sábado, 29 de maio de 2021


 

Goiânia - GO
A realidade já estava aí quando eu cheguei, acontecendo sem mim, completamente indiferente ao que eu pensava dela. As latas de lixo transbordavam nas calçadas, as lojas de armas, ônibus lotados e uma lua imensa e amarela no final da rua, eu ia pela Avenida Anhanguera desde a Leste Oeste até a Goiás, tinha um festival de teatro acontecendo na cidade e cores pelas praças e anarquistas plásticos e eu pensava se algum milagre ia chegar correndo até mim desde Trindade, ou se eu olhasse pra trás ainda podia ver as duas estrelas juntas que eram Júpiter e Vênus. Poeira, excessos e bobagens de metrópoles, a realidade é que as realidades são tantas, nenhuma é menos, nenhuma é mais. Alguns amigos me esperavam perto do Zoroastro, alguém tinha sugerido um boliche, outro falou em cerveja, realidades arremessadas à procura de qualquer consonância, o mar de concreto engolia os meus olhos e o suor e as solas dos nossos sapatos, às vezes eu tinha a impressão de que jamais havia chegado a viver ali, apenas existia. Mas real, real. Punks, sertanejos e diabos velhos e o motor das máquinas, ternura calejada, uma alegria meio árida. Tudo era demais cidade, os corações de asfalto, a essa hora já deviam ter acendido há tempo as luzes dos postes, ou de esperanças ou memórias, ou qualquer coisa que brilhasse, mas ninguém sabia muito bem onde isso começava, então só tentávamos, e achávamos bem mais verdade estar em busca do que em posse das respostas.


 


 

sábado, 22 de maio de 2021


 

Mas então nem mais uma palavra emerge na sala dos quadros
Olhos azuis refletem no espelho um flerte uma procura de flores lá e aqui
Mas então cruza os braços e evita rir alto no salão de chá pra que ninguém perceba
Lábios doces de sorrir tão fácil e belezas de estar onde se queria ou quase
Mãos e manias de afago esperanças de afago unhas anéis dentes brancos saliva
Mas então uma fonte no quintal derramando evidências demais tão depressa e tão longe
Nem mais uma letra desenhando os papéis de um desejo tão mal disfarçado
A estampa do pano da roupa essas cores gritando e pedindo mais pele e mais pele mais perto
Na pele o sussurro de um sangue fervendo aquelas correntezas cada vez mais vorazes
Mas então nem mais uma promessa atravessando o portão pra fora e pra sempre e tão cedo
Aquele andar arrastado um olhar pra trás uma vontade de aceno pesando nos braços
Cabelos tão lisos tão claros tão livres perfumando a brisa pela última vez
Mas então um recorte no espaço onde antes um corpo talvez tenha tido alguma verdade
Árvores derrubando folhas buzinas milhões de pessoas e uma ausência palpável
Mas então nem mais uma forma que se veja exata nas fotografias da memória
A solidão absoluta numa praça e do universo nunca mais chegam notícias concretas


 


 

sábado, 15 de maio de 2021


 

Portoalto, 25 de julho de 2012

Daiana;

Eram planícies infinitas, córregos inesperados, a amplidão era quente e com cheiro de tantas ervas, as pontas dos meus dedos deslizavam nas costas da tua mão, tinha sol, já eram quatro ou cinco horas da tarde. E era um silêncio e duas respirações descansadas. Ou talvez na tua memória as cores não sejam assim tão vivas, nem os contornos tão claros. Depois foram séculos de pântanos e de penhascos todas as vezes que você não estava, uma visão da noite engolindo todos os espaços até que eu aprendesse as estações do nosso encontro. E eu te esperava, então, e eu te alcançava, e andei por longos caminhos onde você nunca existiu.

Muito rápido entendi que estar longe não evitaria os teus olhos grandes e redondos sempre sobre mim, conselhos não solicitados, retratos distorcidos, e já são tantas as coisas que eu não te perdoo, eu tenho tanta raiva quando você não liga, mas poucos foram os que me escutaram até o fim, raras as vezes em que gostei assim de mim mesmo por causa de impressões de alguém. Além de ser você mesma um evento de magnitude cósmica, a mordida na fruta madura, algo de mágico pairando muito depois de eu já ter descoberto o truque. Estendo a mão: tocar a tela não pulsa, a temperatura não fala, mas aí está você dançando comigo a mesma velha troca, um porto seguro entre as milhares de destruições em curso, ontem à noite sonhei que te abraçava, como foi teu dia, acho que sempre te amei.

E as distâncias que já percorremos nas galáxias, simples diálogos, a gestação eterna e constante: não te surpreende, ainda, o nosso entrelaçar cotidiano, não te parece fantástico?


 


 

sábado, 8 de maio de 2021


 

a fumaça, um zumbido. um código na tela, uma porção de regras, conspirações escancaradas. covardes que reinam, covardes que obedecem e se calam. a neblina, uma curva na estrada à beira de um penhasco, um nome apagado, a solidão, inverno, dor. dor violenta, dor brutal e contínua. aplausos sobre um coração sendo destroçado. um turbilhão, um furacão, redemoinho, a escala distorcida das relevâncias e todos juízes ao redor, de mãos tão limpas, e se é que se pode chamar de juiz alguém para quem a única sentença é sempre 'condenado'.


 

sábado, 1 de maio de 2021


 

o poeta, então,
deitou-se na relva
as palmas das mãos na terra

e em seus ouvidos, pequenos insetos começaram a sussurrar os segredos do solo, e pelas pontas de seus dedos começaram a chegar vibrações, nutrientes, mistérios...

Primeira Era
O poeta aprende, seu sangue é derramado. As pessoas que passam o agridem, vagabundo sem-vergonha, algumas chegam à violência física, a maioria apenas cospe. O poeta está escutando o planeta, já conhece os fundamentos do surgimento da vida.

Segunda Era
O poeta é esquecido por todos, em suas veias corre seiva. Aparecem as primeiras formas de vida surgidas somente pela sua vontade: fungos, vermes, aranhas tão pequenas que mal podem ser vistas a olho nu.

Última Era
O poeta é engolido pela terra, em suas veias corre magma. A sua consciência se espalha em toda a superfície, mergulha com os abismos submarinos, sente sobre si o peso de todos os mares.

no centro de qualquer cidade
junto com os raios da aurora
uma flor estranha nasceu

os transeuntes não reparam. milhares, que vão e vem enquanto o sol sobe no céu, sem ver. a não ser por ela. aquela menina se aproxima, os olhos brilhando apaixonados, "você nasceu esta manhã", ela diz, com um sorriso nos lábios. a terra não chega a saber.

(E a menina também se vai, o coração aquecido,
uma luz tão mais viva.
E nem se lembra da flor, e segue uma vez mais absorvida
por seu dia a dia, alheia
à completa banalidade
daquele milagre.)