sábado, 25 de dezembro de 2021

sonho
o paraíso passou por aqui
você me habita ainda agora
longas
horas
depois que eu desisti
e despertei despedaçado

sábado, 11 de dezembro de 2021

Mal consigo te ouvir aí soterrado no passado 
Mas soube que você fala comigo como se eu ainda estivesse lá 
Bem que eu gostaria que uma palavra minha fosse a semente que te brotasse de novo no agora 
E não por ser minha a palavra 
Agora nem sei se é possível algum dia você olhar de frente alguém que não esteja do outro lado do seu espelho
É incrível como você atira pedras da janela enquanto com a outra mão alimenta o monstro em seu armário 
A sua maturidade seletiva só funciona no modelo crítico e carrasco 
Não vai sobrar amor pra mim porque era só um efeito cenográfico 
Mas ódio e zombarias jorram, chovem, sobram, multiplicam-se enquanto você aplaude 
Em troca eu só preciso silenciar o que você não gosta 
Mas olha 
Lamento 
Patético é o seu requinte, há poucas fantasias que 
São mais deprimentes que a sua sofisticação 
Para de me impor suas projeções malignas 
Suas falsificações de justificativas 
Esse pequeno colorido dos seus olhos mal disfarça a sede de poder 
Sabedorias que você despreza em mim e agora me apregoa porque lhe convêm 
Você não pode chamar de civilização o que ainda é só uma alegoria da selva 
Se ainda mal começamos a rastejar um mínimo de entendimento 
Por que tanto esforço em contrário 
O que mais você espera de mim além de não ser


 

sábado, 27 de novembro de 2021


(Diários de Machu Picchu #05)


 

Quando levantei os olhos, algum brilho repentino ofuscou a minha visão, e no momento seguinte lá estava ele, aquele sorriso. O que não tem como explicar: ao mesmo tempo em que ele era tudo que eu via, pareceu que o mundo todo em volta dele ganhou vida. Aquele sorriso. O Urubamba, estrondoso ao nosso lado, o calor ligeiro do sol, um sorriso, e só depois reconheci o rosto dela, a mesma dançarina da praça do outro dia. 

 - Mas não precisa me contar com poesia - reclamou Antero, dando outro gole generoso de vinho. 

Pra mim, eu estava falando normalmente. E foi o que eu disse a ele, mas ele meio que fez uma careta e ficou por isso mesmo. Nem tinha outro jeito de contar. Era poesia. 

Fazia uns dois dias, na praça, parecia que ela dançava só pra mim, a saia alaranjada esvoaçando, os olhos brilhando à distância e aquele sorriso. Longe, eu não saberia dizer com certeza se era pra mim que ela olhava. Depois dos aplausos, antes de desaparecer, mais uma vez olhou em minha direção, juntou as palmas das mãos diante do peito e se inclinou em saudação. 

“Adeus”? 

“Olá de novo”? 

- Não sei se eu acredito no amor - comentou Antero, de olhos baixos. - Amor à primeira vista...? 

Mas então naquela manhã tinha acontecido a segunda vista, e a terceira, e eu queria ter ficado olhando sem contar nunca mais, só que fluiu de outro jeito. 

Nossa comida chegou e eu e Antero trocamos algumas palavras com a garçonete que vinha da Tailândia e era muito simpática, depois nos demoramos um pouco provando os nossos pratos e pareceu por um instante que o assunto estava encerrado. Não pra mim, claro, pra mim ainda estava muito presente. Ela estava acompanhada de uma amiga e mal tivemos tempo de trocar duas ou três palavras, vamos pro Santuário pela escadaria, eu te vi dançar, e o que mais mesmo? E aquele sorriso. 

- Por que você não foi atrás dela? - perguntou Antero. 

Por que eu não fui com ela até a entrada do Santuário? Ela não teria ido embora mais rápido se eu dissesse que estaria à espera quando ela voltasse. 

Agitei a cabeça como se pudesse espantar os pensamentos. 

- Sabe, Antero, eu pedi arroz como acompanhamento e não salada - falei. - Nada contra a salada, está muito boa e eu não estou com a menor vontade de reclamar, mas vê se me faz o favor de não testar demais a minha paciência.


 

sábado, 20 de novembro de 2021


 


 

quando eu amava era um blues quando eu amava em neon de um amor noite afora, a vodca até quando um cigarro era aceso os paralelepípedos do centro histórico e os passos soltos descompassados sempre um ombro amigo sempre um comentário amargo inteligente revolucionário, os filmes europeus e orientais e independentes em cinemas de rua e romancistas politizados e poetas da contracultura em páginas rabiscadas de cinzas e manchadas de dor e lágrimas, quando eu amava era um jazz e então batom vermelho all that happiness happening também performances durando mais de uma semana em praças e em grandes construções abandonadas, havia algo de sujo na voz algo de sujo no gesto algo de sujo algo de sujo algo de muito puro e rock’n’roll na veia e na fumaça apartamentos velhos de azulejos encardidos e eu só sei que quando amava os homens e as mulheres e eu amava a madrugada labiríntica a vertigem da metrópole o caos das nossas vidas sempre urgentes e desesperadas, quem sabe eu não amasse ninguém nada ou só amasse a mim mesmo ou nunca tenha amado tanto e tão de verdade, quem sabe a noite só exista as ruas só existam à noite pros amantes desse tipo, quem sabe as portas tenham se fechado agora ou quem sabe aquele céu tenha sido sempre desperdiçado por nossa vontade louca de ter asas, ou era um voo impossível que acontece apenas quando não sabemos que não temos asas, quem sabe, quando eu amava as esperanças e as certezas eram sempre muito parecidas, 
tão altas 
tão distorcidas 
como as guitarras

sábado, 13 de novembro de 2021



CAPA
RELAÇÃO DOS PERSONAGENS
DESCRIÇÃO DO ESPAÇO CÊNICO
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Cenas anteriores:
---> PRÓLOGO <---

(Novas cenas em breve.)
CENA 1

(Escuridão completa. No exato instante em que a música de abertura termina, começa-se a ouvir a voz de Diogo, em volume crescente, repetindo "Não, por favor não, eu não quero isso", etc, até que a luz se acende sobre ele e ele assume um tom defensivo.)

DIOGO: Era o começo da primavera. A gente… era um sábado azul, muito azul, o céu muito limpo, o sol forte, a gente… a gente era um casal jovem querendo aproveitar o fim de semana perto da praia… No princípio, era só isso, uma tarde quente, eu era… (Luz sobre Karina.) E era só nós dois, você lembra?

KARINA: Lembro.

DIOGO: Aquele céu azul, foi quando a gente conheceu o Ludo, né, amor? (Luz sobre Ludo, que acena para a plateia.)

KARINA: O… Não, o… Quem chegou antes foi o L. (Luz fraca sobre L, inquieto em algum tablado de transição.)

DIOGO: Será? Ele já chegou…?

KARINA: Sim, o… Ele… É, pois é, ele já chegou…

DIOGO: Ele veio antes.

KARINA: Primeiro, é. (Apaga a luz sobre Ludo.) Já veio louco atrás da Pâmela.

DIOGO: Procurando a Pâmela.

KARINA: É. Não, ele já achava que ela estava com o outro.

DIOGO: Ele já veio procurando briga, eu tentei acalmar.

L: Acalmar o quê?

KARINA: Eu tentei ajudar, também, mas apareceu a Helena.

(Luz sobre Helena, no mesmo lugar em que antes estava Ludo, e ela repete exatamente o mesmo gesto que ele tinha feito: acena para o público.)

L: Eu tenho certeza que essa vagabunda…

HELENA: Ei, olha essa língua!

KARINA: Pode parar. Falou em vagabunda, eu já sei que é um babaca machista da porra.

L: Ela está aqui. Ela veio pra cá com outro homem.

DIOGO: A Karina saiu dali com a amiga nova e me deixou tomando conta do cara. (Karina vai se juntar a Helena e as duas somem.)

L: Eu não preciso de ninguém que tome conta de mim, não. Essa vagabunda que vai ter o que ela merece, é só isso.

DIOGO: Ei, não fala assim dela.

L: Você nem conhece essa puta!

DIOGO: Eu sei. Não conheço, mas não tem necessidade…

L: Então, meu irmão… Eu vou fazer… Claro que tem necessidade, eu vou fazer ela pagar.

DIOGO: Ela não é tua, você acha que ela é tua?

L: Eu não… Cala a boca, eu vou te arrebentar na porrada daqui a pouco, hem?

DIOGO: A Karina ficou horas longe, ela desapareceu completamente.

L: É você que se esconde atrás de mulher, você gosta de ser mandado? Você acha que tudo bem, se você encontrasse a tua mulher com outro você não ia querer matar a filha de uma puta?

DIOGO: Eu… Olha… Eu não sei como eu consegui segurar esse cara ali por tanto tempo, ele ia…

L: Eu quero matar. É claro que eu quero matar.

DIOGO: Daí que apareceu o Ludo.

LUDO: Eu moro aqui perto.

DIOGO: A Karina achou que você estava aqui desde o começo.

LUDO, distraído: É… eu... estava?

DIOGO: Estava?

LUDO: Ah. Mania. Eu falo por causa de como as palavras soam, eu acho.

DIOGO: Deve ser, é.

L: Eu já tinha esperado demais, eu sabia que tinha uma casa ali perto onde ela podia estar.

LUDO: Você sabia como, meu amigo, me fala.

L: Eu não sou teu amigo. Não interessa, eu sabia.

LUDO: É intuição.

L: Eu paguei um cara.

MANO, entrando: Eu queria só… matar esse cara!

DIOGO: Não, calma, não foi ele.

L: "Não foi ele" o quê? Do que é que vocês estão falando?

LUDO, para L: Você está no passado e ele já está no futuro, é isso que está acontecendo.

L: Não, eu sei, eu entendi, isso é uma peça de teatro e a gente está só contando essa história toda, né?, mas o que… passado? Por que "não foi ele", o que você está querendo dizer?

KARINA: A Helena desapareceu.

L: Não, espera, agora a gente está falando de uma coisa importante, aqui.

KARINA: A minha amiga sumiu. Ela estava comigo.

DIOGO: Então a Karina decidiu que tudo tinha sido culpa do Ludo.

KARINA: Ela… Para de narrar a minha vida! A Helena desapareceu um pouco antes desse cara aparecer.

L: O que é isso, você veio roubar minha cena?

DIOGO: A cena era minha, pra começo de conversa. Agora eu não posso mais nem narrar os acontecimentos.

KARINA: Uma mulher desapareceu e você só pensa no teu chifre.

LUDO: Você está falando de uma pessoa que não existe.

DIOGO: Vocês nem tiveram essa conversa! Chega disso! Não deu tempo dela dizer que a Helena tinha desaparecido, ela já voltou partindo pra cima do Ludo, brigando, a gente não entendeu direito o que tinha acontecido, mas foi aí que a Pâmela apareceu.

KARINA, mordaz: Com o amante?

DIOGO: Não… Ainda não logo de cara. Quer dizer, todo mundo esperava isso mesmo, mas no começo veio só ela.

MANO: Não, chega. Para. Isso precisa parar, eu não aguento. Eu… me desculpem, eu não quero reviver esse dia. Por que vocês todos se juntaram para relembrar isso? Que tipo de crueldade… (interrompe-se ao ver Pâmela. Ao longo das falas seguintes, ele vai mergulhando nas sombras, sem tirar os olhos de Pâmela, até desaparecer.)

PÂMELA: Eu não posso morrer, depois dessa tarde. Eu acabei de nascer.

L: Ah, mas eu vou matar essa vagabunda!

DIOGO: Não, calma, não foi assim que aconteceu, não foi isso. A gente não deixou ele chegar perto dela. Eu e o Ludo, a gente… Ludo? Cadê o Ludo? (Ludo não está mais em cena.)

HELENA: Você está falando de uma pessoa que não existe.

L: Alguém… Já chega! O que é isso, é um filminho da Disney? Comercial de margarina? É lindo olhar aqueles dois, o jeito que os olhinhos dele brilham ao olhar para a minha mulher. (Sacando a arma.) O que me impediu de sacar a arma naquela mesma hora? Eu não estava vivendo o personagem? Eu não tinha ódio bastante?

KARINA: Então a Helena voltou e a gente ficou em volta da Pâmela por um tempo, meio que protegendo ela, porque estava na cara que o L ia fazer uma idiotice a qualquer momento.

L: Eu devia ter atirado em vocês duas também. Ele… Olha lá, você não está enxergando? A tua mulher está apaixonada por aquela outra ali, você não está vendo? Você deveria dar um tiro na cara das duas também.

DIOGO: Não foi… eu… Olha, a tua mulher está sozinha, não tinha por que se preocupar.

(Pausa breve.)

L: Apaixonada por outra. (Luz se apaga, ficam somente as três mulheres.)

PÂMELA: Hoje eu decidi deixar meu marido. Foi uma coisa que ele disse sobre o dinheiro. E sobre estar certo. Ele disse que eram as únicas coisas que importavam: dinheiro e estar certo. Eu tinha recebido uma proposta em um ramo que ele desaprovava e ele disse que não ia dar certo, que eu nunca ia ter nada nessa minha vidinha de merda. Acho que foram essas as palavras que ele usou. E eu decidi que nunca mais ia voltar pra casa.

(Luz se apaga sobre ela e agora permanecem apenas dois focos sobre Karina e Helena.)

HELENA: É verdade? Você se apaixonou por mim nesse dia?

KARINA: Eu… Não, eu não sabia ainda. Eu acho. (Silêncio.) Não, eu acho que eu me apaixonei, um pouco, mas com tudo o que aconteceu depois, eu… (Pausa.) Eu estava completamente apaixonada.

(Apagam-se todas as luzes, exceto por um último foco, muito pequeno, no rosto de Helena, que é replicado em todos os telões, sério, a princípio, até que abre um grande sorriso.)

(Blecaute. Música.)

sábado, 6 de novembro de 2021


 

não estou à tua altura, quem me dera acompanhar teus dias e enxergar de perto cada pequena explosão de sentimento que te abala, andar ao teu lado em raciocínios sérios e xingar os idiotas que não nos entendem, acho que eu iria adorar a tua risada, adoraria poder rir contigo e que você me olhasse de frente e abrisse as portas e me recebesse como um igual e me contasse os teus segredos, mas não vai ter jeito, pouco importa as diferenças estarem num reino totalmente abstrato, que existam só em nossas cabeças, ainda assim elas se colocam como um abismo entre nós dois, teu coração vai até a borda e com medo de altura você acaba desviando os olhos, então aqui estou eu vendo que sou invisível e não gosto nem um pouco disso, não sei se um deus ou se um verme, mas nesse caso dá na mesma, quem me dera ser ouvido uma só vez sem que nenhuma razão falasse ao mesmo tempo no teu outro ouvido, sem nenhum alarme sem nenhum ruído o rio das nossas vozes misturando as suas águas frescas acabadas de sair da fonte, por sermos irmãos e por mais nada, mas então não pode, não devemos, nossos mundos não se encaixam por preguiça eu acho mas não vai dar certo, sinto muito, simplesmente não, nunca, melhor nem pense, nem queira e muito menos tente, porque se não sei lá o mundo explode o sol pifa a Via Láctea desaba


 


 

sábado, 30 de outubro de 2021


 

… se o nome daquela cidade tinha a palavra "porto" ou era um nome de santo… a tinta do canteiro descascava, era tão colorido, talvez ele já conhecesse pelo nome qualquer pessoa que pudesse estar passando por aquela rua àquela hora da tarde… se o nome daquela cor era fúcsia, se o nome daquela flor era dente-de-leão, por que sempre os nomes, ele não estava conseguindo pensar direito… dois anos… o nome da cidade, qual era o nome da cidade… ele não aguentava mais seu trabalho, ninguém no trabalho aguentava mais ele, dois anos em coma, a família não permitia que ele a visse, ele já não tinha mais lágrimas, duas ou três mil pessoas na cidade e nenhuma delas poderia fazer nada se ele chorasse… Dália, ninguém mais tinha estado ao seu lado quando o pai morreu, mesmo que não literalmente ao lado, quando tudo que ele via eram frustrações e abandono… como era possível que ele nunca tivesse decorado o nome da cidade, o mais próximo que conseguiu chegar de Dália depois de atravessar o Atlântico, tarde demais, havia dois anos… 

 … somando as sobras e os desaforos, anônimo, Afonso achava até que tinha durado bastante… 
 
...desceu até a praia quando começou a escurecer, latido de cachorros, cheiro de manga, aqui e ali um boa tarde como vai… quem sabe… a família não permite que ele a veja, foi ela que o salvou, agora ele não podia fazer nada, a alguns milhares de milhas de casa, por ela, sem ela, sem ninguém… sentou-se à beira da praia, a brisa era morna e salgada, as ondas não lhe permitiam o silêncio… um pouco antes, então, uns cinco anos atrás, quando ele entrou no site de paquera, e todo o tempo que levou até que Dália se transformasse na única pessoa que o ouvia e logo a única pessoa para quem ele contava tudo… mas tinham sido anos depois da morte da mãe, anos depois de sua separação e ao fim de um longo tempo em que ele não tinha o menor interesse por nenhum tipo de envolvimento emocional… ajuntou um graveto no chão, escreveu…




… mas se voltasse ainda mais e mais até o princípio de todas as coisas, não estaria também chorando ou sim, ou foi assim que nasceu Afonso, aos gritos… o nome daquilo que estava sentindo, os barcos dos pescadores, aquelas cores, em breve ele já não conseguiria mais sequer distinguir o verde e o vermelho, quem dirá o salmão e o âmbar… e o que mais só vai até o poente… as ondas, pensamentos recorrentes, a espuma que se extingue tão rapidamente, Dália, adormecida há dois anos, aquele isolamento absoluto… se uma garrafa, aquelas com mensagens, mesmo que Afonso não soubesse dizer se pensava naquilo porque gostaria de enviar ou de receber alguma, mal se lembrava do que fossem mensagens e não insultos, mensagens e não recusas, mensagens humanas e não hierárquicas… 

 … talvez… se ainda mais e mais e ainda tão longe no passado… talvez antes que houvesse o tempo, ou nomes e dálias que também fossem flores, só o que lhe parecia óbvio era que pensar tinha deixado de ser uma opção, fazia tempo, algo ancestral e só seu inundava, agitava-se, transbordava… então ele também era a maré, seria sempre, mas então por que também para sempre aquela mágoa estanque… e se ele não voltasse nunca mais… e se ele não voltasse nunca mais para lugar nenhum...


 

sábado, 23 de outubro de 2021


 

O dinheiro tocou às seis e quarenta e cinco, já era dia claro. Levantou-se, tomou um café, arrumou os cabelos, vestiu o seu melhor dinheiro. Embarcou no dinheiro às sete e vinte e três, achou que teria tempo de sobra, estava enganada. Distraiu-se com os dinheiros na internet, tutoriais de como aplicar dinheiros postiços, desfiles de dinheiro, o último dinheiro daquele seu dinheiro preferido. Só se atrasou quatro minutos porque foi correndo feito louca desde o terminal até o dinheiro. Mas mesmo assim, seu dinheiro olhou de cara feia, é a terceira vez só este dinheiro, você não tem mais dinheiro na cara. Passou o dinheiro inteiro tendo que aguentar o deboche e o sarcasmo de colegas que a odiavam gratuitamente. Fazer o quê, talvez ser alguém na vida não fosse o dinheiro dela. Talento ela tinha, só faltava dinheiro. Achou sinceramente que não teria dinheiros pra chegar em dinheiro aquela noite, sentia que havia sido sugada até a última gota do seu dinheiro. Quando encostou a cabeça no dinheiro pra dormir, nem percebeu a lágrima caindo. E deslizou pra dentro de um sono denso, profundo e sem dinheiros, bem longe das mágoas, bem longe da melancolia que esmagava o seu dinheiro.


 

sábado, 16 de outubro de 2021


 

Naquela 
tarde
eu estava triste, achei que eu queria morrer
ou que eu estava desaparecendo no

...

(Música melancólica. Um quadro imóvel: o sol se pondo sobre as águas. Tempo.)

...

Devia ter uns seis ou sete anos. Puxou a cadeira ao meu lado, sentou-se e começou a falar como se fôssemos velhos conhecidos, me chamando de amigo. Conversa séria, olha aqui os meus cadernos da escola, a minha carteira de vacinação, os dinossauros desenhados. O pai esticou o pescoço por cima do balcão dizendo filho para de incomodar o cliente. O menino olhou para o pai em silêncio, depois para mim, de volta para o pai e disse eu gosto de cliente. Quando a minha comida chegou, foi até a cozinha e trouxe de lá um grande pedaço de pão e um copo com água, sentou-se outra vez ao meu lado e continuou a conversa, me acompanhando por todo o jantar. Seu nome era Santiago, meu amigo.


 

sábado, 9 de outubro de 2021

Sólido, se move, é lógico, mas sente. A gravidade tocando a pele, enquanto algum vulcão imaterial emerge nos gestos. Variáveis demais e improbabilidades, mosaicos de milhares de camadas mais ou menos formando uma imagem que alguns chamarão de caráter, outros, de personagem. Névoa, nada mais que um vulto da totalidade incomunicável, a unidade alongada no tempo, reconhecida no instante e às vezes diversa, dispersa, díspar. Tentando permanecer, tentando alcançar, tentando. Acumulando passo a passos. Engendrada em seus padrões, mas toda ela massa, música, eletricidade. Lábios e mãos. A impressão de que a existência pesa, embora um êxtase. De que o mistério se revela em susto, embora nunca acabe.


 

sábado, 2 de outubro de 2021


Mas se nasci, já compreendo que crime cometi, porque o crime maior do homem é ter nascido.”

(Calderón de la Barca)


 

Há uma lenda segundo a qual o império inca surgiu às margens do Titicaca, mais precisamente onde hoje está localizada a cidade de Puno, no Peru. O lago está na fronteira entre o Peru e a Bolívia, espelhando o céu bem de perto, a quase quatro mil metros do nível do mar. Meu primeiro contato com ele foi justamente em Puno, onde peguei um barco para ver as Ilhas Uros, ilhas flutuantes povoadas por indígenas que também se chamam Uros. Em cada um daqueles quadrados de terra coberta de palha mora mais de uma família, flutuando à margem do Titicaca. O líder do conjunto que visitei contou que seus antepassados deixavam as ilhas soltas pelo lago, mas que hoje eles já não podiam fazer isso porque correriam o risco de ir parar acidentalmente na Bolívia e acabariam todos presos por falta de passaporte. Não sei se ele estava brincando, algumas pessoas riram, no mínimo era absurdo, mas achei mais triste que engraçado. Eu estava fascinado pelo que via, imerso em uma sensação de pura mágica, e bem que gostaria de me deixar ir com uma daquelas ilhas para onde já não houvesse mais nenhum império.


 

“Não nasceram também todos os outros? 

Nasce a ave, e, embelezada por seus ricos enfeites, não passa de flor de plumas, ramalhete alado, quando, cortando veloz os salões aéreos, recusa piedade ao ninho que abandona em paz. 

E eu, tendo maior alma, tenho menos liberdade?”


 

sábado, 25 de setembro de 2021





 

...





 


 


 

Hoje. Faltou ar. As queimadas, a gente via, quando passava pela estrada, campos carbonizados. Setembro no cerrado, o rastro da seca, o amarelo e o preto, hoje era sem respirar, nas cinzas. Cinzas turvam a luz. O fogo, as cinzas distorcem a luz, o fogo derrete as forças. Sem ar, sem mal poder ir. O sol se pôs na fumaça, bem antes de tocar o horizonte.

sábado, 18 de setembro de 2021



(Quatro palcos dispostos em relação ao público de modo que cada espectador seja obrigado a girar sobre seu próprio eixo para observar todos eles. Entre os palcos, tablados alternativos e telões projetando imagens de outros palcos, de modo que os espectadores não sejam obrigados a ficar girando para acompanhar o que acontece em todos eles, simultaneamente.)
PRÓLOGO

(Em um dos palcos, estão L e Pâmela; em outro, Karina; em outro, Ludo; em outro, Mano. Diogo está em um tablado alternativo e transita para o palco em que está Karina. Tudo o que Ludo e Helena falam no Prólogo é dito ao microfone, localizado no palco em que Ludo está inicialmente, mas nunca, em toda a peça, ele e Helena aparecem juntos. Para se trabalhar a musicalidade das falas, deve-se observar, ao longo de todo o texto, os momentos em que elas possam ser ligeiramente sobrepostas.)

PÂMELA: Você se lembra de como era estar presenciando um milagre?

KARINA: De novo! É a voz dela!

MANO: Milagre? Você ainda chama aquilo de "milagre"?

LUDO: Alô, alô. Som, teste.

KARINA: É ela, só pode ser. E falando em milagre.

MANO: Fala! Por que isso, agora? Você quer o quê?

LUDO: A. A. Som, testando, um, dois.

KARINA: Eu preferia até que ela não tivesse usado essa palavra. É horrível.

MANO: É me enlouquecer, que você quer? Aparece!

LUDO: Teste, som. Helena, você está me ouvindo? Alô, Helena? Um, dois, teste. A. A.

DIOGO: Isso precisava parar em algum momento.

LUDO: Eu ainda não consigo entender direito, eu não sei se eu acredito em você.

DIOGO: Isso precisa parar. Isso vai parar.

LUDO: Helena. Isso é tudo sobre você.

DIOGO: Mas como que você coloca ordem em um milagre? Uma coisa que precisa romper com tudo aquilo que você considera possível existir.

LUDO: E eu sinto como se… eu pr... você... devia estar aqui.

PÂMELA: É só isso que é importante pra você? É só o dinheiro?

L: Estar certo, também.

PÂMELA: E quando você pretende começar?

DIOGO e LUDO: Tudo começou em uma tarde de primavera há alguns anos, perto do mar, um fim de semana agradável, uma coincidência agradável reuniu este grupo improvável de pessoas, corpos entulhados de pensamentos, sentimentos, tempo, mas as pessoas que chegaram lá eram outras, elas ainda podiam acreditar que a realidade é só isso que nós podemos ver, tocar, medir e encaixar em algum sistema lógico, nenhuma daquelas pessoas voltou, levamos todos esses anos pra descobrir, ainda nem sei se já descobrimos tudo, se existe mesmo isso de descobrir tudo, mas é por isso que eu vim aqui hoje, é por isso que eu estou falando com você, esta é a minha história e ela ainda sangra como uma ferida aberta, isso precisa parar em algum momento, isso vai parar.

PÂMELA: E quando você pretende começar?, eu deveria ter dito.

KARINA: É ela, sim, tenho certeza. Isso não para.

MANO: Foi assim que isso começou. Foi assim que você disse.

KARINA: Você lembra o nome dela? Carla? Clara?

MANO: Como é que eu poderia esquecer?

KARINA: Eu acho que ela tinha tantos nomes… Verônica, Valentina…

MANO: Meu amor. Você está aí? Pâmela.

KARINA: Pâmela. O nome dela era Pâmela.

MANO: Você está aí?

HELENA: Sim, eu estou aqui. Eu sempre estive aqui. Você não me enxerga aqui, é isso?

DIOGO: Você precisa de ajuda.

KARINA: Eu posso muito bem lidar com isso sozinha, obrigada.

DIOGO: Meu amor, você tem ouvido vozes e isso está te fazendo mal.

HELENA: Tem que ter uma explicação lógica pra isso tudo.

KARINA: Eu quero voltar para lá, Diogo. A gente precisa fazer alguma coisa.

HELENA: Às vezes eu acho que eu morri.

DIOGO: Ela está morta! Faz anos! O que você acha que tem pra ser feito?

KARINA: Eu preciso descobrir, Diogo . É o único jeito.

HELENA: Ou… eu devo ter vivido um sonho. Não sei onde que fica a explicação lógica, ainda.

KARINA: E se você não quiser vir comigo, eu vou sozinha!

DIOGO: E aí eu fui. Claro. Pra dentro de um pesadelo, direto pra onde eu seria despedaçado, por que não? Isso não podia mais continuar, era a mulher que eu amava! Era a mulher com quem eu achei que passaria o resto da minha vida.

L: Você não vai. Fui eu quem te deu isso. Você nunca mais vai conseguir nada nessa tua vidinha de merda.

MANO: Sim, foi assim que começou. Pâmela. E você veio até a minha casa.

L: Você nunca vai ter nada!

HELENA: Isso precisa parar! (Silêncio.) Alguém… alguém poderia contar essa história direito?

DIOGO: Era o que eu estava tentando fazer aqui, mas você tinha que atrapalhar tudo.

KARINA: Helena?

HELENA: Oi!...Oi, é você?

DIOGO: Tudo! Tem que atrapalhar tudo!

KARINA: Eu vou te encontrar, Helena. Eu não vou deixar que nada aconteça com você. Não como aconteceu com ela.

DIOGO: Como eu estava contando. Direito. Como eu sempre estive.

LUDO: Eu vou te encontrar, Helena.

KARINA: Helena?

DIOGO: Era tudo sobre Helena. Eu deveria ter visto já naquela noite. Eu tinha concordado em voltar com a Karina pra onde tudo tinha acontecido. Eu não sei por quê, eu sentia que era o que eu precisava fazer. Ajudar a Karina, minha mulher. Ela não estava bem, ela estava ouvindo vozes, vozes de outras mulheres, a voz de uma mulher que tinha morrido.

KARINA: O nome dela era Pâmela.

L: Ninguém quer ouvir essa história. Você nunca vai ter nada.

(Longo silêncio.)

PÂMELA: Você se lembra. Você se lembra de como era estar presenciando um milagre.

(Blecaute.)

PÂMELA: Você sabe que é isso que está acontecendo agora?

HELENA, ao mesmo tempo: Você sabe dizer o que está acontecendo agora?

DIOGO, ao mesmo tempo: Quem está falando agora?

(Música. Cenas de praia nos telões enquanto passam os créditos iniciais.)