sábado, 29 de abril de 2023

Vamos cantar no escuro o tempo que escorre além de nossos olhos, 
Segurar as mãos e murmurar delicadezas e segredos e memórias 
Sob a Via Láctea, sob a Grande Árvore; 
Vamos dançar na noite os nossos corações sempre sagrados de criança 
E confessar o sonho que umedece os nossos lábios; 
Vamos saber a orvalho 
E gargalhar a ausência de mistério;

Vamos nascer de novo, nus e em lágrimas de comunhão e afeto 
E arder bem alto o fogo que se espalha em nossas peles 
Sob a Via Láctea, sob a Grande Árvore; 
Vamos beber o mel do nosso amor de divindades 
E reconquistar a eternidade sobre o grande altar do mundo, 
Vivos e encontrados, 
Com nossas duas solidões entregues;

Vamos nos vestir com o sopro distraído de uma flauta 
E reinventar a paz em nossos sonos enlaçados 
Sob a Via Láctea, sob a Grande Árvore; 
Até que o dia nos encontre exaustos e felizes e mais sábios 
De ter feito arte, dessa longa prece sem palavra ou juízo 
Que é o prazer das almas 
Numa mesma carne.


 


 

sábado, 22 de abril de 2023


 


 

Na praça, a velha estátua amanheceu 
coberta de trapos coloridos, 
como se fossem uma roupa nova.

De todos os cantos sempre à vista 
e de onde mais se esperaria 
vieram sedentos e curiosos 
inaugurar os remendos na estrada 
que ainda leva aos mesmos lugares.

Nas mãos de uma criança, o peso do mundo 
é do tamanho da ausência de voos, 
e é grande demais para os meus ombros.

(Embora às vezes o coração descanse.) 
Assisto ao crescer da grama, esse 
misterioso mar de milagres minúsculos, 
e assim, porque sussurro, 
ainda não sou percebido.

Mas se enxergassem uma flor nascendo entre 
os intervalos do concreto, e não a devorassem 
plastificada e com logotipos anexos, então 
quem sabe 
não fosse este um castelo em ruínas.

Um gélido torpor. 
Um não-mover sem ar puro.

Se de repente — Olha, um poema! 
Trazendo uma prova de explosões serenas, 
ecoando sem rumo nas paredes das celas, 
inundando os afogados em calor renascente e fluido, 
alvoroçando as cores das auras, até que 
todos fecham os olhos 
e o poema passa, 
e tudo o que era vivo passa 
e apenas recomeçam a ranger as engrenagens.


 


 

sábado, 15 de abril de 2023


(Diários de Machu Picchu #01)
Mas aqui, neste ponto exato das minorias, 
Não estamos autorizados a lamentar nada. 
Somos os únicos responsáveis, dizem, 
Pela realidade que nos estraçalha. 
(Não fale "a de que somos vítimas". 
"Vítima" é palavra proibida.)

Aqui, sendo a pessoa que sou, 
Nem estou autorizado a me dizer minoria, 
Quanto menos a lamentar o que seja. 
Perceba como selecionam com cuidado 
Quem pode empunhar armas nesta trincheira 
Para não correrem o risco de serem muitos 
E terem que lutar de verdade 
Pelas causas que supostamente defendem.

Aqui, no meio de incontáveis emoções e ciências, 
Mal estou autorizado a ter um coração humano 
E lamentar simplesmente porque sofro. 
Não há lugar no mundo para sofredores. 
Há vagas para um novo meme.

No fundo da minha alma que existe 
Não estou autorizado a lamentar coisa alguma, 
Por compromisso com a minha fé, 
Por gratidão pelo ar que respiro, 
Porque amanhã. Porque Deus. Porque o Cosmos.

Quem, eu me pergunto, 
Quem foi que autorizou a dor 
A continuar doendo?


 


 

sábado, 8 de abril de 2023

O fim.

Pousado sobre um travesseiro frio, na paz de um domingo ensolarado, entre uma taça e outra, no doce que amargou, em meio ao riso, nas estrelas dadas de presente, na poltrona ao lado, em duas caixas e uma mala, onde caiu a lágrima, nas novidades sem ouvinte, em um aceno vago.

O fim.

Pronunciado com a voz trêmula por alguém que daria tudo, que durou demais na eternidade para que possa entender, que ainda tem nas mãos uma rosa, que sabe de cor o caminho, que não tem toda essa força, que pediu tão pouco, que já está cansado, que ontem mesmo era tudo, que então nem imagina a razão.

O fim.

Provocado por enganos e fracassos, por abismos entre as almas, pela ausência de palavras, ou por um mar de palavras não ouvidas, ou por um oceano de palavras não compreendidas, por acaso, pela chuva à tarde, por um medo incurável, porque ninguém previa, só porque sim.

O fim.

Pontilhado por folhas secas no chão das praças, sobre a grama dos parques, nas margens dos rios, entre o meio-fio e o asfalto, nos quintais de casarões antigos, nos pátios de edifícios cinzas, nas escadarias de universidades, nas varandas, ao pé das árvores.

O fim.

Pontuado por um grande silêncio no interior dos táxis, das galerias de arte, de uma catedral vazia, de um coração em chamas, de um salão sem festas, dos elevadores cheios, de um cemitério à noite, de um jantar só para um, de uma carta não escrita, de um quarto escuro.

O fim.

Povoado de memórias ainda vivas em fotografias, nas páginas de um diário, no perfume de quem passa, em um por do sol alaranjado, em uma canção no rádio, em sabores de sorvetes, em filmes bobos na tevê, em sofrimento, em telefonemas adiados.

O fim.

Prolongado assim para além de si mesmo e para dentro de um completo despreparo para ele, atravessando todas as paixões mal ensaiadas, até rasgar a pele com um sopro suave, escorrendo em brasa como o sangue derramado, preservando o grito incompleto, preenchendo os intervalos entre qualquer esperança luminosa e mais um dia triste que nasce.

O fim.


 

sábado, 1 de abril de 2023



CAPA
RELAÇÃO DOS PERSONAGENS
DESCRIÇÃO DO ESPAÇO CÊNICO
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EPÍLOGO

(Quando o foco sobre Mano está quase completamente apagado, Karina, no palco em frente, começa a tocar A Canção do Epílogo ao piano. Mano fica na penumbra enquanto ela toca a introdução, e a luz volta a se acender completamente quando ele começa a cantar.)

MANO
Não que me falte um motivo 
Não que o meu sangue não ferva 
Não que eu não perca a cabeça e não custe demais me conter 
Não que a esperança persista 
Não que ainda exista uma chance só 
De que nunca mais o ódio volte a vencer

Não que me restem mais forças 
... 
Eu nem sei o que resta de mim 
O que será que ainda pulsa? 
Por que será que ainda pulsa 
Assim tanto tempo depois do fim?

Eterno é o luto por sonhos 
Eterno é só que lembrar é voltar a doer 
Um coração? Não, escombros 
Deserto em que nada é capaz de nascer

Mas entre mágoas e culpas 
Mas nos destroços de tudo que amei 
Alguma coisa ainda pulsa 
Por que será que ainda pulsa? Eu não sei

Pra onde vou 
Pra que um horizonte 
Quem sabe quem sou 
Quem dirá por mim

Minha terra é o vazio e o silêncio 
O nada, o bem antes de tudo ser 
O meu lugar é por dentro e distante 
Sou menos, não mais do que se vê

Por que será que ainda pulsa?

Por que… pulsa?

Pulsa, pulsa 
Pulsa

Além, adiante, sempre, tanto, 
É um rio, um verso, as aves, ventos, 
Do céu, no chão, aqui, tão certo, 
Pulsa

Pulsa 
E só

(O foco sobre ele se apaga. A luz sobre Karina permanece enquanto ela toca as últimas notas. Com o silêncio, também essa luz se apaga.)