelas se encherem de luzes de velas, lanternas e displays
de celulares.
No
fim, não resisti: fui andar também pelas ruas escuras. Ia passando por pessoas
sem rosto, por pequenos focos de luz que dançavam na calçada, sem saber muito
bem pra onde estava indo, se é que estava indo pra algum lugar, quando passou
por mim essa mulher alta, de pele escura e com os cabelos muito lisos, com um
sorriso tão luminoso e um par de olhos tão brilhantes que, infelizmente pra
quem não gosta de clichês, a escuridão em volta dela desaparecia por completo. Uns
dez metros adiante, depois que a vi, cheguei ao pé de uma escada e reconheci,
sentado no quarto ou quinto degrau, Antero, com os olhos igualmente brilhantes
e uma expressão de felicidade no rosto. Tentou disfarçar quando me reconheceu
também.
–
Ó, R, você acha que a gente pode achar um significado no apagão assim como
antigamente davam significados pra um eclipse?
–
Ãh... – hesitei. – Tenho a impressão de que hoje em dia ainda tem muita gente que
dá significado pra um eclipse.
Ele
sorriu e balançou a cabeça, contrariado, enquanto eu me sentava ao seu lado na
escada.
–
Um pouco antes de vir pra cá – ele falou – quando eu estava em Cuzco, fui
almoçar com uma amiga italiana e um cara muito novo que era israelense. Aí, lá
pelas tantas, do nada, no meio da conversa, a mulher começa a dizer pro moço que
não é nada pessoal, veja bem, longe dela dizer uma coisa assim, mas que por
razões políticas, ideológicas, ela prefere a Palestina. O rapaz baixa os olhos,
diz “se você gosta de terroristas”, pega o prato e sai pra se servir outra vez
no buffet. A italiana fica olhando pra mim com os olhos arregalados. “Eu e a
minha língua imensa”, ela diz. O rapaz contou depois sobre os anos de serviço
obrigatório que tinha prestado ao exército israelense. – Fez uma pequena pausa,
depois concluiu: – Uma pessoa de carne e osso, sabe, que viveu tudo aquilo, sentado,
ali, almoçando com a gente. Isso invade um pouco o nosso campo de autoridade pra
expressar qualquer opinião que seja sobre o assunto.
–
Foda – comentei. Aguardei uns segundos e depois falei: – Não seja mentiroso.
Deixei
que ele soubesse que eu estava olhando pra sua mão esquerda, onde alguém tinha
feito a inscrição à caneta: Ama Llulla, que em quechua quer dizer
exatamente isso, “não seja mentiroso” – um dos três maiores princípios morais
dos incas.
Ele
sorriu, agora como uma criança que foi pega numa travessura. Levantou os olhos
em direção aonde tinha ido a mulher de olhos brilhantes, mas agora, ali, só era
possível enxergar o mais absoluto breu. Levantou-se, de repente, um pouco sem
jeito e visivelmente agitado.
– Desculpa aí – ele disse. – Não tem como eu
falar nada sobre isso agora. – Desceu os degraus e fez menção de que ia embora,
mas aí parou e começou a me contar o que podia: – Quando caiu aquela chuva toda
na hora do almoço... Eu estava na porta do restaurante, não tinha como sair,
quando parou uma mulher do meu lado e começou a puxar conversa. Era bonita, se
chamava Elizete. Disse que era casada e que tinha uma filha de dois anos, mas
que estava viajando sozinha, de férias de algum trabalho ligado a produtos de
beleza. “Eu me sinto solteira”, ela falou. Aí eu fiquei olhando pra ela de um
jeito que deixou ela meio desconcertada, eu acho, mas é porque eu também fiquei
desconcertado, na hora... Quando a chuva passou, saí caminhar sem rumo pela
cidade. Andei por umas duas horas e, no fim, foi ali na frente da igreja que a
Ruth... Na frente da fonte...
Ficou
em silêncio, olhando adiante, como se pudesse ver alguma coisa, depois tornou a
se agitar, voltou-se pra mim e disse apressado:
–
Não tem como eu falar sobre isso agora. Desculpa. Amanhã. Vocês vão acabar se
conhecendo, de qualquer jeito.
E,
dizendo isso, desapareceu no escuro.
Sorri.
“Com
certeza”, pensei, “a gente vai acabar se conhecendo.” Depois, divertido, quase
falei em voz alta: “Já não está suficientemente claro pra todo mundo?”
quarta-feira, 11 de setembro de 2019
Cinco segundos de olhos fechados e dez mil anos
imaginários ondulam até o instante. Arrastam retratos e objetos do dia a dia como
xícaras ou chaves, pele morta, pensamentos de profundidades insondáveis, um
desejo antigo ardendo cansado. Se eu conseguisse organizar todas as lições que
recebi da vida em uma só enciclopédia, se ao menos esse conjunto apontasse em
uma única direção, clara e definida, sem margens de erro. Oito segundos, uma
inspiração, um fluxo invisível carregando cálculos e caminhadas, cascas secas de
ideias que já foram frutas suculentas, ou uma foice, ou um bálsamo. Gostaria
especialmente que você, mais do que todos, mais do que tudo, gostaria que você soubesse
que merece amor, paz, força de fé e acreditar de ciência, a liberdade e os
meios, e espero sinceramente, de todo o meu coração eu espero que você tenha
coragem de ser. Em meus melhores sonhos e preces. Um mar, um maremoto de
silêncios milenares, mergulho intradimensional, doze, talvez vinte ou trinta
segundos de olhos fechados através de todo o vasto mundo ainda não visto, ou
inventando, ou já vivido, o sempre novo e repetido outro, igual e de improviso.
Até que alguma coisa emerge do nada, há pouco não havia nada ali, aí você
começa a se perguntar se o nada não seria o mesmo que todas as possibilidades
juntas. A alegria observa, trêmula de imprecisão e pressa, aquecida ao sol
desesperado do início da tarde. Um minuto, só, talvez alguns segundos a menos
ou a mais. À sombra de árvores esparsas, disperso e contínuo, na grama que se
espalha à espera de algum vento inquieto, bebendo o vento inquieto, quieto, perdidamente
submerso na inquietude sagrada.
domingo, 8 de setembro de 2019
Não
fale o silêncio, disseram.
Melhor
ficar em silêncio, disseram na noite.
Diga
o que dizemos, diga o que queremos ouvir.
Não
diga o que não nos diz.
Se
eu ouço vozes?, perguntam-me.
Sim.
Sempre
ouvi.
Atentamente,
cada uma delas e todas.
ela
caminha devagar até a janela, apoia-se no parapeito e espia lá fora. “Então é
só um jogo”, ela sussurra. Ouve-se o ruído de carros e motocicletas, mais nada,
por alguns minutos. Qualquer palavra ganha um peso muito grande, cada pequeno
gesto é um significado demais. “Meu pensamento”, ela diz, “é aquele casal
atravessando a rua de mãos dadas a esta hora.”
(Será
que ainda pode piorar?, às vezes eu acho que isso tudo ainda é só a antessala
do Absurdo.
Derramaram
uma gota do meu sangue, não era nada. Roubaram frutos do meu trabalho, nasceram
outros. Me feriram sem querer, por querer, por prazer, por nada. Na manhã
seguinte, eu já nem me lembrava. Derramaram três ou quatro gotas do meu sangue,
se doeu, foi pouco. Trataram-me com desprezo, acontece o tempo todo, acontece
com todo mundo, acontece, coisas ruins acontecem. Fizeram coisas ruins
acontecer comigo. Fizeram de propósito, eu sei, quiseram mesmo que eu soubesse.
Derramaram mares do meu sangue, agonizei, tiraram de mim o quase nada que no
fim já era menos do que um resto de migalhas, derrotaram até a mais remota
chance de talvez ter esperanças. Agora ficou só um imenso NÃO esvaziando as
sobras. E ainda está tudo bem comigo. A vida continua.
(Há
muitos anos frequento este mesmo café e só agora reparei, ao lado da cristaleira,
em um pequeno tripé de ferro com um tampo de mármore muito branco e, sobre ele,
um pequeno vaso de porcelana contendo uma única rosa que daqui até parece de
verdade, mas que é de um azul meio improvável.
“Por que será que desenham flores em vasos de flores”, eu penso, e suponho
que nada disso acrescentará nada em absolutamente nada na minha vida. Melhor
não reduzir tudo a uma única explicação, sabe, é melhor girar de novo as
lentes.)
Ou
porque eu tenho as palavras erradas
Ou
porque eu não tenho nenhuma
Ou
porque eu tenho palavras demais
Ou
por que cargas d'água meu Deus
Há
quando o conhecer dispersa há quando o não saber concentra
Há
quando o pertencer liberta há quando o ter quer ir não deixa
Há
de antes
Adiantes
{à
sombra de um delírio em flor}
Assinar:
Postagens (Atom)