terça-feira, 25 de dezembro de 2018

Banco pra esperar as paralelas se cruzarem

em Belém do Pará.
– Não posso dizer que sou uma grande fã dos Engenheiros do Hawaii – disse Eva – mas tem lá umas letras deles que eu gosto.

– Por exemplo? – perguntei.

Ela não demorou muito pensando.

– “As coisas mudam de nome, mas continuam sendo o que sempre serão” – cantou.

Aqueles poderiam ser uns dos meus versos preferidos, também, mas naquela tarde, não tinham muito a ver comigo. Desde que havíamos chegado ao Norte, eu tinha a impressão de que estávamos em outro mundo – um mundo que até então eu nem imaginava que existisse. Estava imerso naquela sensação e apaixonado demais pra concordar com ela.

– Tem um poema do Drummond – lembrei – que fala das viagens espaciais e de como o homem vai explorando, conquistando e colonizando o espaço, lembra disso? Colonizando tudo, se espalhando pelo Universo, até não ter mais lugar nenhum pra ir.

– Sim – disse Eva. – Até que a única coisa que reste pra explorar e conhecer seja o próprio homem.

Fiquei em silêncio por um instante, pensando naquilo tudo e deixando os pensamentos me levarem.

– Acho que nunca mais vou morar no Sul – contei.

Foi a vez dela ficar em silêncio. A questão retomava algumas conversas que tínhamos tido antes, em que ela criticava os sulistas pela cultura muito branca e burguesa, uma ilusão de se estar na Europa e um ar nojento de superioridade em relação ao resto do Brasil. Palavras dela. Entendi que ela não tinha mais nada a acrescentar sobre o assunto, então continuei:

– Às vezes, queria que o Sul não estivesse tanto em mim, também.

Ela sorriu.

– Longe, longe, longe aqui do lado – disse.

Confirmei com a cabeça, um pouco triste. Nossos pensamentos também têm sotaque, e eu não queria mais pensar em nada. Queria mesmo era ser refeito pelas águas do Amazonas. Queria mesmo era que aquelas gentes me reinventassem.


terça-feira, 18 de dezembro de 2018



(Diários de Machu Picchu #11)
Esse desfile de mesquinharias. E aplausos. Refiz os cálculos, como todos os dias, outras doze horas de suor e as pedras que rolei até aqui em cima acabaram de despencar outra vez. Mas tem um carnaval de brilhos bobos escorrendo pelas ruas feito esgoto em que as crianças brincam. Anos. Anos de sonho e de sangue e de sangue e de sangue nos pés e nas mãos e nas costas e quantas vezes nas lágrimas, por nada, só por continuar sangrando. E aquele prêmio pra mais um covarde, o mais hipócrita eleito, os holofotes todos ligados sobre o mesmo velho pedestal de prepotência e descaso. Luto. Lapidando as pedras, versos e vazios, mas sozinho e não pelo que te falta de mim. Não, e por mais que eu me esforçasse, nada do que eu toco se transforma nesse ouro de tolo, nada que se possa esculpir com luares chega ao mesmo altar desses ídolos de barro e cuspe. Um desperdício de não termos menos que dez mil anos de idade. E o meu cansaço. Tanto. Tão nosso e tão menosprezado meu cansaço, naufragando os intervalos.

terça-feira, 4 de dezembro de 2018


no alto da 3ª ponte eu disse meu deus como é pequena a vida de um só
lá embaixo os prédios / no ônibus corpos tentando se equilibrar sem se tocar muito
sapateiros procurando emprego, porteiros, eu querendo aprender a poesia dos estivadores
ontem parei pra fotografar ao pé de uma escadaria apareceu um morador do bairro me olhando assustado
você é brasileiro ele perguntou olhando pra câmera
você vai fotografar aqui ele perguntou olhando preocupado pra uns caras na escadaria
vitória não é de ninguém
sentei pra comer um cachorro-quente numa praça e tinha lá uma galera do hip-hop reunida
mandando um papo reto / rimando / cantando “eu ouço muito por favor e muito pouco obrigado”
perdi a conta dos muros em que alguém pichou “vivi pouco / sofri muito”
e eu que vivi um bocado
sofri um bocado e nunca pichei um muro
de repente só queria ter amor e ser amor pela favela
quando embarcaram duas garotas meio bêbadas cantando alto sobre o sexo
a agressividade do funk / as mais pedidas do espírito santo
ninguém se meteu com elas
perto delas minha poesia é pra bebês
ga ga nhenhém bvvvvv é-aaah
eu estava escutando mas o cara do meu lado se aborreceu parece
colocou fones de ouvido
e escolheu um funk mais do seu agrado


terça-feira, 20 de novembro de 2018


Eu me feri porque fui humano, ainda cometo muitos erros, nem sempre há esperanças, nem sempre nada me contém. Mas me deixe esquecer disso tudo hoje à tarde, eu sei do que e do quanto eu posso ser, aceito o que não tenho, não te peço amor, não te peço que me faça deus, nada vai mudar o fato de que eu sangro. Perdi porque estive sempre à procura, morri todas as vezes que as minhas forças me deixaram, de vez em quando, só, foi que depois de morrer encontrei outras. Não penso que estar vivo é um fardo, ofereço o melhor que posso, às vezes até mesmo tudo que possuo. Agora me deixe quieto, não tente, as águas estão sujas pelos que passaram revirando a terra do fundo, a ventania meio que despetalou o meu telhado, algumas sementes não vingaram, frutos apodreceram, corações demais foram despedaçados. Só me deixe em qualquer canto, não importa, a salvação é essa e eu não preciso de mais nada, mas te agradeço se ficar por perto. Mas te agradeço se me fizer uma prece, assim como agradeço pelo tom exato de silêncio. Lá fora é um engano, uma queda, o meu corpo inteiro é um grande desencanto. Não quero. Não minto. Falhei porque sou homem, estou chorando porque já não sou criança. É inevitável, eu sei, bem mais do que um direito. Mas, mesmo assim, qualquer perdão é um descanso.


segunda-feira, 12 de novembro de 2018


queria que o tempo se desfizesse, ela escreveu.

Era isso. Ela estava jogando. Ele estava tentando se aproximar dela havia meses, com o maior cuidado – ela com o coração ferido e fechado por um mau relacionamento recente – e agora ela estava fazendo o Jogo das Grandes Frases, sobre o qual ele tinha falado uns dias antes. Estava na rua, mas parou ali mesmo pra responder, parecendo meio bobo pra quem passava, digitando com um sorriso mal disfarçado:

coragem é morrer como árvore

E foi naquele exato momento que começou a chover. Correu os olhos em volta, viu que o abrigo mais próximo estava longe e que ele tinha que ir depressa. A chuva ia ficando mais forte e o vento estava arrastando lixo e folhas mortas pelas ruas de Porto Alegre, era outono, fazia frio. Logo que ele chegou ao abrigo, sentiu o celular vibrando no bolso. Pegou, rápido, pra olhar e leu:

O amor é sempre o primeiro a ser sacrificado.

Não entendeu o ponto final e o começo em letra maiúscula, será que ela queria dar um peso maior à frase, será que acreditava mesmo naquilo? Ele não acreditava. Ou não queria acreditar, o que, pra todos os efeitos, dava na mesma. Eu tenho um templo comigo, estava digitando, mas depois apagou, sentiu o vento batendo no rosto, pensou "são quatro horas da tarde e ela está no horário de trabalho jogando o Jogo das Grandes Frases comigo". Respirou fundo.

quero morar pra sempre em Porto Alegre, escreveu. Já tinha apertado o “enviar” quando pensou em outra, que decidiu mandar mesmo assim, porque achou melhor que a primeira:

às 7 horas vou te dar uma rosa

Estava olhando quando as duas mensagens foram visualizadas. Acompanhou enquanto ela digitava uma resposta, esperou, esperou bastante tempo, depois teve que esperar mais um tempinho. Abaixou o celular e voltou a olhar pra rua inundada pensando em quantos ônibus teria que pegar, onde encontraria uma rosa no caminho da casa dela, como faria pra se proteger daquele frio e daquela chuva. O celular vibrou em sua mão e ele ergueu depressa pra olhar, curioso, mas depois de todas aquelas horas digitando, ela tinha mandado apenas um:


E ele, claro, abriu o sorriso mais largo.


terça-feira, 6 de novembro de 2018

Enquanto eu feito de poesia não vejo.
A noite me absorve, alguma coisa não resta.
Mas se essa rua me arrasta, eu erro.
Cigarro amassado no bolso da roupa de festa.

A lua, ela sim. Mas eu um poço de mágoas.
A santidade me cansa. Chegar é muito longe.
Você não me perdoa defeitos que também tem
E que eu nunca disse que eu não teria.

Ou talvez não devêssemos ter bebido tanto.
Amanhã nunca foi quando, estou com sono, este verso é muito comprido e isso me deixa mau humorado.
Esmagado. Mas lembro. Apenas eu e quem estava do meu lado é que sabemos
Quem realmente estava do meu lado.

segunda-feira, 29 de outubro de 2018



(Diários de Machu Picchu #28)
Eu vejo a sala de um apartamento milionário no alto de um prédio, aquelas janelas do chão ao teto e de uma parede a outra, uma decoração limpa e sofisticada, um grande vazio frio e silencioso, e eu vejo um homem parado ali, segurando um copo de uísque e olhando a cidade triste, triste ele também, oco, inalcançável e irredutível rei de porra nenhuma, bebe, esvazia o copo de um gole, as ruas lá embaixo parecem agitadas, tão longe, todas tão minúsculas e miseráveis aos pés daquele homem tão pequeno em sua sala sem fim, uma corrente elétrica sobrecarregada de carne e de vontades incontroláveis perpassa as ruas da cidade, hordas de pequenas bestas primitivas entrando em choque, o homem vai até o balcão encher seu copo, enche até a borda, esvazia no que parece um só gole, as ruas são tomadas por facas e metralhadoras cegas sendo disparadas, gritos surdos e gemidos que não chegam até ali, tão alto, o homem deixa o copo e começa a beber direto da garrafa, o sangue está cobrindo o asfalto, o homem vai até a janela e vê, um rio de sangue literal e quente está correndo sobre o asfalto, rápido e voraz, vai arrastando os carros e arrancando as árvores dos canteiros das calçadas, correndo e crescendo e ficando cada vez mais alto, o homem bebe, o sangue já cobriu as casas, está cobrindo agora os prédios baixos e subindo, a eletricidade acaba, o homem esvazia a garrafa, o sangue chegou à sua sala e continua subindo depressa, o homem quase não enxerga nada, mal sente, amortecido pelo álcool, quando o sangue entra em suas narinas no lugar do ar, quando ele inunda seus pulmões e quando a sua consciência apaga.

Não me pergunte como eu sei que a consciência dele apaga, mas apaga. O sonho se repetiu já algumas vezes, como pesadelo, e no começo eu costumava acordar nessa hora, com medo, sem saber direito onde estava. Até que parei de acordar. O sonho ainda acabava ali, mas ao mesmo tempo, não.  Eu não podia ver mais nada, nem sentir, mas comecei a perceber a existência de um som longínquo e ininterrupto, uma sequencia de pancadas secas e abafadas, que das primeiras vezes me pareceram um coração batendo, mas que logo identifiquei como um tambor, depois tambores, depois tambores e chocalhos e apitos até se tornarem a bateria de uma escola de samba, transbordante, incontrolável, derramando a sua pura força e muito aos poucos se tornando imagem, pequenos pontos de luz sem forma se juntando, aqui e ali, até se parecerem a uma estrada.

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

te falta uma demora, homem.

e um não saber, mais do que tudo. se tanto, esse compreender descalço, meio que de remanso. te falta uma amplidão pra dentro, um coração de hiperespaço.

um tanto falta o não ser máquina e nascer menos de asfalto, arranhar menos céus, ter menos cifras, parar. só parar. por enquanto, um pouco, um respirar profundamente, só por aprofundar, até tocar o caos de onde tudo pode vir e ver pra onde.

em que pulso.

te falta a sombra de um jambeiro, homem.


domingo, 21 de outubro de 2018



Era uma despedida e por isso a voz triste
Não tem como abraçar o fato de que fui feliz por conta própria
As ruas da madrugada a sensação de não saber mais muito bem o que é cidade o que é sonho
O silêncio na praça cheia de gente enquanto alguém cantava os números do bingo
O ar abafado a água fria do banho os banhos de rio no meio de uma tarde quente onde todas as tardes são quentes
Não tem como abraçar essa vontade que eu tive de ficar mais tempo
O velho que atravessou a rua pra falar comigo e que me chamava de Meu Curumim
Os curumins que me falaram da festa em janeiro e de peixinhos coloridos e dos sonhos que tinham com viagens pelo mundo
Conversas do cais, de barcos e barqueiros e animadas praias de areia muito branca na outra margem
Uma caixa térmica numa janela uma família entre tantas famílias vendendo dindin a 50 centavos
Nem me lembro do que foi
Que a dona da hospedagem perguntou enquanto apertava os botões de uma calculadora, mas
Quando respondi que sim
Ela levantou os olhos
Falou Você me disse um sim tão triste
E não eram as despesas
Não tinha como abraçar a dona da hospedagem do outro lado do balcão
Era uma saudade antecipada
Quando é que você volta? – ela me perguntou
E a única coisa que eu tinha vontade de responder era
Agora

domingo, 14 de outubro de 2018


Fiquei olhando enquanto ela traçava a linha preta embaixo do olho, diante do espelho, concentrada, as luzes do camarim colorindo tudo de maneira tão intensa. Seus lábios se moviam com o que imaginei que fosse o texto da décima quinta cena, mas nenhum som saía de sua boca. Jéssica sempre confundia as falas dela na décima quinta cena, mesmo depois de milhões de ensaios. Nós que dividíamos o palco com ela nessa hora já sabíamos improvisar sobre dez ou doze possíveis erros seus, silêncios de esquecimento ou ataques súbitos de tosse. Enquanto Jéssica se maquiava, naquela noite, um pouco antes da nossa estreia, o nervosismo era uma correnteza densa no ar do camarim, zumbindo mais que as lâmpadas, insustentável leveza sobre os nossos ombros.

 Eu tenho essa lembrança da infância – ela falou, de repente. Era o começo de um diálogo nosso da oitava cena. – Sabe aquelas ameixinhas silvestres, amarelas, com uma casca meio aveludada?

 Sim. Conheço. Um colega meu tem um pé delas numa chácara. – Fiz um silêncio breve. Em cena, de frente pra mim, Jéssica ocupava essa pequena pausa me lançando um olhar curioso. Ali, no camarim, mal desviou os olhos de sua maquiagem. – Ele me trouxe algumas, uma vez – continuei. – Faz muito tempo. Também é uma fruta de que eu só me lembrava na infância.

Naquele instante, outro colega de cena apareceu pra dizer que o diretor estava chamando, no palco, que já estava na hora, que logo eles iam liberar a entrada e que tinha bastante público esperando. Desapareceu logo em seguida, quando Jéssica terminava de organizar os lápis e pancakes sobre o balcão e eu tirava do cabide o sobretudo pesado e quente que era obrigado a vestir na primeira cena. Começamos a nos dirigir pra fora, um pouco apressados e em silêncio, mas assim que atravessei a porta do camarim, Jéssica estancou, de cabeça baixa, um passo antes de sair. Virei-me pra ver o que tinha acontecido, mas ela só estava ali, parada, com os olhos meio tristes voltados pra baixo.

 E se ninguém gostar? – perguntou. Levantou pra mim uns olhos molhados de lágrimas, duas gotinhas trêmulas ameaçando a linha preta debaixo dos olhos, mas antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, ela riu, uma pequena risada ainda meio triste, agitando a cabeça como pra arrancar a ideia dali. – Deixa pra lá, vamos logo, de uma vez – disse, agora olhando decidida pra mim e estendendo a mão pra segurar a minha. – Essa pergunta nem vai estar aqui quando a gente voltar, mesmo.

quinta-feira, 4 de outubro de 2018


luzes vorazes cegueiras tantos
pontos
de vista que eu não sei mais ver
ou vejo muito além
ou nem

canção nos ares eras e aquários e
surdez
gritos e silêncios e declarações de amor
mudez nudez
sombras de sons

pálidas mãos de lua cheia alcançam pés que eu te beijo e não
pele e permissões da estação
sensação e só
de flor
de água

madrugadas e manhãs e doravantes ontens e depois
onde o sentido se faz
de que fonte que ele jorra
com que carinho com que paixão
com
que
com
pai
xão


domingo, 30 de setembro de 2018



Um pouco depois das nove, entrei em casa, larguei as sacolas e a bolsa ali mesmo no chão da sala e desabei no sofá antes que Ernani aparecesse e dissesse “boa noite”. Não era bem que eu estivesse triste, mas de certo modo era, sim, uma mágoa de existir, só que mais quieta, meio que o leito seco de algum rio antigo. Ernani prometeu café e me deixou ali sozinha por uns bons quinze minutos, tudo que eu queria, não, talvez eu quisesse um pouco mais que quinze minutos, ficar ali deitada de olhos bem abertos sem saber mais nada além de teto e ruídos vindos da cozinha. Por que meu Deus tantos personagens sou lá fora onde eu estou agora fui eu ou Ernani quem descalçou os meus sapatos?

O cheiro do café me alcançou depressa, mas o ânimo que ele sempre despertava em mim, dessa vez, não despertou. Se eu voltasse à vida, se eu recobrasse a consciência da minha vida, estaria chorando e não gostava de chorar assim sem forças. E não que eu estivesse em paz, então, imóvel, só não dançava mais com as tempestades internas – e eram todas internas. Ernani chegou com a caneca cheia no instante seguinte, como se o tempo tivesse dado um salto, ou então nem percebi que eu cochilei, “obrigada”, não, talvez eu não tenha dito “obrigada” em voz alta, eu era só um estender as mãos e me sentar e trazer pra mais perto aquele cheiro quente, uma, duas assopradinhas, a segunda demorando até acabar o fôlego, pouco fôlego, um gole, deus do céu como está bom. A expressão de Ernani, me olhando, era uma interrogação delicada, desviando depressa o olhar. Você está bem? Não, é claro que não estou.

Quase falei “estou cansada de mentir”, mas aí me ocorreu que, se Ernani me perguntasse “então qual é a verdade”, eu sinceramente não saberia o que dizer.


sábado, 22 de setembro de 2018

se                                     não, esse não é um bom começo

terá que haver um dia de uma compreensão tão límpida

Se você estiver nascendo agora, vai ter que crescer muito rápido em muito pouco tempo. Não são só palavras de chumbo ou são nuvens de chuva, um jeito estranho de falar, um mundo de olhos bem abertos sobre você esperando rápido agora e você ainda nem ontem.

Então quando um passo ou dois passos quando era ainda o chão porque era perto a gente se enrolava em se rolava e laraiá lará laiá. Na sala ou se na lua ou sei lá eu mas entender foi sempre que na carne e sim de tanta gente ser e de existir envelhecendo então que apenas pernas e que estradas indo e que ter corpo indo e indo e indo e indo ir

Haverá um dia. Ou dois, ou toda a eternidade em que amadurecidos só recordaremos e repetiremos e re-rediremos o que ressabemos tanto e tão de novo que de novo mesmo pensaremos que não há mais nada porque nunca houve mesmo e mesmo que a verdade seja que haverá esse dia em que seremos tanto e tão ressidos que então quase desfazidos e quem sabe em prantos só renasceremos.

domingo, 16 de setembro de 2018



Ainda não enxergaram. Estão imersos em si mesmos e não veem. E não percebem absurdos e contradições em seus discursos. Mantenha a espinha ereta ao atravessar o território dos comentários hostis; respire fundo: ficaremos sozinhos se não quisermos agredir ninguém (e não queremos). Teremos que esperar pelo último trem antes da aurora. Conta as moedas: cara fome, coroa um cigarro. Precisava mesmo era de muito mais que só um abraço, mas tenho que reconhecer que é um ótimo começo. Vimos quilômetros e mais quilômetros de campos férteis em almas condenadas pelo descaso – e ainda nos obrigarão a ver safras inteiras desperdiçadas, apodrecendo em inércia. “Quem ganha com isso?” é uma boa pergunta, mas ainda: “Ganha o que?” e “É isso mesmo que é ganhar?”. Nenhum de nós acredita que seja.

Ajeita a mala como um travesseiro, o chão vermelho e sujo da estação nos empurrou até este canto, os aposentos da realeza. Em nada caberão nossos bons sonhos. As luzes são muito fracas, ou piscam, agonizando, e de vez em quando um telefone toca. Enquanto os senhores da História estão ocupados demais pra entender os estragos que sua cegueira faz lá fora. Mas tudo bem: nenhum outro lugar será descanso. Em mil anos, ainda não terá se esgotado essa má vontade toda, nem a desesperança.

Dorme, não há mais nada a fazer agora. Esse ruído, esse ar pesado vem das cenas de um filme ou de um pesadelo, e só. Boatos de que a primavera não virá, nem risos, nem amigos, nem alívio. Nossa ternura já não contamina, povoará a Terra com ausências. Teremos vencido sem orgulho e sem nunca termos banido os ratos, e tudo de que saberemos é do amor. Alguns diriam “pelo menos isso”.

Dorme.

domingo, 9 de setembro de 2018




Às vezes o agora
É um agora em excesso
Ilha deserta no oceano
Uma canoa furada
Às vezes o agora
É demais de agora mesmo
Algum soluço engasgado
Um prato cheio pra fome
Às vezes é agora
Tanto que agora é tão tudo
Que é como se não estivesse
Que aperta um nó de estar sendo
Às vezes agora
E agora que é as vezes
Parece que não passa nada
Ou que é pra sempre o que passa