segunda-feira, 30 de dezembro de 2019
Você
tem me dado apenas ecos. Pedaços de fantasmas que atravessam meu caminho. Não
conta como se algo acontecesse. Já me cansei de implorar aos deuses, de fazer o
melhor que posso, das ruas históricas de Tiradentes e de turistas que seriam os
primeiros a aplaudir o enforcamento desse mesmo Tiradentes se vivessem na mesma
época que ele. Mas a cachaça mineira, ah, sim, e todas essas feiras
gastronômicas. Acho só que eu não tenho nenhum amigo gente. Ontem, numa praça,
alguma coisa fria e úmida tocou de repente em minha mão esquerda e, quando fui
olhar, gostei tanto que até tirei uma foto com meu celular, olha
O resto são cartazes de “Não fazemos trocas”. O alto daquelas montanhas, ao longe, quão longe você acha que leva. Você tem me dado apenas vácuo, tem sido só como se o vento brincasse de adivinha, e eu quero ser visto como um igual, mas a igualdade é uma fraqueza que ninguém suporta. As pedras do calçamento, a estrada de um rei que morreu, e hoje, do outro lado da cidade, conheci outro cachorro, igualzinho à fêmea da fotografia, mas com os olhos castanhos. Não falei nada a ninguém, achei que não era importante. Mas o dono do cachorro decidiu contar a história de quando o viu pela primeira vez, ainda filhote, e disse que na mesma ninhada tinha uma fêmea idêntica a ele, mas com os olhos azuis.
Você
não tem me dado nem uma gota da atenção mais rasa. O cachorro, acho que
entendeu que estávamos falando nele, lançou um olhar comprido em minha direção,
me senti na obrigação de falar “Tua irmã te mandou lembranças”.
Pro
teu desprezo, sim, apenas pro teu escárnio. Tenho sido o menor e mais sem razão.
A independência é uma grande afronta, algo em mim é pior que a ideia de
república pra interesses que ainda nem chegaram ao século dezenove. Mas neste caso,
a solidão não é algo pelo que eu deva me sentir culpado. E eu poderia estar morrendo
por bem menos, a verdade é essa, eu poderia simplesmente não estar tentando nada.
quarta-feira, 25 de dezembro de 2019
Não sei por que pensei
alguma vez que não há poesia na realidade
ou que o nome das
coisas do mundo não traduz com muito acerto as coisas da alma
ou que o retrato de um
dia não atinge nem a sombra do ideal eterno de entender a eternidade – mas
aconteceu que hoje
ao fim dessa jornada
que eu chamava de espiritual e grandiosa
nada me pareceu mais
espiritual e grandioso do que estar no mundo
e passar distraído
pelas flores da praça enquanto tento me lembrar se embarco às oito ou às nove
e me despedir da
boliviana com quem conversei tantas vezes num café sem nunca perguntar seu nome
e lamentar que eu
tenha adiado tanto a minha vontade de fotografar o Cristo indígena na cruz da
igreja que estou indo embora sem ter feito isso
e arrumar as malas com
um misto de alegria e medo e uma profunda tristeza pelo fim da caminhada
e recolher memórias e
embalar com cuidado os presentes frágeis que comprei para uns amigos
e reparar que há algo
de banal e cinematográfico em estar chovendo no dia em que ando por aí dizendo
adeus a Machu Picchu
e perceber que estar
em casa é menos uma localização geográfica e mais o acolhimento que afinal
oferecemos a nós mesmos
e observar as
crianças, homens e mulheres com suas vozes cotidianas ainda prontas para me
chamar de amigo
e doar as roupas e
vender os livros de que não preciso e que já não quero ter pesando na bagagem
e confessar a mim
mesmo que desperdicei o meu amor inutilmente sempre que o contive por antecipar
este momento
e chorar como um
menino que se vê obrigado a devolver um brinquedo que tão gentilmente lhe
emprestaram
e ter a sensação
ligeira de que amanhã ou depois eu vou poder descansar de novo em minha pedra
preferida à margem do Rio Urubamba
e abraçar a moça da
hospedagem que foi minha filha e mãe e irmã ao longo destes dias em que nunca
nos dissemos muito mais do que “boa tarde”
e admitir enfim que
não há nada mais sagrado em nenhum ser humano do que o simples fato dele ser
humano
e que uma prece pode
não ser mais do que esse movimento tão sutil dos lábios ao contar um troco
e que oferendas podem
não ser mais do que anotar um número de telefone em um post-it cor de rosa
e que um ritual pode
não ser mais do que se deter à escada e amarrar um dos cadarços
porque Deus está em
silêncio e imóvel no ruidoso coração do movimento
e em tudo aquilo que
nós não estamos
nem estaremos nem
nunca estivemos
e que só pertence a um
homem num lugar de névoa que nos toca mas ninguém alcança
porque é Deus e não é
homem
e porque é Deus e
pronto.
terça-feira, 17 de dezembro de 2019
Todos vão responder, sempre, não a você,
mas à ideia que têm de você, e na maioria das vezes, essa ideia vai ser um
resumão de no máximo uma palavra baseado em fofoca, em um ato isolado que você
cometeu um dia ou em um hábito mais ou menos frequente, não importa muito, de
qualquer forma vai ser um hábito entre vários, então transformado para o resto
da vida na Sua Personalidade.
E o pior nem é isso.
Porque somos todos médicos da razão dos
outros, de suas almas, e todos sabemos, como especialistas que somos, que
nessas medicinas do espírito não combatemos as doenças, mas os doentes infames.
O que nos facilita esse trabalho, hoje,
em tempos de ciência tão avançada, é que já sabemos que a personalidade humana
não está dividida em doze tipos definidos pela posição de corpos celestes no
momento do seu nascimento, por exemplo, nem é tão complexa como antigamente se
imaginava, dividida entre os tipos sanguíneo, colérico, fleumático e
melancólico. Nem, aliás, quaisquer outras divisões que as pseudociências já
tenham inventado. Está claro, indubitável, definitivo e comprovado que a
personalidade humana se divide em duas e apenas duas categorias básicas: a de
direita e a de esquerda.
A característica talvez mais marcante
dessa divisão é que ela não só traduz de forma tão certeira os traços gerais da
personalidade de cada um, como também traz embutida um certo código moral e de
comportamentos que obrigatoriamente deve ser seguido se você ainda quiser ser
bem-vindo no lado a que pertence. A vantagem é que você poderá dormir tranquilo
sabendo que a fonte de todo o Mal, de todos os demônios, do fascismo, do caos e
de tudo-que-está-errado é com certeza o pessoalzinho do outro lado.
A desvantagem, embora não se reconheça,
é que ambos os lados exigem um certo desespero infantil de se agarrar a um
Avatar, a um Enviado Divino ou Fenômeno Histórico, o Representante Máximo dos
valores dessa direita ou dessa esquerda e que necessariamente ocupa ou já
ocupou a Presidência da República.
Os que não se declaram nem de um lado
nem do outro não podem ser levados a sério. Estão mentindo. Ou, quem sabe, nem
chegam a ser humanos mesmo. Humanos são da direita ou da esquerda, ponto final,
essa é a única verdade. A Verdade Absoluta. A VERDADEIRA VERDADE.
*Morte
a todos os infiéis.
quarta-feira, 11 de dezembro de 2019
Eva
comprou um pequeno tabuleiro de jogo-da-velha com peças feitas de casca de coco,
e a gente ia jogando no caminho até São Luís do Maranhão. Ela contava a
história de uma atriz que tinha sido maltratada na rua por causa da personagem que
interpretava na novela, uma vilã, e só porque essa estranha na rua não entendia
que aquela na TV não era ela.
–
Imagina isso num blog de literatura – falei. – Onde eu conte histórias, publique
poesia... Acha que alguém vai entender a diferença entre mim e o eu-narrador,
entre mim e o eu-lírico?
–
O que mais me chama a atenção aí é você falar em blog como se isso ainda
existisse – ela respondeu.
E
me contou outra história, dessa vez sobre uma amiga que tinha sido demitida por
causa de publicações na internet no início do século. Alguém da chefia achou
que eram indiretas, e parece que uma dessas publicações chegou a causar algum
problema de verdade, não lembro bem. Mas a mulher jurava que não, nunca, nem
passou pela cabeça dela nada relacionado ao trabalho na hora de publicar.
E Eva sabia que era verdade, conhecia até o motivo de uma publicação ou outra,
mas ninguém acreditou, e no fim ela acabou não tendo a chance de desfazer o mal-entendido.
–
Era uma grande amiga – ela falou. Pareceu se lembrar de algo divertido, olhou
para mim sorrindo: – Ela implicava com o “te quiero”. Dizia que era sexual
demais dizer que você quer alguém, ficava “indignada” que no espanhol isso
pudesse substituir “eu te amo”. O “eu te amo” já tem gente que não consegue
separar do desejo, né?... Eu vivia dizendo pra ela: “Te quiero”, “te quiero”,
só pra encher o saco, mas também porque eu queria ela, mesmo. Faz tanto
sentido, pra mim.
Pareceu
que ia ficar melancólica, mas se ia, não deu tempo. Tinha acabado de ganhar a
primeira partida de jogo-da-velha depois de umas oito derrotas consecutivas.
quarta-feira, 4 de dezembro de 2019
Teus olhos não sabem contar a que profundidade você foi, mas é um lugar onde a dor não respira. Alguns séculos passaram no teu rosto. Dentro de um mergulho, a leveza é estar envolvido por algo mais pesado que o ar, mas pelo menos em silêncio. A solidão é uma sombra produzida por tua própria chama, transborda, eu poderia tocar ainda que você se lembrasse de me ver aqui fora e sorrisse, disfarçada. Nada pode te alcançar ou te trazer de volta. Meu coração é o que aperta, eu que já estive tantas vezes nesse mesmo lugar, te adoro muito mais do que sou capaz de curar ou conter, só me cabe guardar a distância com esse gosto amargo na boca, esse nó na garganta. Tantos mundos desabam por dia. Pedacinhos de alma somem pra sempre, soterrados. Tua expressão é somente um quadro que retrata a névoa, canções melancólicas ecoando ao longe. E, ainda assim, beleza triste e noturna, você é perfeita perdida em si mesma, tanto quanto é perfeita encontrada. Eu, por mim, posso te olhar vidas inteiras, a mão estendida à espera de que você desperte ao meu lado, no centro de um universo expandindo, no vento insone, em delírio, em tudo. Em todos os casos.
quinta-feira, 28 de novembro de 2019
"Você nunca me amou", quero dizer, mas lembro que ninguém aqui pagou pra ouvir minha tragédia. Antes de entrar no palco, deixamos penduradas num cabide as nossas mágoas, é assim que tem que ser, se não, não é teatro. Só que hoje à tarde ela deixou a aliança sobre a mesa antes de ir embora, e agora aqui estamos nós pra mais um espetáculo. Eu tenho que falar “É bom te ver de novo”, mas sem mostrar o coração em pedaços. Quero morrer bem antes do fim do primeiro ato.
Quieto, eu fico olhando ela sair por uma porta cenográfica. Não poderei
gritar o nome dela porque, infelizmente, só sei como se chama a personagem. E
meu roteiro não diz nada agora além de “Cai
o pano”. Não tenho como calcular em quantos níveis não me importo nem um
pouco, nem como explicar por que me importo tanto. Ah, sim, fizemos uma bela
cena, ela e eu. Cai o pano – aplausos – deveria haver uma consagração aqui. Nossos
sorrisos tentam se espalhar por sobre a maquiagem, inutilmente, sem o menor traço
de verdade. Não há nada maior que essa dor contida – uma tristeza, lembra?, que
o poeta bem intencionado achou que poderia usar como aquarela. E que fica lá, mancha
de luz nos olhos quando os refletores se apagam. Como um troféu de silêncio. Como
uma paz muito plástica.
quarta-feira, 20 de novembro de 2019
quarta-feira, 13 de novembro de 2019
Suas janelas de assistir, poltronas de esticar as pernas e biscoitos e
bebidas bobas de matar o tempo e disfarçar aquela fome toda de vida, a fome
desmentida e renegada soterrada pelo medo horror e amor ao tédio então chamado
de descanso ou segurança, os seus passeios pela praia ou pelo parque, os seus
mirantes monumentos e filminhos de domingo à tarde, tudo que amortece o fogo, os
seus remédios e joguinhos de baralho ou bola ou quem corre mais rápido ou quem
derruba o outro mais rápido, qualquer coisa que grite mais alto, que aquiete,
silencie, cale, os seus sorrisos sem graça e suas palavras quietas sem alma, os
seus limites claros e armaduras visíveis sobre corações apodrecidos presos a
tão pouco e tão certos de que é bem melhor que nada, só um amor pré-fabricado,
feito sob medida e cheio de instruções implícitas às vezes vomitadas com raiva
como se todos já devessem ter aprendido há muito tempo, seus cachorrinhos e
gatinhos e churrascos e o preço dos seus carros, sua indiferença diante do maravilhoso
inexplicável, sua constante fuga de si mesmos, seu existir arrastado gastando o
chão, sobrando e transbordando a Terra, só mais um igual a tantos, próximo e
sem vez, espíritos mofados.
terça-feira, 5 de novembro de 2019
VOCÊ É
BURRO
estudos
arqueológicos apontam para a existência de inscrições como esta com mais de
cento e quarenta e nove mil, seiscentos e setenta e dois anos de idade
espalhadas em cavernas, portas de banheiro e comentários de internet,
disse-me
o Mestre.
E
me contou a história de Liu Dig-Dong Lerei da Montanha.
NINGUÉM PASSA POR AQUELA PORTA
foi
a segunda frase mais falada e escrita desde que o tempo nasceu, disse-me o Mestre.
Era
uma porta branca, dourada, azul, tão alta que ninguém nunca viu onde acabava.
E
estava sempre fechada.
Diante
da porta, acumulava-se uma multidão maior que a soma de todos os habitantes de
todas as metrópoles de todas as eras.
A
maioria chafurdava na lama, como porcos, porém muitos deles andavam eretos e
vestiam roupas bem passadas, pareciam lúcidos e com tudo sob controle, e nunca
diriam VOCÊ É BURRO usando exatamente essas palavras.
Liu
Dig-Dong atravessou pelo meio deles sendo apedrejado, cuspido e humilhado até
chegar aos pés da Grande Porta.
VAGABUNDO
BABACA
ARROGANTE
VOCÊ É BURRO
NOJENTO IMUNDO
FRACASSADO
VOCÊ É BURRO
VOCÊ É BURRO
Liu
Dig-Dong estava no limite de suas forças, coberto de feridas, e ao ver suas
mãos trêmulas se erguendo em direção à maçaneta, devagar, a muito custo, os que
estavam à sua volta riram e entoaram coros de FRACOTE e MULHERZINHA.
A
porta se abriu com um simples toque na maçaneta.
A
luz que vinha do outro lado cegou a todos por um instante, e fez com que os que
estavam mais próximos se afastassem.
Todos,
exceto um.
Exceto
Liu Dig-Dong e mais um, corrigiu o Mestre.
Um
homem magro, vestindo apenas uma pequena tanga, sentado em posição de
meditação, de olhos fechados, movendo os lábios numa prece silenciosa.
“O
que está fazendo?”, perguntou Dig-Dong.
“Estou
pedindo aos céus que me deixem entrar”, respondeu o homem, sem abrir os olhos
nem mover um só músculo.
“A
porta está aberta”, falou Dig-Dong.
Mas
o homem continuou em sua prece.
Dig-Dong
olhou para o outro lado. Começava a se acostumar à luz e a identificar as
formas do mundo que esperava por ele.
Que
esperava por todos eles.
No momento em que Dig-Dong
avançou, a multidão voltou a gritar, enfurecida.
quarta-feira, 30 de outubro de 2019
A liberdade, muito mais – ou muito menos –
que um tratado
ou uma ordem das coisas no mundo,
é um homem sob a chuva numa praça da
cidade
na manhã mais calma,
andando a passos lentos,
contemplando o alto dos prédios,
perdido sabe-se lá em quais diálogos
submarinos,
numa expressão de nada,
ou qualquer coisa entre a preguiça e a
graça,
ou qualquer coisa como um puro homem
que é de músculo e de ideia – a liberdade,
tão diferente de um acordo entre os que
compartilham a jangada,
é a alma sempre pronta pra assentir com a
cabeça,
nadar sozinha, tomar os remos ou amar a
correnteza,
numa atenção contínua
que é às vezes agonia e glória
e é às vezes êxtase e castigo –
a personagem liberdade
na última página de uma novela
e a liberdade suja sobre o pó das ruas
e a liberdade música e poesia e tinta
e a liberdade regra em um artigo do
estatuto
e a liberdade sonho e a liberdade guerra e
a liberdade paga
e a liberdade voo e a liberdade corpo e a
liberdade raiva
e a liberdade tudo e a liberdade cada
ponto de uma estrada
caem por terra como folhas secas de
palavras
quando a paixão se
gosta, quando o querer dança e quando o ser se basta.
quarta-feira, 23 de outubro de 2019
[Aqui tem a fotografia de um velho negro com longas
barbas brancas, sentado em um banco, de pernas cruzadas, fumando um cachimbo.
Olha distraidamente para a câmera, com a cabeça erguida, através de uma pequena
porção de fumaça. Usa uma calça
azul-marinho, camisa branca de mangas dobradas na altura do cotovelo e uns
sapatos pretos muito bem lustrados. À direita dele, quase fora de quadro, um
espelho reflete parte do banco em que ele está sentado e uma pequena faixa
lateral de seu corpo. Acima, na parede, um pedaço de um relógio antigo de
madeira, de que não chegamos a ver os ponteiros.]
Pratos e balanças e
cegueiras e
No dia em que
reparassem em quanto tempo e energia gastam tentando superar obstáculos que
nunca estiveram lá
O ar sem vida olhos
vermelhos de raiva
Poemas publicitários e
caríssimos coquetéis de arte alternativa e discursos decompostos e paixões
desesperadas e puxando as cordas dessas marionetes um monstro de milhões de faces
gargalhando e repetindo calma calma tem mercado pra todo mundo
A lista de exigências
dicionários
Uma cidade suja
endurecida de vícios uma rua preguiçosa de ir uma soberba de querer crescer
somente igual e mais pra dentro
Se ao menos uma prévia
da utopia
[Fotografia de uma janela aberta emoldurando montanhas
longínquas, com cortinas de renda branca penduradas dos dois lados. O céu está
coberto por uma única e imensa nuvem cor de chumbo, mas as árvores das
montanhas estão banhadas pela luz do sol. No parapeito de madeira, há um pombo
cinza, desses urbanos, pousado de frente para a câmera; enquanto outro, de um
cinza mais escuro, bate as asas um pouco acima e à esquerda dele, prestes a
pousar, também. As asas do segundo pombo, em movimento, são apenas um pequeno
borrão nesta fotografia.]
quarta-feira, 16 de outubro de 2019
nada no mundo
é tão logo e tão longe
quanto esse amor que
me leva
janela e paisagem
terra prometida
encontrada
nada no mundo
é tão quando e tão
onde
quanto esse amor que
me espera
labirinto de tempo
pressa contida e
chegada
nada no mundo
é tão fogo e tão água
quanto esse amor que
me envolve
essa matéria de sonhos
desejo impossível
palpável
nada é mais simples
nem mais sobre-humano
nem nada
nada no mundo
é tão meu e tão plágio
quanto eu te amo
quarta-feira, 9 de outubro de 2019
Quando Fê chegou em casa naquela tarde, encontrou Dani
dormindo sem nenhuma roupa no chão da sala, as pernas e os braços abertos como
o Homem Vitruviano do da Vinci, as luzes apagadas e o celular tocando
música clássica. Fê suspeitava de que fosse Brahms: não entendia muito de
música clássica, mas tinha aprendido alguma coisa depois de nove meses
namorando com Dani – e agora dividindo apartamento. Sentiu o cheiro de incenso de
alecrim. Teve vontade de ir deitar-se também no chão da sala, mas em vez disso foi
largando as suas coisas no caminho até o sofá e desabou de bruços sobre ele.
– Campos de centeio – disse uma voz rouca e lenta vinda do
chão.
– Não sei do que você está falando – resmungou Fê – mas acho
que eu diria “limoeiros amarelos”.
Demorou vários segundos até que Dani voltasse a falar, ainda
com a voz grave e arrastada:
– Sim, tem razão. Também os limoeiros amarelos. Claro.
Uma brisa imperceptível agitava as cortinas. Tinha feito
muito calor durante o dia, mas agora a temperatura estava começando a cair. A
música terminou, ficou tudo muito quieto, depois começou a tocar outra música de
Brahms, se é que era mesmo Brahms. Dani rolou o corpo de lado para ficar de
frente para Fê.
– Sonhei que estava indo a uma reunião de negócios em um tipo
de restaurante subterrâneo – contou. – Alguém queria me vender uma arma proibida,
a situação toda era bastante perigosa. Era só eu e um cara muito grande numa
mesa, e ele estava falando que algumas das maiores atrocidades já cometidas pela humanidade tinham sido cometidas em nome do amor. Falava que o amor não existe,
que só o que existe é o egoísmo, que foi por egoísmo que a gente inventou
o amor, blá, blá, blá, blá, blá... É engraçado como essa ideia é usada para
justificar comportamentos muito piores do que aqueles movidos pelo “egoísmo” de
se amar alguém. Mas enfim, a situação no restaurante era cada vez mais tensa, e
eu comecei a ver que ao redor da nossa mesa tinha muitos homens armados,
olhando sérios para mim. Tive uma sensação horrível, um aperto no peito, aquilo
estava começando a virar um pesadelo... Mas aí você chegou. Eu acordei, dormi
outra vez, acordei de novo, dormi...
Fê se ajeitou um pouco no sofá, também para poder olhar para
Dani. Ficaram assim, imóveis, olhando-se nos olhos por um longo tempo.
– Se uma pessoa diz uma palavra – disse Fê – por exemplo: “pêssego”...
Você tem uma imagem mental para essa palavra, você imagina um pêssego, vê
ele na sua cabeça. Mas esse pêssego que você vê aí é sempre diferente do
pêssego que eu estava pensando quando falei a palavra. Sempre. É menor, sei lá,
mais amargo, mais maduro. Mais suculento. Ou talvez você nem goste de pêssego.
Talvez ele te faça lembrar de alguma história triste da infância, ou de alguém
que você já amou e que a vida te levou embora. É um pêssego muito cheio de
informações, e todas essas informações são muito diferentes das que
estavam ligadas ao pêssego que eu pensei. Porque a minha vó tinha pessegueiros no
quintal. Porque pêssego em calda é minha sobremesa preferida. Ou sei lá por que.
A música parou de repente – o celular ficou sem bateria –
mas ninguém ali se importava com o silêncio. Começavam a piscar os olhos
demoradamente, os pensamentos vagavam cada vez menos lógicos . Foi Dani quem
insistiu em manter uma conversa:
– Eu estava pensando... Tem uns livros de autoajuda, uns discursos motivacionais... Tem umas coisas
que deviam vir com um selo dizendo: “isto aqui pode ter o mesmo efeito de jogar
água em quem está se afogando” ou sei lá... “Dar um martelo a quem só tem
parafuso”... Ou...
Fê estava de olhos fechados, e Dani já não conseguia mais
manter a linha de raciocínio. Ficou pensando por alguns segundos, e tudo que
conseguiu acrescentar à lista foi:
– “Pérolas aos porcos”...
Desistiu de tentar manter os olhos abertos assim como
desistiu de pensar. Já estava quase
cochilando de novo quando ouviu Fê dizer:
– E eu vou ter que insistir nos limoeiros amarelos.
– E eu vou ter que insistir nos limoeiros amarelos.
“💜”,
pensou Dani. Mas já não conseguia dizer mais nada.
terça-feira, 1 de outubro de 2019
o horizonte e o ar das
montanhas altas. quando o vento varre o ardor do sol. flor entre as pedras,
pequenas frutas nos arbustos, caminhos de terra, a paisagem e algo como a sua
voz. suaves riachos. asas. patas. o amor dos grilos por constelações.
sussurros, sopros,
sensações. o corpo de batalha, de ausência ou de prazer. o corpo de todos, o
corpo que é só de si. sentindo. sendo o sentido de ser.
se a minha gratidão
não transbordasse.
abraços, risadas, a
eletricidade que perpassa. mãos que se dão, palavras que se despejam,
pálpebras, misérias e mistérios misturados. essa lembrança é de quem. de onde
nasceu tanto brilho.
se eu não acreditasse,
então.
segunda-feira, 23 de setembro de 2019
Tudo
estará bem enquanto você adorar os semideuses certos. Eles terão rios de
dinheiro, milhares de seguidores, livros sérios publicados, armas de fogo,
fogo, vocação para o escárnio. Desde toda a eternidade, afeto é uma fraqueza e só
com violência se responde ao fato de que somos todos igualmente vulneráveis. Vão
brigar pelo direito à exclusão com muito mais empenho do que para erguer moradas.
Uma vez que te aprisionem sob um rótulo, não demorarão a te esquecer enquanto
abraçam monstros bem maiores, enquanto aplaudem atitudes bem mais baixas. E,
sobretudo, estarão prontos para te ferir a cada vez que lhes pareça de passagem
que você está errado, mesmo se você não estiver errado.
Agarram-se
a preconceitos
Agarram-se
à intolerância
Agarram-se
desesperadamente
Ao
desejo de agredir
Adoram-se
em negação ao outro
Idólatras
de espelhos
Indigentes
indiversos
Fantoches
do medo
Podem
dar a explicação que quiserem para não abrir as portas quando alguém bate, mas
suas explicações ainda serão portas fechadas. Podem destruir sem piedade os
sonhos mais iluminados de um mundo bom, mas não podem culpar por isso nada além
do fato de já não sonharem. Podem lutar, tanto quanto lutam como bestas
digitalizadas, cumprindo alguma fantasia egoica de missão divina, purificadora,
revolucionária. Mas sempre que derramarem sangue em nome de valores elevados, ficarão
mais próximos de se tornarem seus inimigos que de tê-los derrotado.
Assinar:
Postagens (Atom)