sábado, 31 de dezembro de 2016
Ah, mas também existe lá fora um mundo acolhedor e generoso, sem rir do
teu medo. Mas também existe no vale das sombras e da morte um rio de águas
limpas e pequenos portais camuflados que nos levam direto a um paraíso vivo. Ah,
mas também existe Deus fora dos templos – e ainda muito além de todas as
certezas sobre Deus, assim como essa linha invisível costurando o caos até que
ele caiba no fato de termos sobrevivido. Mas também existe uma ponte até o
outro nas profundezas do orgulho. E mãos estendidas, e pêssegos, e melodias que
nos fortalecem. Ah, mas também existem os que ainda escutam. Mas também existem
arquitetos de afeições, e ainda temos a matéria-prima de que eles precisam, e
ainda a temos de sobra. Ah, mas também existem céus subterrâneos. Ah, mas ainda
existem céus, mas também existem os que ainda enxergam.
sábado, 24 de dezembro de 2016
Andei entre assassinos e ladrões e
corações arrependidos ou indiferentes
Homens honestos à minha volta
derramaram suor e levantaram as mãos em prece ou em fúria
Ou em preces enfurecidas porque seu
suor não deveria correr tanto nem valer tão pouco no final dos meses
Andei entre as crianças distraídas
com seus jogos eletrônicos ou escalando as árvores dos seus quintais ou das
praças
E entre os hippies artesãos ou músicos
que coloriam as praças antes de desaparecerem outra vez na estrada
Ciganos e índios nômades já tantas
vezes acamparam à beira dos rios ou nas montanhas da minha cidade
Andei com eles pra bem longe e bebi
de suas taças e dancei com eles ao redor de suas fogueiras
Mas também parei pra ouvir o sermão
choroso dos pastores combatendo impronunciáveis inimigos invisíveis
Nos bancos à sua esquerda os homens e
à direita as mulheres com as cabeças cobertas por véus brancos
E repeti com eles Amém Jesus Glória a
Deus Aleluia Senhor Misericórdia
Andei por entre os padres e xamãs e
bruxas e girei nos terreiros com os braços abertos pra Oxalá e os Pretos Velhos
Meditei com os monges budistas e
escrevi cartas assinadas por espíritos e com os céticos eu concordei sobre
todas as dúvidas
Dos filósofos até os neurologistas
fui bebendo a história de com quais convicções desconhecemos a nós mesmos
Mas segui os manuais do bom
comportamento nos bares mais sujos assim como nos salões mais perfumados da
alta sociedade
E transgredi todas as regras que me
pareceram inúteis se ninguém era prejudicado e eu queria alguma coisa do outro
lado delas
Andei por todo o mundo e não vi nada
além de pessoas interpretando o mundo até que ele ficasse igual ao que elas
acreditavam
Não acredito em ser humano algum que
por razão alguma se diga maior melhor mais qualquer coisa que outro ser humano
E acho que se todos não
acreditássemos nisso já seria um ótimo começo
Mas nunca levantei a voz dizendo você
deve fazer isto e não aquilo que o seu coração achar que é certo
A única bandeira que eu defendo é
branca
E mesmo essa às vezes me parece um
exagero
Como um motivo pra guerra
domingo, 18 de dezembro de 2016
No
final do meu segundo ano em Brasília, já tinha entendido muito bem por que a
cidade tem uma das maiores taxas de suicídio do país. Verdade que eu era muito
jovem pra enfrentar aquela aura absurda de poder e arrogância, um misto de
raiva e indiferença dando o tom de um espetáculo do qual eu não sabia nem
queria fazer parte, mas mesmo agora, depois de tanto tempo, duvido que eu
tivesse disposição pra me colocar outra vez no meio daquele circo. As
distâncias, pra resumo da história, eram o que me fazia tomar a decisão que
estava tomando agora de partir: distâncias entre as almas, bem menos
arborizadas que os grandes espaços vazios que surgiam, às vezes, entre uma
quadra e outra da cidade, dando a súbita impressão de que ela desaparecera e
estávamos sozinhos e perdidos no meio do deserto do cerrado. De qualquer forma,
a cidade não era outra coisa senão ela mesma algo perdido e solitário no
deserto do cerrado.
Pensava
nisso enquanto atravessava o Parque da Cidade pra encontrar o João em um dos
nossos bares habituais. Arrastava os pés de cansaço e desilusão, e meu humor
definitivamente não era dos melhores. Olhava com ironia pros casais gays que me
encaravam enquanto eu passava – um casal de meninas aqui, dois casais de
meninos mais adiante – mas o problema nem era com eles, exatamente: é só que, no
estado de espírito em que eu estava, enxergava naquilo um discurso bobinho e
adolescente de “a sociedade precisa evoluir” meio que fazendo um contraste com
o lixo espalhado pelo parque, deixando claro que eles também eram parte da tal
sociedade que ainda não tinha entendido os princípios básicos de civilidade.
O
mau-humor passou assim que avistei o João em uma das mesas do bar, mas foi
imediatamente substituído por uma melancolia carregada e sem tamanho, vinda do
fato de que eu estava prestes a dizer ao meu melhor amigo que ia embora da
cidade. Ele percebeu que eu não estava bem logo que nos cumprimentamos, mas
quando me perguntou o que eu tinha, apenas balancei a cabeça pra indicar que
não queria falar sobre aquilo e comecei a contar uma história pra nos distrair:
–
Acordei numa sala egípcia. – João fez uma careta de interrogação e eu
continuei: – Tinha uns desenhos de faraós e deuses egípcios nas paredes. Eu
estava numa poltrona azul muito confortável, os braços de madeira entalhados
também com motivos egípcios. Cortinas transparentes e tapetes, uma música de
relaxamento e uma maquininha na parede programada pra borrifar perfume a cada
cinco minutos, mais ou menos. Fiquei um bom tempo lá tentando entender o que
diabos era aquilo e como eu tinha ido parar ali. E a verdade é que não tenho a
menor ideia. Minha consciência apagou em algum momento entre as três e as cinco
da madrugada.
–
Mas que lugar é esse? – quis saber João.
–
É um templo ali junto ao Campo da Esperança, já viu? Alguma coisa da Boa
Vontade.
–
Legião – ele explicou. – Legião da Boa
Vontade. Nunca entrei, mas já passei pela frente algumas vezes. Já reparou nos
anúncios de cartomantes e videntes que estão nos muros dali? – Fiz que não com
a cabeça. – Tem um que diz: “Trago a pessoa amada de volta em até três dias”.
Não é um anúncio encantador pra se colocar à porta de um cemitério? – Sorri,
ainda um pouco melancólico, e dessa vez João não deixou por menos: – Vá, fale
logo o que está te incomodando.
Respirei
fundo.
–
Eu vou embora.
João
se calou por alguns segundos, processando aquilo sei lá de quantas maneiras
diferentes, até que recomeçou, com a voz animada de sempre:
–
Você vai ter que me prometer que, antes de ir embora, a gente vai tirar umas
fotos lá na frente do STF com um cartaz que diz: “Supremo sou eu, bitches”.
Aí eu ri tanto que a
melancolia toda desapareceu.
sexta-feira, 9 de dezembro de 2016
Veio uma chuva larga de verão. No fim da tarde. Depois o ar ficou parado
como se o tempo não existisse. Agora eu vou limpar essa bagunça com um sopro,
ela falou. As ruas estavam vazias como num domingo, e eu tinha um nó na
garganta que não era meu. Ternura, pensei, não é nenhum motivo de vergonha.
Olha agora eu vou fazer uma trança com as tuas lágrimas. Então era uma brisa
meio alaranjada, com pedacinhos de céu azul ainda no meio das nuvens. Só eu sei
o quanto me custou virar algumas páginas. Escuta, se a poesia estivesse morta,
quem teria morrido era eu. Mas não. Até já sei amar em vias de mão única. Pura
inocência, mesmo, e não porque nos faltem provas em contrário. O que chamam de
fragilidade é um brilho sólido expandindo. Pulsando, assim, no coração de
dezembro. Sob gotas mornas. Grossas. Esparsas.
sexta-feira, 2 de dezembro de 2016
fuja como quiser. O necessário, o mais urgente, o que é importante, o
indispensável, tudo isso vive sem você. pergunte-se. Ser bom é ser bom pra
quem, pra quê? Vão tentar te convencer de tantas coisas, mas não dão a mínima
pra o que você pensa ou sente e que não consta em seus catálogos. ou então enfrente
o que você quiser. Dilua a sua individualidade na tinta de qualquer bandeira. haverá
sempre algum exército inimigo. Hidras de Lerna, a pedra de Sísifo, dia a dia
inventarão motivos pra te perseguir, todas as noites você vai se ver diante de
um pelotão qualquer de fuzilamento. mas seja honesto ao menos consigo mesmo:
você não está isento de nada, não. sente-se ao meu lado e veja o mundo não
mudar, mudar e não mudar, mudar, querer mudar. Beba comigo a existência em
todas as suas gratuidades e contradições. Seja você, seja o inferno que são os
outros, somos todos humanos demais, pedacinhos de carne acreditando em sou-deus.
E não há nada sob controle, não, mas vão tentar te convencer de que sim. Se
conseguirem, bom, aí você estará sob o controle deles, então sim. fuja quando
quiser, se quiser, vá, deixe-se em paz. promova algum descanso, alguns.
chame-se trégua.
sexta-feira, 25 de novembro de 2016
Comprei
cinco dados feitos de sal.
Quando
chegávamos à Isla del Pescado, Patrícia comentou: “A natureza é criativa, né?
Se uma criança dissesse: ‘Eu vou desenhar um mar branco feito de sal, e no meio
uma ilha coberta de cactos’, você diria: ‘Hm... crianças’”.
Escrevo
pra ocupar as mãos; na boca, em vez de um cigarro, um chiclé de menta. O grupo
está passeando por aí e eu não quis pagar os quinze bolivianos de entrada pra
ilha.
Mais
de dez mil quilômetros quadrados de puro sal e eu só consigo pensar em um texto
do vizionário: “A gente vai ter que
ter tequila pra caralho!”
Antes,
no caminho, teve uma hora em que fechei os olhos incomodado pelo
fechei
os olhos incomodado pelo excesso de luz e tive um momento místico que não sei
explicar nem me interessa fazê-lo. Só tenho a dizer que tudo no mundo está em
seu devido lugar.
Sim, porque seria
redundante dizer que estou completamente em branco.
sexta-feira, 18 de novembro de 2016
tenho pensado em você todos os dias, em teus lábios e teus dentes,
naquela blusa amarela com um fio puxado na manga, a forma como você esmurra o
botão do elevador com a lateral da mão, teus lábios e teus dentes, no tempo que
leva pra você contar a história enquanto a gente dá uma volta na lagoa, no
tempo que leva pra esfriar o brigadeiro e nos teus dentes, tenho pensado o dia
inteiro nos teus dentes, em tapetes voadores e em arcanos de tarô de quando
você fecha os olhos, na tua voz quando é um gemido, o brilho nos teus lábios da
nossa saliva, todos os dias, tenho pensado o dia inteiro nos teus lábios e teus
dentes.
sábado, 12 de novembro de 2016
onde
eu não vou ficar amigos me perdoem / o horizonte que falta me inquieta /
mentiras repetidas ainda são mentiras / mocinhos e vilões / giram na mesma
órbita
a
vida passa à margem de papéis amarelados / teorias e leis não tocam essa
efervescência / e eu conheço pelo menos sete / milhões de erros mais
interessantes / do que pensar que estou certo
mas
virão desesperados engolidos pelas trevas / arranhar as portas / sempre abertas
/ seus espelhos ainda mostram sábios / suas mãos estão cobertas de sangue
não
amigos não me esperem / o planeta / cobrará seus espólios / ninguém / assistirá
ao espetáculo
onde eu não vou ficar
onde já sei que não basto / a minha ingenuidade terá me salvado / de estreitas celas
/ enfeitadas / cinzas deste circo dos palácios
sexta-feira, 4 de novembro de 2016
Olha
agora aquela vida frágil emergindo dos escombros
Pálidas
mãos tateando à procura
Ela
vai encher de novo os seus pulmões com ar e luz do sol
Está
no limite da morte e se move sem motivos
Olha
agora está sangrando um lírio um arco-íris
Por
que você prefere ecoar a arrogância?
Por
que espera que alguém jogue só mais uma pedra e acabe com tudo?
Olha
agora a sua nudez vai rastejando suor de lama e de tremor
Olha
agora ela não tem um nome e está chorando um diamante azul
Do
que você se esconde em seu escárnio?
O
mundo já transborda os egos
Deixe
Se
nas tuas mãos de raiva não couberem seus quasares
Deixe
que ela se vá
Agora
ela já está desfigurada e olha agora
Seus
ossos viraram pó
Olha
Agora ela te acena um barco a velas
sábado, 29 de outubro de 2016
Quanto
tempo espuma branca que se leva esse isopor pra borbulhar nas ondas –
hoje
dormi
umas horinhas à tarde e quando acordei não conseguia mais lembrar se era sábado
ou domingo.
Girassóis
no quintal, casas de barro e tua voz tem um traço de brisa, as gaivotas de Viña
del Mar, uma odisseia atrás de um abridor de latas – era sábado.
Era
um poema que você não ia gostar e que eu comprei de um estudante de Letras na
Praça da Liberdade, qualquer coisa muito cheia de xerez e entranhas, não dei
mais que duas moedas: mal pagavam o papel e a minha culpa.
Não
conseguia mais lembrar se estava em La Paz ou no mercado Ver-O-Peso, uma menina
muito negra com um vestido muito vermelho em frente a um muro muito azul,
chalanas do meu cântico escorrendo pela tarde e de repente a gente avista um
homem caminhando sozinho no deserto, a face de um deus na montanha, a mágica
Atacama, as silhuetas dos prédios contra a aurora dos milagres só nós dois
donos da noite e dos quintais e do asfalto e de repente ops derrubamos um anão
de jardim e sinto muito mas não vai ter cola mil que resolva. Então nós rimos,
rimos, rimos. Peço um café com chantilly e sorvete de baunilha, penso outra vez
na Jéssica, na morte da vontade dentro da casca de uma árvore e na droga de uma
música que fica repetindo eu sei que vou ver teu rosto outra vez e vejo a luz
do sol quase horizontal sobre os telhados de palha. Meus olhos de sertão não
choravam, minha garganta de sal mal soluçava até que finalmente me lembrei:
Era
a Bahia.
Brammm.
Bram
bramm.
Quanto
tempo espuma bramm brambranca.
Silêncio
uma canção de ondas quebrando brando bram.
Ei,
mundo,
não
quero mais brigar.
E não é só porque
hoje é sábado.
sexta-feira, 21 de outubro de 2016
tropeçou
em frases feitas sobre ser autêntico, desprezou, irresponsável, os donos da
igualdade e da liberdade, ficou só, partiu em autoexílio por haver
desrespeitado a lei do ser-alguém-na-vida elaborada pelos que não estão nem aí
pros padrões da sociedade, artigo novecentos e doze, parágrafo oitenta, que
diz: “nunca estarás de boas”.
ficou
só. aprendeu a ouvir como se nunca tivesse ouvido, atravessou abismos só pra
conseguir pensar como quem está do outro lado. despiu-se de si mesmo à procura
da nudez absoluta – e hoje desconfia de que só se pode ter uma vaga ideia de
como ela seja. “há muitos mundos no mundo”, diz. aprendeu a olhar como se nunca
tivesse visto. ficou só, uma solidão maior que os números.
naqueles
tempos de errar entre as cidades e as gentes, aprendeu a contar com os loucos
que lhe apareciam vez ou outra dizendo vem cá me dá um abraço, ou vem comigo
ali uma escada até saturno – mas ainda menos, muito menos do que isso: quando
esbarrava em alguém na rua, quando em elevadores e ônibus lotados, quando
alguém tocava em seus dedos na hora de entregar um troco ele engolia faminto o
que tomava por migalhas de afeto.
não
leva muito a sério nem as próprias máximas – mas aqui uma delas, que vem na
esteira do que foi narrado: é infinitamente mais fácil ficar muito tempo sem
sexo do que sem carinho.
e
outra, que reorganiza uns dizeres muito conhecidos de quem vê a si mesmo como
intelectual:
pessoas
inteligentes entendem ideias.
pessoas
espertas entendem das coisas.
pessoas sábias
entendem pessoas.
sábado, 15 de outubro de 2016
Sandoval atravessou a rua às cinco e quarenta e cinco levando uma sacola
de compras. Dolores se debruçou à janela e suspirou que bom que encontraram o
cachorrinho perdido, que bom, que bom. José se olhou no espelho e não gostou de
como estava o seu cabelo e nada resolvia, tem mesmo que cortar está ficando
feio. Extra, extra! – os seus melhores sites de não-notícias: domingo vai ter
jogo no campinho do bairro e festa americana na Georgete. Não tem jornalismo no
mundo que consiga registrar o mais do menos – uma flor se abrindo
silenciosamente em um terreno baldio, um coração sangrando silenciosamente de
saudades, uma laranja cortada silenciosamente ao meio. O entrevistador me perguntou
se acredito em fantasmas e eu disse que às vezes, que tudo no mundo é às vezes,
mas mesmo isso me pareceu uma resposta muito grande, muito definitiva. Olha, a
única coisa em que eu não acredito mesmo é no Governo, eu só acreditaria num
Governo que soubesse dançar. Isso da existência ser vazia e sem propósito é tão
hipotético quanto qualquer divindade. Vá, anote aí assim mesmo: às vezes. Às
vezes, o amor é uma estratégia de controle; às vezes, é preciso ter muita
coragem pra não lutar; às vezes, “ser o que somos” é inventar um personagem. Não
sabemos. Mas até que me sinto bem no nevoeiro. Estou apaixonado, e a cor
preferida dela é cinza.
domingo, 9 de outubro de 2016
sexta-feira, 30 de setembro de 2016
sexta-feira, 23 de setembro de 2016
Em pé diante da pia da
cozinha às três da madrugada, imaginando uma conversa com a Cristina, comendo
atum ralado Hemmer direto da lata eu sinto de repente que tudo está bem, que a
vida é boa e que tudo faz sentido.
Mesmo que tocasse um rock
ruidoso, que a letra fosse um grito de revolta ou o lamento angustiado de um
suicida; mesmo que estivesse muito quente ou que eu não quisesse dormir porque
amanhã o dia vai ser um saco e eu queria poder fazer outras coisas; mesmo que
me incomodasse um pouco o fato de que a lâmpada da sala está queimada há quase
um ano ou de que minhas roupas estão sujas na mala ainda não desfeita da
viagem; mesmo que às vezes eu me arrependa de ter dado a minha gata ou que me
sinta um astronauta esquecido e sozinho em algum ponto distante do Universo;
mesmo que eu não saiba muito bem como e por que: tudo está bem, a vida é boa e
de repente faz sentido.
Cara, a verdade é que eu
ganharia uma fortuna revivendo este momento em um comercial da Hemmer. Claro,
talvez preferisse outro figurino – apesar de gostar desta camiseta verde com a
estampa de uma mulher encapuzada e uma tatuagem no braço dizendo Venus in
Furs, que eu acho que teria, digamos, um apelo dramático maior do
que a samba-canção branca com a inscrição Amor eterno em várias línguas,
embora os publicitários talvez discordem – mas enfim, a cena toda já está
pronta: o cara insone que de repente abandona os seus infernos interiores e se
reconcilia com a vida e com o mundo através de uma lata de atum ralado Hemmer.
Originalíssimo, perfeito.
Ah,
droga, já me aborreci de novo.
sábado, 17 de setembro de 2016
Era o teu nome, e o de mais ninguém. Riscado com giz na calçada, com um
graveto na areia da praia ou com o dedo no vidro embaçado. E em cada uma das
oitocentas páginas do meu caderno. O que era inútil, porque você não respondia.
A solidão descrevia um arco, arremessada desde o centro do teu silêncio imóvel,
e me atingia bem no peito, em cheio. Não havia mais nada nem ninguém a quem eu
quisesse pertencer. Sob o sol, a boca seca, levantei os olhos e encarei o grande
deserto que se estendia além, pra qualquer lugar. Fomos felizes uma vez, depois
fui triste, e agora há qualquer coisa de esperança em não querer olhar pra
trás. Ainda é teu nome, eu sei. Mas nem me lembro muito bem de como ele se
escreve, não depois que eu comecei a caminhar. Agora é só poeira, pedras, pés
cansados e a testa coberta de suor. Pura terra. Puro ir. Dura indiferença à
imensa falta que você virou.
sexta-feira, 9 de setembro de 2016
Depois de vinte mil atualizações de status, continuava incompleta. Nunca
se convenceu, nem poderia, mas não percebia como aquilo tudo não servia de
nada. Além disso, eu estava de mau humor porque era terça-feira e fazia um
calor insuportável. Escrevi: “Papai e mamãe estão contando com você: não tem
mais nada na vidinha deles que possa ser motivo de orgulho”. Mas aí logo em
seguida apareceu esse menino defendendo o Mandamento de honrar pai e mãe e ele
era uma das pessoas mais bonitas que eu já conheci. Não me envaideço de ser
humilde, não acho que a minha humildade seja menos sincera e natural que a
minha vaidade. Já imaginou que louco transformar defeitos em virtudes com a
mesma agilidade e empenho com que fazemos o contrário? Sinto falta de pessoas sem
as quais estou muito melhor e às vezes me desligo de quem me faz bem: sempre
foi assim. O fato é que não temos nada a ver com aquele personagem do nosso
perfil – ele é no máximo alguém que gostaríamos de ser, quando muito. Bora lá
escolher qual lavagem cerebral você quer sofrer, em qual transe hipnótico você
quer entrar. Não tem outra opção. Assim continuamos, e continuamos, e
continuamos. Parece que seria a morte se faltasse um link.
sexta-feira, 2 de setembro de 2016
Na
segunda-feira, as ruas do Bairro Histórico estavam praticamente vazias.
Caminhei meio sem rumo das onze horas até o meio-dia, enquanto garçons cheios de
preguiça iam abrindo as portas dos restaurantes e uns poucos turistas
comparavam preços e sugestões dos chefs escritos com giz em quadros negros.
Escolhi meu restaurante pela música. Sentei-me à sombra de uma árvore em um
pequeno deck com vista para o Río de la Plata. Rock’n’roll e Iate Club. Um garçom gordo e simpático chegou com o cardápio, mas eu
não tirei os óculos escuros. Queria um macarrão à bolonhesa. Queria aquele
filhote de gato cinza ao pé da mesa em frente. Eu era o único cliente no
restaurante.
–
Los lunes son mortales – comentou o garçom quando me trouxe queijo e azeitonas.
– No hay casi nadie em las calles y estamos pelados... Los lunes son mortales, mortales.
Fiquei
pensando se ele envenenaria o meu molho à bolonhesa; ele saiu exibindo um
pedaço da bunda por cima da calça jeans. Outros filhotes de gato se juntaram ao
filhote cinza, deitaram-se sob o sol. Fiquei me lembrando da temporada que
passei em Santorini em mil novecentos e noventa e nove... Mentira, nunca estive
em Santorini. Mas me lembrei de Santorini pelo puro prazer de dizer que me
lembrei de Santorini, e porque tenho a impressão de que lá passei os meus
melhores dias ao lado de Marília. Também nunca tive uma namorada chamada Marília,
mas acho que lá, em Santorini, cheguei a pensar por alguns instantes que ficaríamos
juntos pelo resto da vida.
O
Río de la Plata refletia uma luz prateada que era a luz do sol filtrada por um
fino véu de nuvens.
Queria
escrever um conto sem metáforas nem simbologias, fingindo que os humores não
interferem nos recortes da objetividade. E só porque nada consegue dar conta, mesmo, de
traduzir a totalidade de uma experiência.
O
garçom voltou com um pote de queijo ralado em uma mão e um cigarro aceso na
outra. Inclinou-se sobre a mesa para deixar o queijo e derrubou uma porção de
cinzas sobre a toalha azul não muito limpa. Bateu as cinzas com os dedos, sem
dizer nada, e desapareceu outra vez com suas calças soltas.
Deixei
as azeitonas de lado e acendi um cigarro. Era o meu jeito de dizer ao garçom
que eu também não me importava nem um pouco com nada daquilo.
E que ele tinha
razão, afinal. Segundas-feiras são mortais.
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