sábado, 28 de maio de 2022


 


 

Só no começo confunde um pouco 
Essa maré da moralidade 
A polaridade das conveniências 
A linha das leis se esticando 
Conforme um nome 
Ou um número na conta 

Só no começo confunde 
Ver um idiota receber medalhas 
Por coisas que em você são defeitos 

Sei que te contaram histórias 
Sobre amor e caráter 
Mas na vida real 
Tudo isso é personagem coadjuvante 
Quase sempre morrendo nas valas 
Sem que ninguém chore por eles 

Sei que te disseram pra acreditar 
Provavelmente 
Porque precisavam dormir à noite 
E o teu medo não deixava 

A verdade é que os fatos variam 
Conforme o humor de quem conta 
História é um capricho 
De quem patrocinou a versão pro cinema 
Ou o disparo nos grupos 

A verdade 
É que a própria verdade 
É inútil sem poder 

Não se engane 
Pra ser você mesmo é preciso respaldo 
Ninguém é alguém nessa terra 
Além do cachorrinho de um outro 
Ou então um herdeiro 

Não, não se engane 
Essa liberdade nas prateleiras 
Não está realmente à venda 

Os vencedores, como eles se dizem, 
Seguirão atrás das cortinas 
Aplaudidos sem serem vistos 

Vencedores 
Não perdem seu tempo com questões humanas 
Eles encomendam campanhas 
E vão rir de tudo bem longe 
Se já não tiverem esquecido 

Em resumo, 
Horizontalidade, inclusão, avanços 
São coisas que só existem nos discursos 

Em resumo, 
Quem manda no mundo é um bando de cretinos 
O que nem seria um problema 
Se não fosse todo o resto 
Tão 
Decidido 
A obedecer sem pensar nisso


 

sábado, 21 de maio de 2022


 


 

fiquei sozinha outra vez.

não estava claro qual de nós chorava à janela, aquele rio de luzes brancas e vermelhas na avenida ao fim da tarde.

eu dobrava distraidamente uma folha de papel amarelo e pensava — não, sentia o peso de cobranças, frustrações, quebras de acordos.

eu bebia um drink alaranjado. vestia uma blusa cor de rosa e tinha o cabelo ainda preso em uma trança já meio desfeita, o esmalte lilás meio descascado, a maquiagem — ou talvez aquela não pudesse ser eu.

sem reparar, fui dobrando aquela folha de papel até que ela virasse um tsuru.

há quanto tempo já não faço cartas ou poemas manuscritos? um olho no relógio, a sensação constante de que nunca haverá tempo suficiente para tudo que eu quero, o que você quer?, nem mundo para tudo que eu preciso.

na penumbra, por um instante, pareceu-me que era outra pessoa ao espelho, com a trança já meio desfeita.

e de repente não sei, mas onde foi parar meu tsuru amarelo?

jéssica.

foi o nome em que pensei, a imagem nítida, enquanto afastava a caneca de café e esfregava com um dedo a gota preta sobre a blusa azul-marinho.

a centenas de quilômetros dali, jéssica pensou em mim ao encontrar um tsuru amarelo em um bolso onde um pouco antes não havia nada.

sim, meu coração pesava. a solidão que é única, as raízes que se tocam sob a terra, mas nunca soube de verdade onde foi parar meu tsuru amarelo.

nem no momento seguinte, quando o telefone tocou e me deparei com o nome de jéssica na tela.

— foi você? — ela perguntou.

— eu o quê? — perguntei.

nunca ficou bem claro qual de nós chorava.


 

sábado, 14 de maio de 2022


 

Eu estava lá muito confortável não existindo 
Aí de repente puf, estou aqui, muito bem 
Mas como se não bastasse 
Tem que ter papel com foto assinatura antepassados digitais números 
Ou quem sabe eu não exista 
Tem que dizer bom dia obrigado por favor desculpa não foi nada pode bater na outra face 
E baixar a cabeça toda vez que alguém mais importante estiver falando 
O que todo mundo acha que é 
Tem que estudar pra uma prova e depois pra outra e decorar a lição porque a qualquer momento pode ter prova-surpresa 
E tem que ir muito bem nessas provas 
Ou quem sabe eu não exista 
Tem que lavar cozinhar usar roupa arrumar os dentes e pentear direito o cabelo 
Tem que seguir o exemplo saber a hora certa trancar a porta e tirar a poeira dos móveis 
Tem que passar o dia todo rolando uma pedra montanha acima 
Tem que baixar o programa e pagar a conta e decorar a senha e conhecer os esquemas ganhar seguidores 
Correr consertar a máquina observar os avisos de não fumar e olhar pros dois lados antes de atravessar a rua 
Amar engolir o choro vender subir e descer escadas votar no menos pior e dormir pelo menos oito horas por noite 
Ou quem sabe eu não exista 
E como se assim bastasse


 

sábado, 7 de maio de 2022



CAPA
RELAÇÃO DOS PERSONAGENS
DESCRIÇÃO DO ESPAÇO CÊNICO
---> Clique Aqui <---

Cenas anteriores:
---> PRÓLOGO <---
---> CENA 1 <---
---> CENA 2 <---
---> CENA 3 <---

(Novas cenas em breve.)
CENA 4

(A luz vai se acendendo lentamente sobre a cena tal e qual ela estava antes, com Mano repetindo para Pâmela que não quer perdê-la novamente, quando voltam Ludo, Diogo e L.)

LUDO: Vamos lá, vamos acabar logo com isso.

KARINA: Você! O que você fez com ela?

DIOGO: Depois, Karina!

LUDO: Pode deixar isso pra depois? Pra gente acabar logo com isso?

KARINA: Ela vai me contar tudo.

LUDO: Ótimo. Eu não vejo a hora. Agora é uma outra história que precisa ser contada.

PÂMELA: Então a gente se encontrou aqui.

L: No meio desses idiotas, infelizmente.

KARINA: Ele ainda está armado?!

LUDO: É uma arma cenográfica.

DIOGO: É de mentira. É só pra contar.

L: Me deram esse brinquedinho ridículo.

LUDO: Achei que você tinha entendido o que eu te falei ali…

L: Ah, eu entendi, não precisa viver o personagem, é teatro contemporâneo, isso… Não tem nada a ver com o fato de que agora é você quem está armado.

LUDO: Amigo, você precisa muito pegar um pau, né, uma pedra, gritar uga-uga, ver alguém perdendo sangue - e isso resume a totalidade da sua existência. Faz tempo que eu nem me lembro mais onde que eu perdi aquele pedaço de merda. Vamos logo acabar com isso? Fica longe… você não tem que reviver nada, é a única questão aqui. O que não tem nada a ver é com teatro, é pra vida isso, deixa o impulso, o sentimento, o pensamento negativo passar. Não atua, não interpreta.

PÂMELA: Então… a gente se encontrou aqui.

L: Num culto de autoajuda, aparentemente.

MANO: Eu só cheguei depois, vocês…

KARINA: Vocês conversaram.

PÂMELA: Sim.

(Pausa. Durante o diálogo a seguir, Ludo sai de cena discretamente.)

KARINA: E…?

PÂMELA: Eu não… alguma coisa me afastava dele…

L: Eu devia ter te levado pra casa. Eu queria ter conseguido.

PÂMELA: Nada do que ele dizia tinha alguma coisa a ver comigo.

L: Ela nem escutava mais o que eu dizia. De uma hora pra outra, ela tinha virado outra pessoa.

PÂMELA: Eu mesma. Era uma coisa que eu acho que eu nunca tinha sido de verdade.

L: Vocês superestimam isso ser quem a gente é, que coisa mais infantil...

PÂMELA: Vocês quem?

KARINA: Você é de um grupo que com certeza se beneficia se alguém de outro grupo abrir mão de ser quem é.

L: Está vendo? Um grupo, outro grupo… A gente é tudo humano igual, pra que ficar inventando coisa que separa a gente?

KARINA: É… e se beneficia ainda mais se alguém cair nesse discursinho hipócrita e conveniente justo agora - você não estava se achando muito igual a todo mundo quando estava com uma arma de verdade na mão.

L, fingindo-se entediado: Quando que a gente ia acabar logo com isso, mesmo?

HELENA, casual, ao microfone: Oi, com licença? Com licença, eu preciso interromper. Desculpa, é um minutinho só. A gente vai precisar parar um pouco pra preparar a próxima cena… Eu quero pedir desculpa, é uma cena muito perigosa, aconselho vocês a não tentarem fazer isso em casa, mas também não se preocupem, nós somos treinados e preparados pra isso, e além do que esse tipo de mecanismo que a gente vai usar aqui, ele praticamente nasceu junto com o teatro… teatro ocidental, né, na Grécia Antiga… os gregos, quando inventaram o teatro, já inventaram junto esses... efeitos especiais, né, então… se chamava deus ex-machina, é um mecanismo simples, a princípio, sem grandes mistérios… imagina, era usado, isso, uns quinhentos anos antes de Cristo, eles estavam fazendo lá…

L: Meu Deus, você fez uma apresentação em PowerPoint pra gente? Eu vou dormir…

HELENA: Eu fiz, na verdade. (Começa a projetar slides.) Aqui vocês podem ver as ruínas de um teatro grego, em formato de arena, é o padrão, construído na encosta da montanha de modo a facilitar a acústica… O espaço no centro era do Coro, que estava lá… meio que narrando e ao mesmo tempo… de certa forma representando também a voz do povo, então às vezes do Coro surgiam umas falas que comentavam os acontecimentos da peça. E as pessoas iam aí passar dias inteiros assistindo histórias que elas já conheciam, mas contadas de um jeito que sempre buscava refletir as questões sociais, políticas e espirituais próprias do tempo e da sociedade delas.

DIOGO: Aquelas tragédias, né? "Ser ou não ser", coisas assim.

HELENA: É… Não! Como assim, "ser ou não ser" é Hamlet, muito depois…

DIOGO: Vinícius de Moraes?

HELENA: Como é, estão prontos aí?

PÂMELA, rindo: No momento em que eu me afastei dele, eu tive uma sensação que eu nunca tinha experimentado.

HELENA: Era uma grande e fascinante terapia coletiva e social de um jeito que nunca tinha existido antes nem voltaria a existir depois.

PÂMELA: Uma liberdade absoluta. Uma leveza extraordinária, alguma coisa… borbulhava dentro de mim… mas era delicado e… quente.

HELENA: Milênios antes da primeira tela verde… Muito antes de alguém sequer imaginar tecnologias como o CGI e personagens virtuais contracenando com atores verdadeiros.

PÂMELA: Não existe linguagem capaz de expressar isso… Uma plenitude tão grande… Como é possível que eu nem sequer tenha ficado surpresa quando os meus pés se desprenderam do chão. (Começa a flutuar.)

HELENA: O milagre da arte. O poder absoluto de transformação da realidade.

PÂMELA, flutuando cada vez mais alto: Até pelo contrário, de repente eu não conseguia mais entender por que passamos a vida inteira no chão… arrastando o nosso peso.

MANO: Quando eu cheguei, você já estava aí no alto… Um anjo, a imagem da perfeição.

PÂMELA: Nada podia me alcançar aqui. Nada nunca mais ia me machucar.

MANO: Uma confirmação de que você é divina, só pode. Enviada pelo céu, ou qualquer coisa assim.

PÂMELA: Nada vai me machucar dessa vez. Eu estou voando!

MANO: Mesmo que nada disso exista.

PÂMELA: Eu quero voar pra sempre, eu vou voar…

MANO: Mesmo que isso fosse completamente impossível.

PÂMELA: Eu estou voando!

(L dispara para o alto e Pâmela despenca. Ouve-se um grito nos autofalantes. A luz se apaga assim que Pâmela atinge o chão, permanecendo apenas um foco sobre Helena, que segura um aparelho de som ligado diante do microfone, com o grito ainda soando. Até que, de repente, silêncio e escuridão completa.)