sábado, 30 de abril de 2022
Você diz que a estrada acabou, e eu só consigo
Sentir falta de paisagens
Nas suas palavras.
Sabe, pra mim, se era uma estrada,
Era por dentro de pomares,
Campos de algodão, serpenteava
Impossivelmente subindo encostas delirantes,
Não tinha fim, no máximo
Desaguava.
Um tanto de vida que não se evapora assim
Só porque um de nós começou a fazer aulas de java
Às terças-feiras.
Você diz que a estrada acabou, e eu não consigo
Imaginar uma comparação menos apropriada.
É que as estradas, quando terminam,
A gente volta andando por elas.
Não chame de estrada.
É mais, na verdade,
A julgar por como você fala,
Como se nunca tivesse existido
Nada.
Esse lugar nenhum
Onde não cabem nem lágrimas.
Não, então, agora,
Quem é este que sobrou aqui parado,
O olhar perdido no vazio,
Esse vazio por todos os lados.
Você diz que a estrada acabou, e eu só consigo
Reparar
Que acabar mesmo não é coisa que aconteça
Quando se trata de almas.
sábado, 23 de abril de 2022
juro
que eu sabia tudo
desde o começo
eu que me perdi mil vezes
juro
que já cansado da luta
de lutos
da loteria do amor e do trabalho, vencido
e silenciado, vencedor orgulhoso, juro
até que se atravesse o espelho
diante do qual você confessa o mais íntimo
um colorido assim tão puro
água tão rara
te espero ao teu lado pro que for preciso
rio que não para
brisa em voo
qualquer
vida
que ainda não se saiba
sábado, 16 de abril de 2022
Mateus não conseguia lembrar se era naquela manhã ou na seguinte que haveria um passeio da escola a um museu da sua cidade, mas se perguntou se não gostaria mais de estar lá do que ali com o pai no Louvre.
Em 15 anos de vida, a única vez que ouviu seu pai falar em museus foi pra criticar uma exposição que ele nem tinha visto, mas que todos diziam que era horrível. Agora, não achava que a visita ao Louvre, ou qualquer outra coisa naquela viagem pomposa e interminável, tinha algum interesse pra ele além das selfies nas redes sociais.
Felizmente, conseguiu se desvencilhar por um tempo, explorar sozinho os salões e demorar-se o quanto quisesse diante da obra que quisesse, permitindo-se sentir o que quer que sentisse. Fazia alguns minutos, por exemplo, que estava parado diante daquela escultura de uma mulher com asas e sem cabeça que, por alguma razão, fazia com que ele pensasse em Vitória.
Claro, não precisava muito pra ele pensar em Vitória, mas talvez fosse o fato de que a garota era a imagem que ele tinha da perfeição, enquanto aquela estátua, de tudo o que tinha visto até então, era o mais próximo disso que havia encontrado.
E ao mesmo tempo sentia-se inquieto, como se tanto a imagem quanto a garota pertencessem a um mundo do qual ele não era parte, nem poderia ser nunca. A garota, porque gostava de homens mais velhos, ricos e bonitos como modelos ou artistas de cinema, e uma vez que era perfeita, sempre atraía a atenção de caras assim. A estátua, ele não saberia dizer.
Nem chegou a saber que ela também se chamava Vitória, e que também vinha de um mundo governado pela força e representado por ideais vazios de perfeição e beleza.
O que ele sabia, o que o incomodava de uma forma reconhecível, era a opressão real daqueles ideais no seu dia a dia. Uma noção tão curta da vitória, em guerras sem sentido como as movidas pela religião, por exemplo, enquanto a espiritualidade deveria promover o bem, ou guerras da razão contra a espiritualidade, enquanto havia tanta razão no espírito, ou guerras fúteis pautadas no dinheiro ou em aparências ou políticos de estimação ou o time que perdeu à noite porque o juiz não marcou um pênalti.
E tinha outra coisa que ele finalmente entendeu ali. Algo que tinha a ver com a "crítica construtiva" que o pai sempre fazia de que ele era só mais um a se sentir diferente, igual a milhares de outros que tinham vindo antes dele. Era verdade. Mas só agora Mateus entendia o que aquilo significava, e não era nada que anulasse as diferenças dele, como o pai pretendia que fosse.
E sabia que aquilo, assim como qualquer outro pensamento naquele passeio, eram coisas inúteis de se dizer ao pai.
Três da madrugada, algum detalhe na decoração da casa produzia reflexos estranhos nas paredes, e o sofá-cama não era lá muito confortável, e Marcos estava tão
tão
tão profundamente
magoado.
Quase trinta anos, não era mais idade pra estar pensando em versos, meninas adolescentes, quem é que bota um sofá-cama numa biblioteca, de onde vinham aqueles reflexos, como é que ele tinha ido parar ali, por quê.
Por que pensava em versos, e a menina não saía da cabeça dele, magoada com o irmão dele, um cretino, um cretino que também já estava velho demais pra meninas da idade dela, três e meia da madrugada, será que ela estava bem, mais versos, e versos, versos.
Talvez
porque
com Vitória
ele só quisesse desacelerar o tempo
e falar sempre assim
bem
devagar.
Abriu um livro pra se distrair, livros antigos, de ar tão sério, pareciam tão desconfortáveis quanto o sofá-cama, este tinha até fotografias em preto e branco, melhor do que acordar alguém pra conversar, melhor do que falar sobre aquela angústia, mas então, no meio da página, de repente,
Mais de dois mil anos e onde será que ela estava agora, por quê, no fim da tarde ela parecia tão triste, e ele pensando que nunca mais iria vê-la, aquele cretino do irmão caçula, tão homem pra ferir uma menina, por quê, Marcos não conseguiria mais dormir sem ter notícias, nunca mais, e sobretudo não depois daquela foto, não entre aqueles reflexos, não com todo aquele silêncio.
Também seu peito dilacerado
por nada,
ideias fracassadas do que é ser um homem.
Fazia anos que ele não chorava, era como se a menina estivesse ali, diante dele, e ele não pudesse alcançá-la, um reflexo azul e dourado e branco, uma lágrima, aquele rosto de uma criatura mágica, e Marcos se ajoelhou no meio da biblioteca dizendo não chore, minha querida, não chore, não,
não chore.
Pairam por aí esses parasitas de almas
que são umas criaturas incapazes de luz própria.
Nossa dor é uma piada pra eles
e não poderá mais do que doer mais alto.
Quatro horas da madrugada. Ninguém escutava.
Teria prolongado aquele instante por mais tempo se soubesse o que viria depois, mas não fazia seu estilo prolongar momentos em que recebia atenção e carinho pra além do que eles durassem naturalmente.
Estava se divertindo com meninos do primeiro ano em um totem onde eles escolhiam toques de corneta militar e ele tinha que adivinhar seus significados. Então ia dizendo "é um lindo dia pra um mergulho" ou "hoje a festa é lá no meu apê" pra melodias que nunca significavam mais que "sentido" ou "direita volver". E os meninos riam de qualquer bobagem.
Era sempre uma linha tênue, o momento em que as coisas ficavam emocionais demais, humanas demais enquanto sua função continuava sendo produzir as mesmas velhas peças pras mesmas velhas engrenagens. Por isso, muito logo o "profe Lucas" teve que ir dar atenção a um outro grupo em outra parte do museu. Afinal, por mais diferente que fosse a atração daquele dia, não era nada além da rotina.
Aí, quando encontrou meninas distantes e caladas demais pros padrões delas, perguntou o que havia, mas não obteve nenhuma resposta convincente. Numa última tentativa, perguntou por Vitória, que havia confirmado presença no passeio e acabou não aparecendo. Foi quando percebeu um tremor percorrer o grupo, respostas ainda mais evasivas, um ponto final pras perguntas impertinentes daquele senhor de meia idade.
Depois, quando o grupo se dispersou e ele olhou em volta, deu de cara com isto:
E desta vez, o tremor percorreu seu próprio corpo.
Era como ter mergulhado em um poço sem fundo de pura treva. Havia alguma coisa ali, ele tinha certeza, mas não fazia ideia de como começar a se desvencilhar de tantas sensações turbulentas e desoladoras.
Tinha a ver com Vitória, sim, mas revirava tanta mágoa em seus cinquenta anos de solidão que por um segundo foi preciso lutar contra o instinto de pedir ajuda, de implorar de alguma forma por aquela mesma atenção e carinho que estava recebendo minutos antes.
E não era pra fugir de instintos como aqueles que a maioria dos humanos apagava a sua individualidade em comportamentos de rebanho?
O professor se afastou em direção à janela, apoiou-se no parapeito e inspirou profundamente.
O horizonte parecia turvo. E Lucas não acreditava muito profundamente em nada, mas a verdade é que só conseguiu algum alívio depois de fazer um tipo de oração por sua aluna.
Naqueles setenta e poucos anos, o que ele mais se lembrava era de um mundo covarde demais pra olhá-lo nos olhos. Sem muita escolha, aceitou o caminho fácil, abandonou a si mesmo em troca de "ser alguém", e agora que sentia as últimas gotas de vida escorrendo, percebia também a sede acumulada.
Rabiscava, desajeitado, outro desenho no papel, tentando resgatar as formas de memória, e a firmeza na mão, e a vista, e um talento que já nem sabia se algum dia teve de verdade, quando Marta veio lhe perguntar se a menina poderia passar a noite ali com eles.
E contou a história de mais uma menina enganada por mais um homem sem escrúpulos, mais um aborto sendo feito, e que ela não poderia voltar pra casa, mais uma casa onde imperava um pai com seu falso moralismo e condenações generalizadas, especialmente contra as mulheres, então perguntou se eles poderiam acolhê-la, só por aquela noite, e João falou sim, claro.
Triste, silencioso foi o início daquela noite, e João se lembrava de tantas conversas tidas com Marta em que ela dizia, contra a ideia de que a humanidade fracassou, que quem havia fracassado mesmo eram os homens, mas que afinal, eles eram fisicamente mais fortes e insistiam em manter o fato no topo das relevâncias.
"Ela tem razão", João pensava, "ela tem toda a razão", tendo sido uma das pouquíssimas pessoas capazes de vê-lo, em mais de setenta anos, mais uma entre uma maioria absoluta de mulheres.
E agora, a menina estava ali, a casa ficou ainda mais silenciosa. Ele não a viu, apenas percebia sua presença como uma densa camada de melancolia preenchendo todos os cantos. As mulheres falavam baixo e em tom grave. Andavam devagar e cabisbaixas.
João reencontrou o desenho sobre sua mesa um pouco antes de dormir. Marta veio lhe dizer que a menina estava descansando, que ela iria embora assim que amanhecesse e que eles não precisavam se preocupar, mas dizia isso com a voz meio embargada. Parou a meio caminho de sair, olhando em direção ao nada, e disse triste e devagar "Vitória. Ela se chama Vitória. Quinze anos."
Quando a porta se fechou, ele voltou a olhar pro seu desenho, indiscutivelmente premonitório, uma escultura de mais de dois mil anos, sem cabeça e de asas abertas, com aquele mesmo nome. O que não queria dizer absolutamente nada. João nem saberia explicar por que chorava.
sábado, 9 de abril de 2022
Não sei se incapaz de ver ou pra garantir que o mundo confirme a ideia ruim que você faz dele
Quando foi que decidiu que a vida não é a água que jorra e sim aquela que foi engarrafada
Até que um dia seja muito tarde pra soltar o grito que ficou empedrando aí dentro da sua garganta
Que o coração tem a bússola e o norte e seguramente o passo e pode ser que a estrada
Que o medo é um aliado até o momento em que empunha uma arma ou acorrenta seus braços
Que a maioria das culpas e condenações só têm realidade mesmo em pensamentos
E há uma diferença imensa entre estar bem e apenas tentando agir como se a dor não existisse
Eu sinto muito de verdade que você não consiga aceitar o escuro
Porque assim continuará sendo enganado por qualquer um que saiba escondê-lo
Um fantasma engolindo o ar que ainda resta ao redor do seu sorriso pálido
Uma navalha sangrando pra sempre a sua alma afundada em alegrias de plástico
A miséria não se importa se você executa à perfeição os rituais ao deus dinheiro
Você não é maior por inventar vilões diante dos quais desfila fantasias de grandeza
Nem estará mais seguro se for arrastado em cardumes por marés de farsas
Nem jamais terá feito um bem sequer se faz somente o bem que espera que lhe façam
Atormentados e feridos e doentes e exaustos se acumulam ao redor do lado bom das coisas
Então eu não acho que esteja consumindo tanta força assim o seu fechar de olhos
Quando a menor fagulha de afeto e compaixão seria o suficiente pra acender a Terra
Somente pare de desperdiçar a pulsação dizendo que não dança
Um pouco de atenção e os sonhos seriam capazes de aquietar tempestades
Para além das milhares de promessas na vitrine o amor continua sendo a única energia renovável
sábado, 2 de abril de 2022
Eu tenho uma poesia alegre pra você
Aqui, em algum lugar
Eu tenho até respostas
Pode ser que alguma esteja certa
Trouxe lírios que você não quer
Gostando mais do sangue cenográfico
Entrego um coração de música
O céu todo
E qualquer coisa como descansar
Mas soube que você tem outros planos
Líderes
Mais quase nada de verdade
O mesmo velho círculo pra andar
Parece que eu não sei de nada
Mas sei que tenho ao menos outros ares
Trouxe um pouco pra você
Aqui
Olha
Lá longe
Assinar:
Postagens (Atom)