Escuridão
completa. Ar que faltava. Era quase impossível se mover ali: estava embaixo da
terra. Debateu-se o quanto pode, tentou abrir caminho através da terra que
pesava sobre seu corpo – em vão. Estava em desespero e não podia mais respirar,
tentou gritar, mas isso serviu apenas para que entrasse ainda mais terra em sua
boca. Era o fim, o oxigênio tinha acabado. Seu coração em breve pararia de
bater.
Demorou
um pouco para entender quando simplesmente desapareceu dali e ressurgiu em um
espaço aberto. Seus olhos, ainda recuperando a visão, custaram a entender o
chão de pedras soltas e as altas paredes escuras de um buraco muito fundo. Uma
espécie de poço que havia secado, mas bem mais largo que o comum. As pedras do
tamanho de punhos sobre as quais estava tinham, quase todas, alguma mancha de
sangue. E em sua boca, também: sentia gosto de sangue.
Não
conseguia se lembrar direito de nada que vivera antes, mas quando apalpou o
próprio corpo e encontrou um pequeno aparelho em um dos bolsos do casaco, soube
imediatamente que era um aparelho de trocar mensagens e que sempre o havia
carregado consigo. Num impulso, começou a escrever com urgência: “Não entendo o
que houve. Estou com medo.” A mensagem permaneceu ali pelo que pareceram várias
horas antes que a resposta viesse, simples, mas profundamente reconfortante:
“Nós te amamos”.
Inspirou
profundamente, sentindo seu corpo e seu espírito se encherem outra vez de
confiança – e, neste exato momento, vinda não se sabe de onde, uma pedra
acertou em cheio a sua nuca, ofuscando outra vez a sua visão e roubando-lhe o
equilíbrio por alguns instantes.
Quando
se recobrou, percebeu que havia se teletransportado uma vez mais. Estava agora
em um antigo parque de diversões abandonado, com barracas e brinquedos
enferrujados e retorcidos sendo já engolidos por uma vegetação muito alta. No
entanto, estava escuro demais, mal se conseguia distinguir todas essas coisas.
E logo se deu conta, com uma pontada de apreensão, que a vegetação farfalhava,
a cada pouco, como se um bicho grande se movesse por ali.
– Isso
sim é que é saúde! – disse uma voz forte, acompanhada por uma animada música de
fundo, em uma televisão que simplesmente se ligou sozinha a uns poucos metros
dali. Era um programa de ginástica, aparentemente, com homens e mulheres de
corpos esculturais, sorrisos de plástico e belezas previsíveis.
– Observem essas formas perfeitas – dizia o apresentador. – Vejam que curvas
mais maravilhosas! Que deliciosos esses peitos, você não tem vontade de comer
aquelas coxas?
Conforme
o apresentador falava, os homens e mulheres que até então repetiam os gestos de
algum exercício aeróbico iam pouco a pouco se despindo e se aproximando uns dos
outros, em uma dança sensual que lentamente foi se transformando em uma grande
orgia, sempre sob a narração animada do homem que ressaltava a perfeição e
atração irresistíveis daqueles corpos e movimentos.
Então
a TV foi desligada, sobrando apenas um sussurro de centenas de bocas espalhadas
pelo parque dizendo coisas incompreensíveis. Demorou para que seus olhos
voltassem a se adaptar ao escuro e começassem a perceber os vultos, os pares de
olhos vermelhos e brilhantes voltados em sua direção. “Não sobrará nada”, era o
que diziam – e iam falando cada vez mais alto, até que, de repente, algo muito
grande se destacou em meio à vegetação e começou a avançar rápido em sua
direção.
No
instante seguinte, estava em uma sala dourada e muito movimentada que era a
recepção de algum grande edifício, diante de um balcão sobre o qual um pequeno
cachorro latia à sua chegada, enquanto uma mulher de roupas e maquiagem a um mesmo tempo formais e vulgares, de trás do balcão, tentava
acalmar o cãozinho com carinhos e sussurros e biscoitos. Na parede às costas
dela, em letras douradas e muito grandes, lia-se: ESTAMOS CRESCENDO
ECONOMICAMENTE. À esquerda do balcão, uma grande porta fechada por onde ninguém
entrava nem saía; e à direita, uma pequena porta por onde entravam e saíam
pessoas o tempo todo, identificada pela legenda: “Entrada dos trabalhadores”.
Ao lado da porta, em letras minúsculas, havia um cartaz dizendo: “Se você
entrar descalço, estará colocando em risco a própria vida e a de outras
pessoas”.
Reparou,
então, nos pés das pessoas que circulavam por ali e constatou, para sua
surpresa, que a maioria delas entrava e saía descalça por aquela porta.
– Por
que vocês estão fazendo isso? – perguntou bem alto aos que passavam. E,
apontando para o cartaz: – Vocês não estão vendo o que está escrito ali?
Quase
ninguém pareceu escutar; somente duas ou três pessoas pararam e um único homem
ficou parado por tempo o suficiente para responder:
– Bem,
nós precisamos trabalhar para comprar sapatos.
E tudo
continuou exatamente como antes.
Aproximou-se,
então, do balcão e perguntou à recepcionista se não era possível fazer nada
para reduzir aquele risco, ou se, no mínimo, não era possível oferecer sapatos
aos trabalhadores.
– Ah,
aquilo ali... – desdenhou a recepcionista. – É invenção da mídia alarmista, não
tem nada acontecendo de verdade.
Mas
naquele instante, quatro pessoas descalças saíram cambaleando pela porta
pequena e tombaram, visivelmente mortas, ali mesmo no saguão de entrada.
Sem se
conformar, exigiu, então, uma audiência com os responsáveis por aquilo – o que
só fez deixar o cachorrinho sobre o balcão cada vez mais agitado. E foi essa,
aliás, a única inquietação que mereceu alguma atenção por parte da
recepcionista.
–
Calma, Governo, não precisa ficar bravo – repetia, acariciando-lhe a cabeça. E
depois, toda sorridente, explicou: – É o cachorrinho deles, sabe? Não é uma
gracinha? Mas ciumento demais, coitadinho, não deixa ninguém chegar perto dos
papaizinhos dele, né, meu amorzinho? Os Senhores da Vida na Terra não podem
receber ninguém, neste momento, é óbvio. Você não sabe ler? – disse, apontando
para a frase em letras imensas na parede às suas costas.
Viu-se
então em uma espécie de açougue ou abatedouro, com corpos humanos esquartejados
ou ensanguentados pendurados por todos os cantos, enquanto uma voz macabra,
grave e muito baixa, repetia lentamente: “Observem essas formas perfeitas...
Vejam que curvas mais maravilhosas...”
E,
finalmente, vindo de lugar nenhum, um ser encapuzado e imenso saltou, de
repente, à sua frente, pousando garras afiadas bem no centro do seu peito.
– Não
sobrará nada de você! – urrou.
Tombou
para trás com o susto e com o impacto de algo que aparentemente acabara de se
desprender do seu corpo, exatamente a partir daquele ponto que havia sido
tocado. Sentiu as pedras ao cair, percebeu a escuridão à sua volta e soube que
estava de volta ao mesmo buraco de antes. Tentou se concentrar em entender o
que havia se desprendido, o que era aquilo que continuava sentindo para além de
si, mas era uma sensação confusa, totalmente inexplicável. Não sabia dizer onde
acabava o seu corpo e começava aquela enorme figura luminosa que se espalhava,
leve e fluida, à sua frente. “Alma”, pensou, e lhe pareceu então que tudo no
mundo se encheu de serenidade e de sentido, que tudo era uma coisa só e que só
o que existia de verdade era o Amor.
Quando
a figura desapareceu, restava apenas o céu estrelado, lá no alto, recortado
pelas bordas sombrias daquele buraco. Mas tudo era paz, tudo era de uma beleza
interminável. “A vida é boa”, sussurrou, talvez até com um sorriso nos lábios.
Não
demorou para as pedras começarem a chover. De qualquer forma, não teve tempo de
entender que era uma chuva: logo as pedradas apagaram o que ainda lhe restava
de consciência.