sábado, 30 de junho de 2018
Tinha essa mancha de
sol na grama, folhas, frio – sobras do outono – e pássaros. Já não se usava
andar de pés descalços e muito se falava sobre urgência e desperdício. Você vê:
tinha o poente e casais de mãos dadas, e assovios e gritos dos desesperados e
saudades passeando e era sábado. Você bem sabe. Ninguém voltaria a tempo de
encontrar-se. Tinha esses ruídos e cores que se enfrentavam. Já não se
acreditava mais em melodias e em palavras – sim, sobretudo não se acreditava
nas palavras – tinha aquela mancha de sombra das árvores sobre a grama e tinha
pedras e tinha barro. Você quer muito ser o sonho bom? Você percebe tudo o que
se perde no intervalo? Sim, era sábado, tinha esse tom de alguma coisa às
claras, mas ao mesmo tempo um de viver às cegas. como uma brisa fria. como uma
andorinha só, fazendo inverno.
sábado, 23 de junho de 2018
Depois de várias promessas e desencontros, chegou o dia em que Joaquin veio me contar a experiência mais
inacreditável de sua vida envolvendo coincidências. Aconteceu quando ele era ainda muito jovem e
estava em uma cidadezinha no interior do Rio Grande do Sul, meio acampado,
fritando hambúrgueres numa lanchonete antes de continuar sua viagem de volta para casa. Lá, ele conheceu um rapaz mais ou menos da nossa idade chamado Antero e os dois logo ficaram muito amigos, trocando histórias sobre viagens, livros, mulheres, etc. Descobriram
que tinham em comum a paixão pela ideia de fazer cinema e de criar histórias
que eles sonhavam em um dia escrever, dirigir e quem sabe até protagonizar. A melhor
ideia de Antero, na opinião de Joaquin, era a de um curta-metragem sobre um
cara que encontrava um papel na rua com um número de telefone e decidia
ligar, acabava conhecendo uma mulher e, a partir daí, se desenrolava uma história de suspense, comédia e romance. A melhor ideia de Joaquin, na opinião
de Antero, era um filme de viagem ao longo da Cordilheira dos Andes com ótimas
tiradas de humor, como, por exemplo, o caso de um personagem chamado Jorge
Flores.
Jorge Flores não
apareceria no filme. Era assim: algumas vezes, o protagonista seria mostrado em
rodoviárias – esperando ônibus, dormindo em bancos, na lanchonete ou fazendo
qualquer outra coisa – e todas as vezes que isso acontecesse, de alguma
forma, o nome de Jorge Flores seria mencionado: ou na plaquinha de alguém
esperando por um passageiro no desembarque, ou sendo chamado pelos
autofalantes, ou escrito a caneta na porta de um banheiro, etc. Joaquin jurava
que algo assim tinha acontecido de verdade com ele, e que até então aquela
tinha sido a experiência mais inacreditável de sua vida envolvendo
coincidências – mas que na versão real, pra ser sincero, as rodoviárias não
ficavam aos pés da Cordilheira, mas no Brasil, e o nome que se repetia nas
rodoviárias não era Jorge Flores, mas um em que Joaquin não via graça nenhuma, por isso resolveu mudar.
Quando se cansou de
fritar hambúrgueres naquela cidade e quis pôr o pé na estrada outra vez,
Joaquin lamentou poucas coisas além de ter que se despedir de Antero. No dia em
que foi embora, andava em direção à rodoviária pensando no amigo e se lembrou
das histórias dos filmes só um instante antes de enxergar um pedacinho de papel
caído na calçada. Sem hesitar, abaixou-se para pegá-lo e, para sua surpresa,
sim, claro, era exatamente um número de telefone que estava nele – acompanhado
da palavra “salgadinhos”.
Por algum acaso que
ninguém saberia explicar, Joaquin tinha no bolso uma ficha telefônica, e ali,
logo em frente, estava um telefone público. Joaquin mal estava pensando, apenas
tirou o fone do gancho, colocou a ficha e discou o número. Ouviu um toque de
chamada, dois toques, cinco, toques demais e então já estava quase
desligando quando Alô, Alô quem é, Queria falar com quem? Era uma voz de
mulher, parecia velha, cansada e autoritária. Joaquin pigarreou, Estou ligando
por causa dos salgadinhos, ele disse, e a mulher do outro lado ficou brava e
disse que Esse assunto eu resolvi diretamente com o próprio senhor Jorge
Flores, oras, passar bem.
E desligou.
Aquele barulhinho da
ligação caindo, sabe, Joaquin diz que doeu.
E eu acreditava,
mesmo, que sim. Mas também a dor me parecia um detalhe até sem importância no
meio daquilo tudo. Até porque eu tinha essa informação a mais sobre a
história e ela estava me roubando os pensamentos: o fato de que, pelas descrições
que Joaquin fazia (e Joaquin sempre fazia descrições com muita riqueza de
detalhes) o Antero de sua história era exatamente aquele que eu fui conhecer
anos mais tarde em Machu Picchu e com quem vivi uma série de aventuras.
Olha aqui, Joaquin –
falei depois de alguns segundos de silêncio de perplexidade – deixa eu te
contar uma coisa: essa é, de longe, a experiência mais inacreditável da tua
vida envolvendo coincidências.
domingo, 17 de junho de 2018
Tinha quebrado um vaso, tinha cacos de vidro no
chão e bem naquela hora o nenê tava chorando de um jeito que parecia que o
mundo ia acabar pra ele o infeliz, e era uma jovem de cabelos negros e longos
debruçada à janela com um vestido de flor e tinha água, não sei, tinha muita
água pelo chão, nuvens cor de chumbo escureceram o céu mas perto do horizonte
ainda tinha algum azul, e espelhos giravam e cabelos ruivos e gêmeos e
aposentos reais num castelo alguém dizendo adeus ou coisas sábias, houve um
tempo, talvez, houve um longo intervalo de tempo, tecidos dourados, uma menina
triste aconchegada no colo do avô, o peso de uma ausência, como agora, esses
vazios que há nas mensagens de voz ou vídeos sem verdades, telefones que não
tocam e aquela velha impressão de estar pagando pelos erros do mundo todo
quando acaba a tinta, o tom, a tela, tinha um pincel pousado inutilmente e
tinha um coração desencantado e tinha um mar, ou mais ou menos, ou então era um
daqueles dias em que não se via nada.
sábado, 9 de junho de 2018
Só
me lembro de enxergar debaixo d’água. Não de me desesperar, nem de sentir o ar
faltando, nada: só me lembro da luz, de como os raios do sol se espalhavam a
partir da superfície e iam afundando em direção ao nada, até sumir. É, dá pra
explicar desse mesmo jeito o que estava acontecendo na minha cabeça: afundando
em direção ao nada.
todo
um poema acontecendo aqui e você pedindo outra colheita de crimes. eu é que não
vou morrer de novo só porque as tuas palavras aleatórias são aleatoriamente bem
mais importantes do que as minhas. pra você, isso não quer dizer nada, mas
agora eu só consigo pensar que só umas poucas letras embaralhadas diferenciam
confronto de conforto.
Escuto
o som dos motores dos carros, caminhões e motos que passam pela estrada ainda a
esta hora. E de repente, então, correntes contra as grades, passos na escadaria
do prédio e o clic da luz acendendo, chaves, uma chave arranhando a porta e logo em seguida o molho inteiro de chaves caindo no chão, silêncio. Não pode ser ela,
eu penso, ela não vem, é claro. Algum vizinho está bêbado.
Não
me lembrava de nada: nem do meu nome, nem de ter existido antes de acordar
naquela cama de hospital. Os primeiros dias foram os piores, porque qualquer
coisa que passasse pela minha cabeça poderia ser algo que eu tivesse vivido. Cenas
de filmes, sonhos, pesadelos, qualquer coisa. Passei dias acreditando, por
exemplo, que eu tivesse mulher e filhos me esperando preocupados no interior do
Tocantins.
Sabe aquela sensação
de quando você chega na padaria de manhã bem cedo e o pão acabou de sair do
forno?
sexta-feira, 1 de junho de 2018
Às vezes é inevitável respirar
o ar envenenado de melancolia
porque o relógio é único demais
pra tantos
segundos
passados.
Às vezes é tão simples:
o que passou, passou,
menos as frases feitas
e o medo de fantasmas.
Às vezes a sede
de nos virarmos pra trás
vem simplesmente do receio
de há muito tempo termos virado
estátuas de sal.
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