terça-feira, 31 de março de 2020


Ninguém foi esperá-lo na rodoviária. Eram dez horas da noite e Joaquin parado ali sozinho, fumou um cigarro e acabou embarcando num táxi, rua tal, número tal, mas vai pela avenida. Aí na avenida aconteceu uma cena: o táxi andou por um tempo ao lado de outro carro, e lá, dirigindo esse outro carro estava a sua amiga Soraia, e ela também viu e reconheceu Joaquin, e os dois sorriram, depois ela dobrou uma esquina e desapareceu de vez. Ele ainda estava distraído quando o motorista reduziu a marcha, um bom tempo depois, e estacionou à beira de uma praça mal iluminada de onde partiam vários becos ainda mais escuros. O taxista apontou pra um desses becos e disse rua tal é aquela ali, é uma passagem só de pedestres. Ele pagou a corrida e desembarcou carregando o malão com todas as amostras de venda, todo o seu trabalho. Quando o carro se foi, tudo ficou mais escuro, e só então ele reparou nos diversos grupos de pessoas espalhados pela praça. Olhavam pra ele e conversavam entre si falando baixo. Por um segundo, ele teve medo, depois atravessou pelo meio deles, caminhou pelo beco, a passos meio rápidos, atento, até encontrar a pequena porta de madeira escura em um muro coberto de folhas verdes, número tal era aquele ali, ele apertou a campainha. Quién és?, perguntou alguém, ele falou Soy Joaquin, então uma senhora abriu a porta e disse Seja bem-vindo, querido, estávamos te esperando.

Joaquin passou quase um mês naquela casa enorme em pleno centro histórico da cidade, uma construção de uns duzentos anos, no mínimo. Durante o dia, saía trabalhar, e à noite ia parar quase sempre na biblioteca da casa, uma biblioteca daquelas com escadinhas de correr na frente das prateleiras. Eram livros demais, títulos demais, e ele acabava escolhendo vários, meio aleatoriamente, depois sentava no sofá e lia até quase de madrugada. Folheou os livros mais estranhos, biografias de gente sem graça, filosofias obscuras, geometria, palavras de origem árabe na língua portuguesa. Passava mais tempo com os de poesia, utopias sociais, romances de aventura e fantasia, humor inglês, fotografias, pseudo-ciências. Já não sentia medo ao andar pelo largo, à noite, já conhecia pelo nome um bom tanto daquelas pessoas suspeitas que falavam baixo por ali até mais tarde. Mas na maior parte do seu tempo livre, apenas leu e observou das janelas a escuridão dos becos do centro histórico, e viu a cidade como nunca tinha visto antes, dramática e suja, meio cega, brilhante, oca.

A cidade que ele amou uma vez. Em que ele tinha amado. A cidade.

No dia em que foi embora, ninguém foi levá-lo na rodoviária, nem encontrou ninguém pela avenida. Embarcou sozinho, sentou à janela do ônibus, olhou pra multidão que se juntava nas plataformas de embarque, onde, com quase toda a certeza, não conhecia ninguém, e acenou em despedida.

Estava tão cansado que dormiu logo em seguida, um sono profundo que durou várias horas. Numa delas, acordou sendo empurrado pela moça que ocupava a poltrona ao lado: sem querer, a cabeça dele tinha caído no ombro dela enquanto dormia. Pediu desculpas e ela disse que não, assim seco, numa voz bem grave. Ele ia dar uma resposta mal-educada, mas dormiu de novo na mesma hora, e quando acordou, muitas horas depois, ela já não estava mais lá.

Uma pena, pensou, enquanto um cheiro adocicado ainda exalava do banco ao lado.


quarta-feira, 25 de março de 2020


entra poeira da rua pela porta aberta. amanhã tem que comprar um- ah, droga, esqueci de pagar outra conta, de novo. já seria difícil sem nenhum idiota vomitando opiniões porcas no meu caminho, mas parece que é disso, agora, que os caminhos são feitos. rezar pelo silêncio dos fins de semana. não é o sofá mais confortável do mundo, mas é o bastante pra uma tarde de domingo. as janelas tremem quando o trem passa duas quadras lá adiante. ainda falta preparar o almoço, mas só quero pensar nisso depois das três e meia ou quatro horas. ou cinco. ainda tem uns filmes legais pra assistir, pelo menos. esmagado, é assim que eu me sinto, não exausto, não despedaçado, preso, não, nada disso, eu me sinto esmagado por essa merda toda que insistem em jurar que é o único jeito, porque é assim que foi sempre. não, seus merdas, é a gente quem decide como são as coisas e- ah, esse protesto ridículo. um sopro muito leve no meio do tumulto. numa rua esquecida de um bairro esquecido de uma cidade surda em um dia de (risos) descanso. em qual dessas gavetas eu guardei meu coração, era pra hoje. deixa eu ver, deve estar por aqui, pronto, encontrei. esmagado.

quarta-feira, 18 de março de 2020


Sabe quando você sente as mãos frias de uma tempestade ao redor do seu pescoço
O ar cortando a voz de todo grito de socorro é cheio de pequenas lâminas de gelo
Não dá pra encostar a testa na janela do ônibus e sonhar em uma estrada tão esburacada
E nenhuma luz engana a cegueira de quem viaja rumo ao leste na hora em que amanhece
Eu ando assim despedaçado em sacos de lixo rasgados por todas as ruas de todas as cidades
Não estou muito à vontade com a completa falta de horizontes nas paredes do seu quarto
Nunca fui habituado a ter a imaginação dependendo de internet rápida
Sabe quando você quer aquele gosto preto e fresco de uma noite cravejada de grilos
A transparência água limpa o milagre jorrando de uma só palavra de amizade
E tudo que há ao redor são só milhares de milhares de anos-luz de vácuo
A dor espalhada como um brilho quieto e derramada quente sobre o coração em chamas
Ninguém pode provar por a+b que a culpa é minha por qualquer justiça que me subtraiam
E você não precisa repetir os códigos que já me provocaram tantas cicatrizes
Nem por isso eu tenho a obrigação de concordar que o medo dite as regras daqui pra frente
Nem por isso eu tenho a obrigação de nada ou acho que uma coisa deva necessariamente levar a outra
Sabe quando as lágrimas pesam como inacreditáveis gotas de chumbo sobre suas asas
Sabe quando o sangue chove e mesmo assim há multidões ajoelhadas adorando o céu de sacrifício
Sabe quando as jaulas não vêm com passagens secretas
O perdão pode soar como um remendo em roupas muito gastas e com um design ultrapassado
Mas bem que eu gostaria que chegasse até você um pouquinho só desse eu estar me importando de verdade
E que você pudesse ver o que estou vendo
E que também o que não sou eu pudesse ser visto de dentro pra fora
Pelo menos uma vez só que fosse
Em minha vida toda

quarta-feira, 11 de março de 2020


(Diários de Machu Picchu #08)

Todos os portos, todos os aeroportos são iguais, rodoviárias e estações com suas televisõezinhas de partidas e chegadas, anúncios de colares-travesseiros, estufas com pães-de-queijo, armários, homens e mulheres de coletes, malas com rodinhas, carrinhos pra levar as malas com rodinhas, rodinhas, campainhas e companhias, rodinhas, relógios, mãos acenando e lágrimas em plataformas de embarque.

Todos os barcos, ônibus, todos os trens e os aviões sobre os seus trens de pouso são iguais, bancos de couro imitando couro, as manchas de sol e sombra dançando em todas as superfícies, as suas televisõezinhas com programações duvidosas, os dedos indo e vindo nas telas dos celulares, os olhos indo e vindo na paisagem, sono entrecortado e o pescoço de mal jeito, as costas de mal jeito, as pernas de mal jeito, estranhos com conversas estranhas e biscoitos distraindo a fome, mantas, memórias, mãos acenando e lágrimas correndo nas janelas.

Todas as partidas, todos os caminhos e chegadas são iguais.

quarta-feira, 4 de março de 2020



– Machu Picchu já foi cruel com você? – perguntou Antero, na segunda e última vez que estivemos juntos no “Santuário”, que é como são chamadas as ruínas. Aliás, a bem da verdade, estávamos no topo da montanha de nome Machu Picchu, a mais alta dos arredores, e embora o acesso à montanha passe pelas ruínas, não há indícios de nenhuma construção inca no alto dela.

– Quer saber se eu fui atacado por algum cachorro? – brinquei, em referência ao dia em que nos conhecemos, logo depois dele ter sido inexplicavelmente atacado por um cachorro amigável. – Teve umas pequenas crueldades – confessei, mas não me sentia muito disposto a ter aquela conversa ali, naquele lugar, então mantive o tom de humor: – Mas acho que o pior é quando eu quero andar por aí e começa a chover.

Antero ficou em silêncio, sequer sorriu. Já tínhamos conversado mais de uma vez sobre as sombras que existem no que quer que possamos chamar de processo de iluminação espiritual, uma ideia muito bem ilustrada por Jung ao dizer que nenhuma árvore cresce até o céu sem ter raízes tão profundas a ponto de tocar o inferno. Talvez naquele momento eu só quisesse desfrutar da proximidade com o céu, sem pensar em mais nada. Mas Antero não era dado a períodos muito longos de silêncio contemplativo, e quem sabe, até, seu interesse em retomar o tema fosse só mais uma das pequenas crueldades de Machu Picchu comigo.

Então ele me contou uma história.

Lembrou, mais uma vez, de quando atravessou a fronteira do Brasil com a Bolívia em Corumbá, no Mato Grosso do Sul, acrescentando que vinha de uma série de relacionamentos frustrados e até nocivos, incluindo casos com mulheres casadas que quase tinham destruído a sua vida e as de muitos outros. Nunca tinha falado sobre isso, o que, no fim das contas, fez com que o meu estado de ânimo em relação à conversa mudasse e eu começasse a prestar atenção.

Falou um pouco sobre o sentimento de solidão durante todo o trajeto do Trem da Morte, mas também sobre uma certa resistência que sentia ao impulso de procurar por alguém ou flertar com desconhecidas. Disse que tinha a impressão de que sua cabeça “esvaziava” conforme ia ganhando altitude até chegar a La Paz, e que se sentia “em branco” no momento em que avistou o Lago Titicaca pela primeira vez, no caminho até Puno, no Peru.

– Quando cheguei lá – disse, – era como se toda a minha vida até então nunca tivesse acontecido. Era como se eu nunca tivesse amado ninguém.

Fez uma pausa, lançando para mim um olhar significativo de quem se lembrava de eu ter-lhe dito algo muito parecido em uma de nossas conversas. Depois voltou a olhar para a paisagem com a expressão um pouco enevoada e prosseguiu:

– Foi quando ela apareceu. Achei que era o destino, sei lá, era uma das mulheres mais lindas que eu já tinha visto na vida, parada, sozinha, na beira do lago, a luz batendo de um jeito que só aumentava a sensação de sonho. A gente conversou por uns quinze minutos antes de aparecer o namorado dela. Eu não sabia que existia um.

Fez outra pausa, dessa vez mais curta e carregada de um pouco de raiva, mas quando recomeçou, estava se divertindo.

– Ficamos amigos, Julio, Mirela e eu. Passeamos juntos, saímos para beber, dançar, conversávamos sobre qualquer coisa... E eu até que estava me saindo bem fingindo que não sentia nada por Mirela. Mas era forte demais, custava muito. Chegou uma hora que eu não aguentei, aí eu só segui viagem...

Acenou com a cabeça em direção às ruínas lá embaixo:

– Cheguei aqui mais de um mês depois. Passei por Arequipa, Nazca, fiquei um bom tempo em Cusco. Mas assim que botei os pés no Santuário, adivinha quem eu encontrei.

Não consegui conter um sorriso, mas imagino que era esse o efeito que ele pretendia. Então ele se virou para mim cheio de energia, como para dizer que ainda não tinha acabado, e que o que vinha a seguir era ainda pior do que aquilo.

­– Julio fingiu indignação quando me viu. Caminhou na minha direção agitando os braços e perguntou: “O que você faz aqui? Essa é a nossa Machu Picchu!”

– Ai – foi só o que consegui comentar.

Antero balançou a cabeça, reprovando a lembrança, algo entre divertido e profundamente magoado. Eu quase podia ver o casal brincando de ter um Santuário só deles, onde ninguém mais podia entrar, e a frustração de Antero logo em sua chegada a Machu Picchu. Não era a primeira vez que eu via o destino brincar assim com alguém, com aquela dose concentrada de crueldade e ironia. E – infelizmente, devo dizer – sabia que não seria também a última.