quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Numa daquelas noites, teve um eclipse da lua.

A gente foi ver juntos na praia do Porto da Barra.

Quando encontrei Eva em Salvador, achei que aquela poderia ser, talvez, a última vez que nos víamos. Ela estava lá a trabalho, mas tinha bastante tempo livre, e passamos boa parte dele visitando pontos turísticos da cidade ou simplesmente caminhando pelas ruas como nos velhos tempos. “Em frente até não existir mais ‘em frente’?”, brinquei, numa dessas caminhadas, achando que ela embarcaria no que era uma subversão de um velho bordão nosso, mas ela pareceu nem notar, só deu um sorriso meio torto de canto de boca, muito mais cabisbaixa do que de costume. Seu novo trabalho começava a lhe consumir bem mais do que estava disposta a dar, e Eva andava com vontade de pegar a estrada de novo.

– Eu sinto um misto de pena e repulsa – ela explicou – por essas pessoas que vivem se agarrando desesperadamente a qualquer pequena oportunidade de ferir as outras. Coitadas, elas tem uma existência irrelevante, acham que precisam se sentir melhores que as outras e esse é o único caminho que elas encontram pra isso. Mas o pior de tudo é que não é só um padrão, não, o pior é que essa que é a regra do jogo, mesmo. Essas que vão ser as pessoas que vão “chegar longe”.

– Sim, porque faz muito sentido – falei, – quando o trabalho inclui se relacionar com outras pessoas, é melhor que você esteja competindo e tentando acabar com elas do que somando esforços pra fazer um bom trabalho.

Ficamos um tempo sem dizer nada, observando a lua conforme ela escurecia, em meio ao murmúrio da pequena multidão que se juntou por lá naquela noite. Então alguém perto de nós falou bem alto:

– É todo mundo Ph.D. em Ciências Passionais e Seletivas.

Algumas pessoas riram, Eva e eu não conseguimos conter um sorriso.

E tudo se dissolveu no momento presente. O ar era agradável, o mar continuava a arremessar aquelas suas pequenas e transparentes ondas contra a praia.

– Eu gosto de você, R. – disse Eva, de repente.

– Eu também, Eva. Gosto muito de você.

E a gente já não tinha mais nada pra dizer. Em poucos instantes, a lua estaria completamente encoberta pela sombra da Terra.

domingo, 27 de dezembro de 2020


 

Tinha uma festa na sua rua, mas ela estava lá porque era a sua rua, e não porque era festa, e tinha um ar meio que de ter sido roubada, de não saber mais o caminho de casa, de quem me via pela primeira vez. E foi assim: no instante em que me viu, me abraçou, demorou-se um pouco no abraço.

Não houve um tremor de terra, nem um arrebatamento.

Gesto comum em roupas de rotina. Gesto puro gesto, não mais do que abrir uma torneira e encher um copo com água, dar duas voltas na chave pra trancar a porta. Noite animada esparramada na rua, as crianças correndo as músicas maçãs do amor luzes da praça.

Talvez fosse o abraço mais melancólico da História, mas o momento engolia o que quer que se pudesse dizer a seu respeito.

Nem houve uma suspensão do tempo, ao contrário: era quase como se desemperrasse uma engrenagem.

A vida acontece, e acontece, e acontece.

A imagem, só ela se guardou. Mais uma pedra arremessada com displicência no rio, alterando sutilmente – e pra sempre – o curso de suas águas.


 

sábado, 19 de dezembro de 2020


 

Que eu quisesse ser outro e não este bandido que é um senhor da noite
e vaga sem rumo em todas as direções contrárias
faria com que o teu olhar se fixasse em mim
e brilhasse outra vez como o antigo mar das estrelas roubadas
por nosso medo do escuro?

Se em vez de te buscar em todas as mulheres que me escapam
ou despir continuamente a minha alma cada vez mais solitária
eu me jogasse aos teus pés e confessasse que não te pertenço
mas que ofereço todo o meu não-pertencer por uma vida de encontros
aceitarias finalmente que eu me acomodasse em nós?

Onde eu guardasse o meu ouro e meu temor de já não tê-lo
entrarias nua e vendada ao risco de ser feita prisioneira
de um amor desigual até que eu me livrasse dos espelhos
e só me quisesse em teu rosto – centro do meu universo
e tempo da minha história inteira?

Porque eu não fosse de rua e de tantos segredos
nem me lembrasse dos monstros que há por trás das máscaras
teria abrigo em teu corpo para ser só um homem
feliz e agradecido por haver chegado ao termo
que é o princípio e o caminho e nosso único propósito?

Como eu deixasse o silêncio e o vazio dos meus sentidos
para me embriagar do som estranho de uma vida a duas vozes
inventando um mesmo canto, deixarias também a tua descrença
para fingir comigo algum encantamento
que deveras nos encante?

Quando eu chegasse exausto e velho da jornada
feita de tantos não-ter-ido para ficar ao teu lado
te encontraria ainda presente nessa mesma esfera de delírio
no haver escolhido o mesmo passo ainda que não os caminhos
e além de ser e de estar, o ter inexistido em boa companhia?


 

 


sábado, 12 de dezembro de 2020


 

“O nome das coisas”, dizia sempre o Juruma, que era um negro adotado por brancos com aquele nome feminino indígena, mas o Bernardo respondia “O lugar de cada coisa”, e os dois ficavam em uma discussão interminável que pra mim não tinha nenhum propósito, até porque no fim das contas a gente acabava pedindo pizza no “Tem Pizza de Quê?” não porque o nome era engraçado ou porque ficava perto, mas porque era mais barato, só que eu nunca reduziria tudo a uma questão assim tão banal, “o preço de cada coisa”, ou talvez só pra perturbar ainda mais os dois naquela discussão tão chata, então preferia ficar quieto, ia escolher algum livro na prateleira, um disco, uma frase mais inteligente – pra mim tanto fazia.

“Quem vota no Glauber pra comprar mais vodca?”, acabei dizendo, e o Bernardo provocou, “Vamos comprar aquela vodca chamada Kafka pra ver se amanhã acordamos transformados em insetos”. Aí o Juruma se remexeu na cadeira e começou a discursar sobre o nome da nossa bebida, “Cuba-Libre”, que afinal misturava uma bebida russa e uma norte-americana, “não dava pra escrever uma tese sobre as leituras políticas desse nome?” Quis interromper pra dizer que a receita original de cuba-libre era com rum e não com vodca, mas naquela mesma hora reparei em livros de Maiakovski e Ginsberg lado a lado na prateleira e quase disse isso em voz alta, só não falei porque os dois ficariam me olhando com cara de “E daí?”.

Também ninguém parecia se importar com o fato de que o Glauber não estava lá, e que a pergunta tinha sido na verdade uma citação de um texto que eu tinha publicado em meu blog havia poucos dias e que tratava de uma situação parecida. Um texto que obviamente ninguém tinha lido. O que me chateava um pouco, é claro, mas afinal eu sabia que o Bernardo, por exemplo, não gostava da minha poesia, enquanto era um excelente amigo, ao mesmo tempo em que acompanhava o blog do vizionarios, de quem ele nunca gostou pessoalmente

Cada um falava de uma coisa e aquilo ia por caminhos tortuosos, vamos fazer um filme, sim, vamos fazer um zine, ninguém se lembrava mais qual copo era de quem ou qual carteira de cigarros, revistas em quadrinhos e revolução operária, cuba-libre com kafka, Juruma de repente cruzava as pernas e fechava os olhos parecendo um monge budista meditando, Bernardo prolongava algum monólogo sobre como a pós-modernidade e a globalização ainda veriam um retrocesso ao fascismo e a um nacionalismo depravado, eu lamentava o capitalismo, eu tinha ideias tão antigas tão à frente do meu tempo, eu planejava mudar o curso de tantas coisas.



(Diários de Machu Picchu #24)


“Ok”, rosnou Bernardo, “mas nada a ver Diários de Machu Picchu, nada ver um desenho que você só vai fazer daqui a uns dez anos”.

E ele estava certo, é claro, mas àquela altura eu já não tinha mais a menor condição de entrar em uma discussão metalinguística.


 

sábado, 5 de dezembro de 2020


 

deixar quem sabe algum ar em fotografias noturnas antes de morrer afogado um olhar à janela a falta absoluta de perspectivas – ainda se fosse só isso – aquele agora bruto e deserto demais pontilhado de luzinhas brancas dos apartamentos espalhados num interminável breu de tempestade e madrugada urbana entre os amigos tristes.

e se a alegria se pudesse transferir de uma alma a outra apenas por estar ali, talvez, amores, mas então me fala se a palavra alegria apenas tenta remendar a falta de palavras pra algo assim entre a satisfação e a fúria e não estar pensando em nada – sim, se eu fosse esse poeta, se uma palavra assim digamos jambo só por ser ouvida fosse um gosto na tua boca eu te daria logo um cacho.

“algo se perdeu pra sempre”, resmungávamos – agora nos ocorre que não poderia ser perdido o que jamais esteve lá, ou só fotografias de ausências, memórias que não eram, mas também há muito neste mundo que só pode ser visto mesmo assim meio que não vendo, como elétrons, ou como a barra da túnica de deus.

deixar quem sabe as possibilidades.