sábado, 26 de março de 2022
No fim da tarde, ele estava exausto. Tinham sido quatro horas de aulas, então estava no meio daquela apresentação no shopping e à noite ainda teria ensaio com a… com qual banda era hoje? Voltou a atenção para o que estavam tocando, não podia errar agora, tudo menos errar o tema dos duendes. As crianças adoravam. Samuel nem se lembrava de alguma vez ter tido uma agenda mais tranquila, não podia reclamar. Estava vivendo de arte no Brasil em meio a uma pandemia e a um governo que… quase errou a passagem do sol para o ré. Droga, Samuel, não no tema dos duendes.
Júnior pensou que poderia morrer de tédio assistindo àquilo, mas já tinha visto piores, e o importante era que o pequeno estava adorando. Se chegasse em casa animado pelo passeio, quem sabe a mãe parasse de encher o saco dizendo que o pai não se importava. Com o tanto de dinheiro que ele mandava todos os meses, ela devia era ter vergonha de abrir a boca para dizer uma coisa dessas. E depois que era ela quem estava mimando demais o menino. Deus que perdoasse ele, mas se o filho virasse viado por causa daquele grude todo com a mãe… O menino riu alto com alguma coisa no teatrinho. Benditos duendes.
Depois da apresentação, ainda rolou um extrinha inesperado que quase virou uma janta um pouco mais reforçada, mas então Samuel se lembrou da peça que faltava para a água quente do chuveiro voltar a ficar quente de verdade, e achou que já estava mais do que na hora de resolver aquilo de uma vez por todas. A situação já vinha se enrolando havia meses, porque o problema tinha começado exatamente na mesma semana que a banda de festa se desfez, e ela era uma das que davam mais dinheiro, aí as coisas ficaram um pouco complicadas nos meses seguintes. Até por isso ele tinha aceitado algumas aulas a mais. O que não era muito a praia dele, mas ajudou a segurar as pontas. Para ser sincero, uma banda de festa chamada Bamboleiros também não era muito a praia dele, mas era melhor para pagar as contas. Dois ônibus mais tarde, quando desembarcou para ensaiar com a Negros Fatos, ainda pensava nas contas.
Depois de deixar o menino com a mãe, Júnior foi para o seu happy hour com o filho de um potencial investidor em seu futuro negócio. O pai tinha dado um ultimato para que ele não estragasse tudo outra vez, mas a essa altura ele já nem acreditava mais nos ultimatos do pai, que afinal tinha trabalhado o suficiente para juntar dinheiro para algumas gerações depois dele. O filho do empresário era um completo babaca, como já era de se esperar, e estava decidido a tratar Júnior como um mendigo. Era talvez o auge da humilhação para ele, e isso depois de anos tendo que apresentar trabalhos comprados na faculdade e dois negócios falidos no currículo. As provocações do outro acabaram num desafio para que eles fossem fazer uma aventura na rua, no submundo, no meio da ralé mesmo, de verdade. Júnior aceitou, claro, não querendo demonstrar mais fraqueza, e foi assim que eles foram parar naquele barzinho ridículo em um bairro classe média. Simplesmente nojento, não fosse por algumas músicas que quase o animaram, e que chamaram sua atenção a ponto dele ter perguntado de quem eram. O barman, meio sem jeito, disse que eram da sua antiga banda. Júnior não quis dizer mais nada, para não encher demais a bola do cara, mas pensou consigo: Benditos Bamboleiros.
Samuel estava quase completamente sem forças quando entrou no elevador do seu prédio no final da noite. Queria ter conseguido uma senha para assistir ao filme que estreava aquela noite no streaming e do qual ele tinha participado, como instrumentista, em algumas músicas da trilha. Fazia tempo. Nem pagou tão bem quanto se poderia esperar, ainda mais considerando a pressão e a quantidade de trabalho. Um vizinho entrou com ele no elevador, o mesmo militante com quem ele já tinha trocado algumas ideias, por afinidades políticas, e que ao longo daqueles anos sempre perguntava sobre sua carreira artística, sem nunca ter tido tempo ou disposição para prestar atenção nela de verdade. Nem foi diferente naquela noite, a pergunta simpática pelo que ele estava fazendo, e então, em vez do filme, ele preferiu contar sobre a Negros Fatos e a proposta da banda de juntar música, performance e poesia, além do novo projeto que estava quase estreando, meio aos trancos e barrancos, graças a uma lei de emergência cultural. O vizinho fez uma cara de aprovação, disse que eles eram muito corajosos de estar fazendo isso em meio a tudo o que está aí e terminou dizendo que antigamente, sim, ele gostava de poesia. Antes de deixar o elevador, olhou para trás com um ar dramático e disse que agora não dava mais, que não tinha mais como, que não existe poesia possível diante da barbárie. Quando a porta do elevador se fechou, a mente de Samuel estava completamente vazia.
Júnior quase voltou para casa quando chegou na casa da namorada e descobriu que ela estava menstruada. Mas ela tinha acabado de pedir comida japonesa para os dois e ele achou que de repente ainda podia ganhar alguma coisa a mais com isso. Mas resistiu a assistir ao filme brasileiro que ela escolheu e que estava estreando no streaming, achando que, brasileiro, só podia ser uma bomba. No fim, acabou que nem foi tanto. Na verdade, ele até se sentiu tocado em algumas cenas, embora não soubesse absolutamente explicar por que. Talvez fosse a trilha sonora. Seu humor até que estava melhor no fim do filme, mas quando a namorada se recusou a um contato mais íntimo, saiu batendo a porta e disse que ia mandar o dinheiro da comida japonesa. Quando chegou em casa, estava com muita vontade de quebrar alguma coisa, mas em vez disso, entrou na internet tentando se distrair um pouco. Entre bons memes, notícias de futebol e mulheres com pouca roupa, sabe Deus por que o algoritmo mostrou a ele a publicação de um tal de Samuel pedindo mais verbas para o setor cultural. Aquilo foi demais para ele. Sem pestanejar, deixou sua opinião nos comentários:
"Acabou a mamata. Sem mi-mi-mi. Vai trabalhar, vagabundo."
sábado, 19 de março de 2022
CAPA
RELAÇÃO DOS PERSONAGENS
DESCRIÇÃO DO ESPAÇO CÊNICO
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Cenas anteriores:
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(Novas cenas em breve.)
CENA 3
(No meio da confusão de luzes, música e ruídos, L continua gritando, até que as luzes se acendem e todos os sons cessam de repente. L está no meio da plateia, gesticulando enfurecido. Todos os outros estão espalhados pelos diferentes palcos, exceto por Helena, que não está em lugar nenhum.)
L: Chegou! Parou! Acabou essa palhaçada aqui, o que que é isso?! Isso aqui é um daqueles programas de auditório que as famílias que têm problemas vão pra lavar roupa suja em público, por acaso? Ridículo, ninguém quer saber. Isso é patético, o que é isso? O cara veio te contar como que ele foi pra cama com uma mulher comprometida e você fez o quê, você derramou uma lágrima? Essas que são as liberdades que vocês querem dar pras pessoas? Aí o cara que se sente ofendido com isso e reage é que está errado?
KARINA: Você que está distorcendo os fatos.
L: Ah, claro, é a narrativa do amor inocente. Que lindo, nenhum dos dois sabia o que estava fazendo.
PÂMELA: Olha aí, você está inventando.
L: Ah, eu que estou inventando? Vocês são a voz da razão e da verdade. Defendendo uma piranha, vaca…
DIOGO: É, cara, eu já falei mil vezes, você está exagerando…
L: Eu… Ah, eu estou exagerando? Está com pena dessa puta…
LUDO: Você é desagradável, cara.
L: Oh, coitados de vocês. O que é agradável, então, essa promiscuidade? Essa libertinagem?
KARINA: Você é estúpido. Só é simplesmente estúpido.
L: Eu vou… vocês querem… eu tenho que contar uma historinha comovente ali no microfone? Eu vou lá. Precisa do espetáculo, né, se não tiver sangue e vísceras espalhadas pelos palcos, nada feito. Não, eu vou lá, vocês gostam de um escândalo, né, dá audiência.
MANO: Eu vim aqui… eu queria só matar aquele cara, vocês ainda vão ouvir ele?
L: Você fica quieto aí, ó… Você não falou no microfone, você não teve o seu momento?
MANO: Falei em porra de microfone nenhum.
L: Eu vou… não? Bom, eu vou falar ao microfone, aqui, vocês não gostam de historinha? Eu vou contar uma historinha aqui, talvez vocês não gostem tanto porque ela não é totalmente fantasiosa que nem a de uns e outros aí.
KARINA: Ai, eu não vou, vai falar coisa nenhuma, ninguém vai ouvir.
L: Vou. Vai ouvir, sim.
KARINA: Eu vou, alguém desliga o microfone aí?
L: Quem sabia que a princesinha Julieta ali só veio pra essa praia porque o corno do marido dela tem apartamento aqui? Alguém contou isso? Você contou isso, amor?
KARINA: Tá, e daí, você… Desliga o microfone aqui, gente, o que é isso? Esse cara veio armado atrás da ex-mulher!
L: Olha aí, ninguém está te ouvindo. Sabe o que ninguém mais ouviu, também? A verdade, ninguém aqui ouviu nem uma palavra de verdade até agora. Quanto tempo fazia que você estava dando pra ele? Na minha cama, vocês treparam?
LUDO: Deu, parou, cara, ninguém quer te ouvir mesmo.
L: Fala então você! Conta pra eles como foi a primeira vez que você falou que me amava. Como foi lindo. Conta?
LUDO: Eu vou… vamos tirar ele daí?
L: Ah, vai me tirar daqui? Você não é homem.
LUDO: Você tem uma ideia primitiva e muito preguiçosa do que é ser um homem.
L: E você vai fazer o quê, (sacando a arma) desviar de balas? (No instante em vai erguer a arma, Ludo interrompe o movimento e com um gesto rápido, desarma-o. Diogo já está ao seu lado.)
DIOGO, um pouco incerto: E como você pretende, exatamente…
LUDO, sem ouvi-lo, segurando L e levantando-o do chão: Eu disse… Me ajuda aqui! (Diogo vai ajudá-lo.) Eu disse que a gente podia ter evitado. A gente devia ter evitado.
(Ele e Diogo levam L para fora de cena. Ludo e L vão trocando xingamentos.)
(Silêncio.)
KARINA: Eu não me lembro de nada disso. Naquele dia. (Pausa.) Até…
PÂMELA: Que bom que vocês vieram.
MANO: Eu vi você morrer.
PÂMELA: Vai acabar logo.
MANO: Eu não quero que acabe.
PÂMELA: E tem uma parte que não vai acabar nunca.
MANO: A gente não… Eu não sei… se eu consigo… passar por isso de novo.
HELENA: Ludo? Alô? Oi, Ludo? Você falou comigo?
KARINA: Helena? Vocês… vocês estão ouvindo?
PÂMELA: Sim. Você também, Mano. (Ele confirma com a cabeça.)
HELENA: Eu não sei por que eu te respondo. Eu não quero fazer parte de nada disso.
MANO: Quem é ela?
KARINA: Helena, ela… (confusa) ela não estava aqui?
HELENA: Você é cruel. E egoísta. E nada disso faz sentido.
KARINA: Ela está falando daquele que… (faz um gesto imitando Ludo erguendo L do chão.)
MANO: Mas por quê? O que ele fez?
KARINA: Eu quase descobri, eu acho.
HELENA: Então eu decidi que eu vou contar tudo.
KARINA: Sim… Helena? Sim! Conte tudo.
HELENA: Eu vou procurar ajuda. Como você se recusa a fazer.
KARINA: Sim! Helena? Como… (para Pâmela) como eu faço pra ela me ouvir?
HELENA: Isso vai terminar.
PÂMELA: Isso vai terminar logo.
HELENA: Isso vai terminar logo.
(Silêncio.)
MANO, chorando e segurando a mão de Pâmela: Meu amor. Eu não quero te perder de novo.
(Repete algumas vezes que não quer perdê-la enquanto a luz vai se apagando lentamente.)
sábado, 12 de março de 2022
raiz das horas, vasta profundeza da memória, eu sou ainda aquele instante do teu rosto entre as minhas mãos, lábios de amora, não sei se a tua respiração ou a minha, a nossa. aurora de sangue, a ponte que tombou sobre o infinito, pouco importam as montanhas que movemos com os corações em chamas, a presença intocável em mais um sonho, saber que já não somos, sentir na boca mais um gosto amargo. ou até mesmo as lágrimas, e sobretudo as lágrimas que sobram, que transbordam, lágrimas que alagam, não importam mais, nunca mais, tampouco agora. eu sei que te perdi no instante em que te amei, e sei do teu amor que virou água, pedra, estrada até o vazio, adeus sem volta. como é impossível não haver ainda o mesmo amor debaixo dos escombros, a terra de que já não pode nascer nada, um eco do teu nome, esse é teu cheiro ou da distância, uma inocência que jamais teve perdão e que se arrasta, a roupa limpa em farrapos. não te encontrar quando eu acordo. a matemática mais reticente, e nem sequer um mapa dessa névoa, plantar uma semente já despetalada. não sei o que sou eu e o que é fantasma. cadê. por que voltar à tona onde também não se respira.
sábado, 5 de março de 2022
Tantos poemas ainda não eram o suficiente, nem se eu gritasse acima dos telhados, ou confessasse entre lágrimas, algo em mim sempre se parte ao partir. Era assim, o sonho de conhecer Machu Picchu e tudo o que eu tinha vivido ali em trinta dias, e aquilo que ainda germinava sem que eu entendesse, e tudo o que já era familiar, mais nada.
Outra vez, Antero parecia entender o que se passava comigo, e andava quieto ao meu lado em direção à estação. Meu coração era um redemoinho, ou do contrário eu teria dito o quanto ele tinha marcado a minha vida, ou os olhos brilhantes de Ruth, como somente às vezes nos damos conta de estarmos vivendo coisas que serão lembradas pra sempre, e como elas acabam depressa.
Coisas que a gente se esquece de dizer.
Se não era naquelas calçadas que escrevi cada um dos meus versos, no topo daquelas montanhas parecendo impossíveis quase acima das nossas cabeças, com o furor das águas correndo, na cor dos mantos que saíam dos teares, com todo o meu corpo, no vai e vem silencioso dos habitantes de Machu Picchu Pueblo. Ou se eu pudesse devolver a Antero ou mesmo a Ruth só uma parte do imenso carinho que eles me entregaram, a porção de cura com que me abrigaram, se uma palavra minha tivesse a força de tudo o que ouvi deles e que ainda ecoava em minha cabeça agitada.
Frases que o vento vem às vezes me lembrar.
E agora, em meu caminho, estava outro tempo que eu tinha deixado pra trás, sentimentos já quase empoeirados, lembranças que eram como os móveis sob os lençóis brancos numa casa fachada. E o que eu não soube encerrar, e o que eu não pude, o que me esperava e o que não queria que eu voltasse, até mesmo em mim, tudo aquilo girando junto no redemoinho porque também as coisas que ficaram muito tempo por dizer, na canção do vento não se cansam de voar.
- Você sabe que não está voltando pra lugar nenhum, não é? - perguntou Antero, mais uma vez telepático. - Você sabe que não vai encontrar mais nada do que ficou pra trás, que é pra um lugar novo que está indo.
Aquilo silenciou um pouco os meus pensamentos.
Mas no vazio, o que surgiu foi a imagem de uma dançarina de saia alaranjada que eu passei dias procurando pelo povoado, em vão.
- Então - continuou Antero, - você pega o trem azul.
"O sol na cabeça", completei mentalmente. Uma canção dos anos 70. E foi de novo como um sopro de ar puro nos meus pensamentos, embora não afastasse de vez a imagem da dançarina, até pelo contrário.
Sorri. Olhei em direção ao trem e respirei fundo.
O sol pega o trem azul,
Você na cabeça.
O sol na cabeça.
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