segunda-feira, 30 de dezembro de 2019
Você
tem me dado apenas ecos. Pedaços de fantasmas que atravessam meu caminho. Não
conta como se algo acontecesse. Já me cansei de implorar aos deuses, de fazer o
melhor que posso, das ruas históricas de Tiradentes e de turistas que seriam os
primeiros a aplaudir o enforcamento desse mesmo Tiradentes se vivessem na mesma
época que ele. Mas a cachaça mineira, ah, sim, e todas essas feiras
gastronômicas. Acho só que eu não tenho nenhum amigo gente. Ontem, numa praça,
alguma coisa fria e úmida tocou de repente em minha mão esquerda e, quando fui
olhar, gostei tanto que até tirei uma foto com meu celular, olha
O resto são cartazes de “Não fazemos trocas”. O alto daquelas montanhas, ao longe, quão longe você acha que leva. Você tem me dado apenas vácuo, tem sido só como se o vento brincasse de adivinha, e eu quero ser visto como um igual, mas a igualdade é uma fraqueza que ninguém suporta. As pedras do calçamento, a estrada de um rei que morreu, e hoje, do outro lado da cidade, conheci outro cachorro, igualzinho à fêmea da fotografia, mas com os olhos castanhos. Não falei nada a ninguém, achei que não era importante. Mas o dono do cachorro decidiu contar a história de quando o viu pela primeira vez, ainda filhote, e disse que na mesma ninhada tinha uma fêmea idêntica a ele, mas com os olhos azuis.
Você
não tem me dado nem uma gota da atenção mais rasa. O cachorro, acho que
entendeu que estávamos falando nele, lançou um olhar comprido em minha direção,
me senti na obrigação de falar “Tua irmã te mandou lembranças”.
Pro
teu desprezo, sim, apenas pro teu escárnio. Tenho sido o menor e mais sem razão.
A independência é uma grande afronta, algo em mim é pior que a ideia de
república pra interesses que ainda nem chegaram ao século dezenove. Mas neste caso,
a solidão não é algo pelo que eu deva me sentir culpado. E eu poderia estar morrendo
por bem menos, a verdade é essa, eu poderia simplesmente não estar tentando nada.
quarta-feira, 25 de dezembro de 2019
Não sei por que pensei
alguma vez que não há poesia na realidade
ou que o nome das
coisas do mundo não traduz com muito acerto as coisas da alma
ou que o retrato de um
dia não atinge nem a sombra do ideal eterno de entender a eternidade – mas
aconteceu que hoje
ao fim dessa jornada
que eu chamava de espiritual e grandiosa
nada me pareceu mais
espiritual e grandioso do que estar no mundo
e passar distraído
pelas flores da praça enquanto tento me lembrar se embarco às oito ou às nove
e me despedir da
boliviana com quem conversei tantas vezes num café sem nunca perguntar seu nome
e lamentar que eu
tenha adiado tanto a minha vontade de fotografar o Cristo indígena na cruz da
igreja que estou indo embora sem ter feito isso
e arrumar as malas com
um misto de alegria e medo e uma profunda tristeza pelo fim da caminhada
e recolher memórias e
embalar com cuidado os presentes frágeis que comprei para uns amigos
e reparar que há algo
de banal e cinematográfico em estar chovendo no dia em que ando por aí dizendo
adeus a Machu Picchu
e perceber que estar
em casa é menos uma localização geográfica e mais o acolhimento que afinal
oferecemos a nós mesmos
e observar as
crianças, homens e mulheres com suas vozes cotidianas ainda prontas para me
chamar de amigo
e doar as roupas e
vender os livros de que não preciso e que já não quero ter pesando na bagagem
e confessar a mim
mesmo que desperdicei o meu amor inutilmente sempre que o contive por antecipar
este momento
e chorar como um
menino que se vê obrigado a devolver um brinquedo que tão gentilmente lhe
emprestaram
e ter a sensação
ligeira de que amanhã ou depois eu vou poder descansar de novo em minha pedra
preferida à margem do Rio Urubamba
e abraçar a moça da
hospedagem que foi minha filha e mãe e irmã ao longo destes dias em que nunca
nos dissemos muito mais do que “boa tarde”
e admitir enfim que
não há nada mais sagrado em nenhum ser humano do que o simples fato dele ser
humano
e que uma prece pode
não ser mais do que esse movimento tão sutil dos lábios ao contar um troco
e que oferendas podem
não ser mais do que anotar um número de telefone em um post-it cor de rosa
e que um ritual pode
não ser mais do que se deter à escada e amarrar um dos cadarços
porque Deus está em
silêncio e imóvel no ruidoso coração do movimento
e em tudo aquilo que
nós não estamos
nem estaremos nem
nunca estivemos
e que só pertence a um
homem num lugar de névoa que nos toca mas ninguém alcança
porque é Deus e não é
homem
e porque é Deus e
pronto.
terça-feira, 17 de dezembro de 2019
Todos vão responder, sempre, não a você,
mas à ideia que têm de você, e na maioria das vezes, essa ideia vai ser um
resumão de no máximo uma palavra baseado em fofoca, em um ato isolado que você
cometeu um dia ou em um hábito mais ou menos frequente, não importa muito, de
qualquer forma vai ser um hábito entre vários, então transformado para o resto
da vida na Sua Personalidade.
E o pior nem é isso.
Porque somos todos médicos da razão dos
outros, de suas almas, e todos sabemos, como especialistas que somos, que
nessas medicinas do espírito não combatemos as doenças, mas os doentes infames.
O que nos facilita esse trabalho, hoje,
em tempos de ciência tão avançada, é que já sabemos que a personalidade humana
não está dividida em doze tipos definidos pela posição de corpos celestes no
momento do seu nascimento, por exemplo, nem é tão complexa como antigamente se
imaginava, dividida entre os tipos sanguíneo, colérico, fleumático e
melancólico. Nem, aliás, quaisquer outras divisões que as pseudociências já
tenham inventado. Está claro, indubitável, definitivo e comprovado que a
personalidade humana se divide em duas e apenas duas categorias básicas: a de
direita e a de esquerda.
A característica talvez mais marcante
dessa divisão é que ela não só traduz de forma tão certeira os traços gerais da
personalidade de cada um, como também traz embutida um certo código moral e de
comportamentos que obrigatoriamente deve ser seguido se você ainda quiser ser
bem-vindo no lado a que pertence. A vantagem é que você poderá dormir tranquilo
sabendo que a fonte de todo o Mal, de todos os demônios, do fascismo, do caos e
de tudo-que-está-errado é com certeza o pessoalzinho do outro lado.
A desvantagem, embora não se reconheça,
é que ambos os lados exigem um certo desespero infantil de se agarrar a um
Avatar, a um Enviado Divino ou Fenômeno Histórico, o Representante Máximo dos
valores dessa direita ou dessa esquerda e que necessariamente ocupa ou já
ocupou a Presidência da República.
Os que não se declaram nem de um lado
nem do outro não podem ser levados a sério. Estão mentindo. Ou, quem sabe, nem
chegam a ser humanos mesmo. Humanos são da direita ou da esquerda, ponto final,
essa é a única verdade. A Verdade Absoluta. A VERDADEIRA VERDADE.
*Morte
a todos os infiéis.
quarta-feira, 11 de dezembro de 2019
Eva
comprou um pequeno tabuleiro de jogo-da-velha com peças feitas de casca de coco,
e a gente ia jogando no caminho até São Luís do Maranhão. Ela contava a
história de uma atriz que tinha sido maltratada na rua por causa da personagem que
interpretava na novela, uma vilã, e só porque essa estranha na rua não entendia
que aquela na TV não era ela.
–
Imagina isso num blog de literatura – falei. – Onde eu conte histórias, publique
poesia... Acha que alguém vai entender a diferença entre mim e o eu-narrador,
entre mim e o eu-lírico?
–
O que mais me chama a atenção aí é você falar em blog como se isso ainda
existisse – ela respondeu.
E
me contou outra história, dessa vez sobre uma amiga que tinha sido demitida por
causa de publicações na internet no início do século. Alguém da chefia achou
que eram indiretas, e parece que uma dessas publicações chegou a causar algum
problema de verdade, não lembro bem. Mas a mulher jurava que não, nunca, nem
passou pela cabeça dela nada relacionado ao trabalho na hora de publicar.
E Eva sabia que era verdade, conhecia até o motivo de uma publicação ou outra,
mas ninguém acreditou, e no fim ela acabou não tendo a chance de desfazer o mal-entendido.
–
Era uma grande amiga – ela falou. Pareceu se lembrar de algo divertido, olhou
para mim sorrindo: – Ela implicava com o “te quiero”. Dizia que era sexual
demais dizer que você quer alguém, ficava “indignada” que no espanhol isso
pudesse substituir “eu te amo”. O “eu te amo” já tem gente que não consegue
separar do desejo, né?... Eu vivia dizendo pra ela: “Te quiero”, “te quiero”,
só pra encher o saco, mas também porque eu queria ela, mesmo. Faz tanto
sentido, pra mim.
Pareceu
que ia ficar melancólica, mas se ia, não deu tempo. Tinha acabado de ganhar a
primeira partida de jogo-da-velha depois de umas oito derrotas consecutivas.
quarta-feira, 4 de dezembro de 2019
Teus olhos não sabem contar a que profundidade você foi, mas é um lugar onde a dor não respira. Alguns séculos passaram no teu rosto. Dentro de um mergulho, a leveza é estar envolvido por algo mais pesado que o ar, mas pelo menos em silêncio. A solidão é uma sombra produzida por tua própria chama, transborda, eu poderia tocar ainda que você se lembrasse de me ver aqui fora e sorrisse, disfarçada. Nada pode te alcançar ou te trazer de volta. Meu coração é o que aperta, eu que já estive tantas vezes nesse mesmo lugar, te adoro muito mais do que sou capaz de curar ou conter, só me cabe guardar a distância com esse gosto amargo na boca, esse nó na garganta. Tantos mundos desabam por dia. Pedacinhos de alma somem pra sempre, soterrados. Tua expressão é somente um quadro que retrata a névoa, canções melancólicas ecoando ao longe. E, ainda assim, beleza triste e noturna, você é perfeita perdida em si mesma, tanto quanto é perfeita encontrada. Eu, por mim, posso te olhar vidas inteiras, a mão estendida à espera de que você desperte ao meu lado, no centro de um universo expandindo, no vento insone, em delírio, em tudo. Em todos os casos.
Assinar:
Postagens (Atom)